valter



Nossa, que pitéu, pensou Valter ao ver a gata encaminhando-se para o fundo do vagão, os olhos verdes evitando estranhos, decerto teria sido desejada por outros Valters, precavia-se contra gaviões, e por isso o nosso Valter apenas a observava discretamente, pensando no que diria quando descessem na mesma estação, desculpa mas você é muito linda, qual o seu nome, quer tomar um café, ele era assim, direto e desconcertante, desarmava as mulheres logo de início sem firulas, desse modo papava muitas, não à toa o chamavam Valter Perigo. Ainda calibrava o discurso quando notou que a gatchênha se preparava para sair na estação seguinte, aprumou-se e esperou que passasse por ele, faria a abordagem no caminho à superfície, o pior que poderia acontecer era levar um não e ter que pegar outro trem, a gata valia o contratempo.

Aprochegava-se à porta sem tirar os olhos da moça quando sentiu um esbarrão, uma velhinha de bengala, bufando de cansaço, equilibrava-se porcamente para também desembarcar, chocou-se contra todos em volta, incapaz de permanecer em pé enquanto o metrô desacelerava, desabou em cima de Valter que, instintivamente, a amparou, obrigada, meu filho, obrigada, nessa hora o vagão parou e vomitou a massa humana na plataforma, Valter tentou seguir a gata mas esta se deslocava apressada para a saída da Sé, em pouco sua blusinha verde perder-se-ia na multidão, ia correr quando sentiu o braço sendo puxado, virou-se e viu a velhinha ainda a se equilibrar no empurra-empurra de pedestres, me ajuda, meu filho, sem o apoio certamente cairia, talvez morresse pisoteada. Valter observou desolado enquanto a gata virava um pontinho verde andando na direção das escadas, suspirou, paciência, agarrou o braço da anciã trôpega, os pés tropeçando uns nos outros e na bengala, qual é a saída da senhora, perguntou, e ela, confusa, vou pra lá, saíram por qualquer lado, Valter ainda olhou em volta pra ver se encontrava a moça mas necas, uma fantasia encontrar alguém no centro de São Paulo àquela hora, todos se escondem em plena luz do dia. 

Ainda percorreu dez quarteirões com a velhinha, apesar do passo curto e vagaroso esta bufava de cansaço, estas pernas já deram, ria, Valter sorria amarelo, desculpe incomodar meu filho, estas varizes, nao vá se atrasar pro seu trabalho, dizia a velha, o rapaz repetia, não é nada, e não era mesmo, não havia trabalho para o qual se atrasar, dirigia-se ao boteco pra almoçar com os amigos e jogar sinuca, emprego que era bom nada, os dois suspiraram, ela de cansaço e ele de resignação.

Finalmente chegaram a um prédio de dois andares sem porteiro, a velhinha cavou a chave do fundo da bolsa e abriu o portão, entra meu filho, toma um café, Valter aceitou, a tarde já estava perdida mesmo. Depois de uma lenta subida de escadas, entraram no minúsculo apartamento cheirando a mofo e alfazema, sombrio, a janela num ângulo bizarro evitando o sol, fica à vontade, a velha se enfiou na cozinha enquanto o rapaz examinava a miríade de fotos em porta-retratos enferrujados na penteadeira. Examinou mais detidamente uma fotografia maior com uma jovem de véu e grinalda de braço dado com um rapaz de bigodinho fino de malandro, a mulher não era de se jogar fora, pensou, a senhora apareceu com xícaras e um bule, fiz um bocado logo pois estou esperando visita, disse a senhora, senta, meu filho, Valter recusou, tenho que ir embora logo, a velhinha murchou um pouco, recebia poucas visitas e não era todo dia que tinha um rapagão de peito largo em casa. Ele apontou a foto do casamento, é a senhora, ela confirmou orgulhosa, o vestido era de minha mãe, da França. É muito bonito, disse Valter, olhando para os seios da noiva.

Terminava o café quando tocou a campainha. É minha amiga, disse alegremente a senhora, Valter se preparou para partir, abriu-se a porta e as duas amigas se abraçaram, como vai, saudou a recém-chegada, trouxe minha filha, e saiu de trás de si uma moça de olhos verdes, Valter Perigo derrubou a xícara no chão, era a gata do metrô. Carnaval em abril.


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