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Mostrando postagens de abril, 2012

o assassinato de gonzalo

O trem atrasa. Os passageiros já embarcamos todos, mas a composição permanece imóvel, aguardando o impulso que a colocará lentamente em movimento. Um momento instável, que sempre me desperta uma fagulha de medo como a avisar que se lida aqui com forças muito além do alcance de um homem,  capazes de me despedaçar em caso de distração. Para mim, uma viagem de trem sempre tem início com tal angústia, antes que eu possa me ajeitar no assento e adquirir a placidez bovina que se espera de todo passageiro.  Desta vez, porém, o impulso não vem na hora marcada. Cinco, dez minutos se passam, observo a plataforma parada, partem outros trens e nada. Para passar o tempo, concentro-me nos pequenos sons do interior do vagão: o suave bater do teclado do laptop pertencente ao rapaz à minha frente, o farfalhar do saco plástico de alguém desembrulhando o lanche, os murmúrios de uma conversa entre duas moças. Um dos sons distingue-se, soberano, quase imediatamente: a voz masculina a conversar, não

crônicas do planeta eu (1)

se eu falasse a língua dos anjos, provavelmente seria gago. * Desejava secretamente casar com uma Márcia, só pra tocar "Márcia eu te amo" de Baden Powell e confessar de joelhos diante dela: - Márcia, eu te amo. Casou com Deolinda, que não conhecia Baden Powell mas a quem se acostumou. * - Meu, semana que vem estréia o filme dos Vingadores. - Meu, muuuito legal! Passei minha vida inteira esperando esse filme!! - Olha só, saiu a Playboy da Adriane Galisteu. - Muito bom, meu, tô esperando minha vida inteira por essa revista! - É a terceira vez que ela sai na capa. - Sim, mas a cada vez ela tá melhor. - Vem cá, e o encontro com a mina ontem, como foi? - Ah, já viu, né? Ela me deixou quinze minutos esperando, meu. Quando chegou, dei um gritão na cara dela e fui embora. - Você esperou a vida toda pelos Vingadores mas não pode esperar quinze minutos pela mina? * Meu primeiro conto em francês: It était un garçon appellé Jacques. Il a eu un chat. Le chat ét

valter

Nossa, que pitéu, pensou Valter ao ver a gata encaminhando-se para o fundo do vagão, os olhos verdes evitando estranhos, decerto teria sido desejada por outros Valters, precavia-se contra gaviões, e por isso o nosso Valter apenas a observava discretamente, pensando no que diria quando descessem na mesma estação, desculpa mas você é muito linda, qual o seu nome, quer tomar um café, ele era assim, direto e desconcertante, desarmava as mulheres logo de início sem firulas, desse modo papava muitas, não à toa o chamavam Valter Perigo. Ainda calibrava o discurso quando notou que a gatchênha se preparava para sair na estação seguinte, aprumou-se e esperou que passasse por ele, faria a abordagem no caminho à superfície, o pior que poderia acontecer era levar um não e ter que pegar outro trem, a gata valia o contratempo. Aprochegava-se à porta sem tirar os olhos da moça quando sentiu um esbarrão, uma velhinha de bengala, bufando de cansaço, equilibrava-se porcamente para também desem

cisne

Bebo café numa xícara. É bege, estilo antigo, flores pintadas ao redor, lasca arrancada da asa. Mas a xícara não existe. O café está frio. Esperei muito antes de tomar. Mas não há café. O tempo não existe. O café esquentou novamente, posso bebê-lo. A asa se encontra perfeita, sem uma única falha. A xícara flutua no ar. Eu não existo. Seguro uma caneta. Não, um lápis. Digito a palavra "digito" no teclado. Substituo o "d" pelo "D". A meu lado, uma xícara fumegante. Bebo: é chá. O líquido escorre para cima, que agora é embaixo, e bato com a cabeça no teto, que agora é chão. Consulto o relógio. São oito e vinte e três da noite. Dez e cinquenta e um da manhã. E quarenta segundos. Vinte e cinco. Lituânia. O tempo não existe. Ouço uma voz feminina vinda da cozinha a gritar que o café está pronto. Mas moro só. E sou surdo. E analfabeto. E você não existe. Bom dia.

o óbvio

Ah, é você. Entra. Sim, fui eu quem mandou aquelas acusações pra imprensa. Sei que vai refutá-las. Deveria. Mas não vai adiantar nada. Sua carreira está arruinada. Seus filhos vão cuspir na sua cara. Sua mulher vai te deixar. Espero que goste da solidão. Mesmo que não vá pra cadeia, cairá num inferno pior. Nenhuma mulher vai voltar a olhar pra você, jamais. Está flácido. Provavelmente nem consegue botar teu negócio pra cima. O porquê? Como assim, por quê? Eu te invejo. Não é óbvio? Sempre invejei. Sempre quis tuas coisas. Acho você um bosta. Um bosta que nunca mereceu o que tem. Eu é que devia ter tido uma vida como a sua. Mas agora é tarde. Pra mim, pra mudar o rumo da minha vida, e pra você, pra recomeçar do zero. Estamos os dois no fundo do poço e ninguém vai jogar corda nenhuma. É isso. C´est ça. Acabou. Que é isso na sua mão? Uma arma? Que clichê. Vai fazer o quê? Me matar? Uuh, que medo. Olha só, estou tremendo de medo. Cagão. Você não tem coragem pra puxar es

o meu

Aqui, ó. Nossa, como é pequeno. Pequeno nada, você já viu outro pra dizer que é pequeno? Só o de papai, no banho. Mas ele é gente grande, né. Posso pegar? Pode. Hm. Ai! Desculpa! Não puxa, né? É molinho, parece um peixinho. Pega de novo. Você tá se mexendo, dói? Não, dá cosquinha. É bom de pegar. Tá bom, mostra o seu agora. Aqui, ó. Não tem cabelo, não? Não. Sempre tem quando vejo na revista do meu primo. Mamãe disse que depois cresce. É lisinha. É. Vai muito fundo? Não. Posso pegar? Não! Como assim, você pegou no meu! Mas eu tenho vergonha! Deixa, vai. Não. Por favor. Não deixo. Se você deixar, faço o que você quiser. Faz mesmo? Faço. Então me dá um beijo. Eca! Por quê, eca?! Que nojo, beijar menina. Me beija senão não deixo pegar! Ai, que saco, tá bom, xuac. Na bochecha não, na boca! Pôxa... mas você promete que não conta pra ninguém? Prometo. Xuac, pronto, posso pegar? Pode. Hm. Ui, que mão fria! É lisinha, mesmo. Tá bom, tira. Se eu soubesse que era assim, não tinha beijado ant

eros e tanatos

Fellatus. Em retrospecto, ele realmente deveria ter pedido a ela para parar. Mas estava tão bom. Ao diabo, se o distraía da direção. Ao diabo, se podiam bater. Ao diabo o cuidado com a velocidade, a ultrapassagem na faixa única, cinto de segurança. Por uma vez na vida, despacharia tudo para o inferno, aproveitaria o bom humor da esposa, embarcaria na aventura, teria algo pra contar aos amigos no chope da sexta-feira.  Cantou os pneus na curva seguinte. Ela fez menção de erguer a cabeça, mas ele gentilmente pousou a mão em seus cabelos sedosos, afagando-os, uma mensagem surda de que tudo corria bem. Gozou antes do esperado. As pernas, até ali relaxadas, retesaram-se num espasmo involuntário, pressionando o acelerador até o chão. Sentiu a alma escorrer da boca, gorgolejou um gargarejo gutural, estrangulado, de alívio e heroísmo. Despejou. Vivia. Terminava de exalar um suspiro, a esposa a lhe lamber a virilha com carinho, quando não encontrou o fim da estrada. O precipício

aristarco

"À Prezada Senhorita que arruma este quarto todos os dias: Peço desculpas por escolher este meio para falar com você (posso tratá-la por você? Tenho dificuldade, sempre chamei todo mundo de senhor e senhora, ranço de minha educação em colégio de padre antes da Revolução, a senhorita imagina como é), mas não consegui pensar em nenhum outro jeito. Estou sempre perto de minha mulher, que não me perde de vista em momento algum. Mas não podia deixar passar esta oportunidade. Desde que a vi, no primeiro dia em que aqui me hospedei, apaixonei-me por seu rosto, seu corpo. Deixou-me totalmente estupefato. Até agora lembro com carinho do sorriso que me deu ontem, quando eu e minha esposa saíamos do quarto. Fiquei pensando se estava sendo correspondido em minha afeição ou se seu treinamento exigia que você sorrisse daquele jeito para todos os hóspedes. Gosto de pensar que não. Gosto de pensar que você me deseja, assim como eu a desejo. E a desejo. Desde que cheguei, não pensei em

turistas

Moro na zona mais turística da cidade, lotada de casas velhas, praças decadentes e toda aquela bobajada que turista adora visitar e onde sente a estranha necessidade de tirar milhares de fotos de todos os ângulos imagináveis só porque algum idiota famoso mijou ali perto ou coisa parecida. Acho engraçado tal raça de gente, sempre com as roupas destoando do resto do povo, câmeras digitais, malas, mochilas sacolejando, sacolas, mapas e guias nas mãos, coçando a cabeça, se estão acompanhados vão se sustentando um ao outro, se vão em família seguem em matilha fechada, os gestos amedrontados, os passos incertos, não sabem se vão pra frente ou pra trás, se seguem a recomendação desta placa ou daquela indicação oferecida por um local que mal arranha o inglês, a repetir de mão esticada, "é por ali, por ali". Dá-me a impressão que, sempre que se visita outro país, emburrece-se um pouco. Não é o meu caso. Nunca saí do país, de modo que não corro o risco de me tornar um turista,

uma vingança

Entrou o policial fardado no bar, bom dia, seu Mateus tentou disfarçar o desprezo que se estampava quase instintivamente em seu rosto, bom dia, respondeu, o policial pediu a média de leite e o sanduíche de presunto de todos os dias, e mais manteiga que ontem, viu, seu Mateus, a manteiga anda cara? riu, o velho apenas grunhiu, foi pegar o pão, a autoridade ficou encostada no balcão admirando a moça que limpava as mesas com um pano, traços delicados mas expressivos, a pele negra e jovem, os olhos doces, observava-a como a uma jóia alheia, gritou para a cozinha como se ela não estivesse presente, filha do senhor? o velho retornou com o sanduíche, é sim, murmurou entre os dentes, fingindo ser a primeira vez que o policial fazia tal pergunta, muito bonita, falou alto para ela ouvir, parou os olhos na bunda, qual o nome dela, o sanduíche do senhor, replicou o velho, empurrando o prato e o copo com asco, os olhos marciais saíram da moça e pousaram em Mateus, a expressão de desafio a intriga