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Mostrando postagens de novembro, 2010

a vida é névoa

a vida é névoa e já não enxergo mais nada não vejo a estrada vou cair na ribanceira vou capotar e vou morrer e ninguém vai perceber aquele destroço na névoa aquele jeito de nada aquele namorado insensato que condenou duas almas pela simples inabilidade de ver além da neblina de inventar o invisível de perfurar a aquarela de vencer aquela névoa que se via e não se via.

examinou os olhos

Examinou os olhos da moça, desviou a vista, retornou e perscrutou os olhos apertados novamente, desta vez se demorando no papel que interpretavam em seu rosto redondo de européia do leste, as maçãs largas, a boca fina, os cabelos ondulados que cobriam as têmporas e faziam com que a extensão da face fosse inaugurada e encerrada pelos olhos estreitos, vítreos, puros, ansiosos, que interrompiam a marcha de um exército. Não sabia se foram aqueles olhos de Volga ou se seu próprio estado, ainda abalado pela morte de Sofia, mas lágrimas umedeceram sua face e estreitaram-lhe a garganta. Fungou. Com vagar, depositou duas moedas nas mãos do vendedor de rua e levou a fotografia para casa. Não imaginava onde iria pendurá-la; o que sabia é que não poderia deixar a moça ali, largada na calçada.

soneto da rua

Volto do labor meio telúrico, assim atarantado, filho da Lua; súbito torno, idéia mudo, à rua, à rua, à rua, à rua! No lar desconheço barulhos, tudo é paz, nada é poesia pois poesia é beber da rua seus murmúrios e de silêncios a morte já come em demasia. Saúdo o garçom, amigo Teles, que já enxotou três antes das nove: antes das dez serei um deles. Mas o que o amigo Teles desconhece é que a ciência, e não Baco, me move: examino quanto fígado permanece!

soneto de culpa

Tu, tu, somente tu que me deste um fragmento de semente carcomida, o único ser sob o tapete celeste que me ofereceu a esmola querida. Eis minha gratidão: meu apreço por me ter salvo da miséria e da fome; presenteio-te com a praga e o insucesso, submeto-te aos dentes dos que não comem! Podes esperar tudo de um faminto, menos gratidão. Inexiste para mim esse vocábulo burguês. A fome de mim um animal já fez e se protestas com o dedo em riste, Recorda-te: que fome jamais sentiste!

paris

Paris era linda àquela época do ano. Pena que ele tinha tão pouco tempo. Entrou no primeiro táxi que viu e pediu para ir à Notre Dame. Quando chegou, contemplou a catedral o mais intensamente que pôde, procurando fixar os mínimos detalhes, os gárgulas, os sinos, na memória. Levou uns cinco minutos e, logo em seguida, correu para a estação do metrô. Desceu na parada próxima ao Arco do Triunfo. Correndo pela Champs Elysèe, alcançou a Torre Eiffel. No caminho, esbarrou em parisienses apressados na rua, também para eles o tempo era escasso. Era uma pena, mas, se ele dispunha de tão pouco tempo, o melhor era ver o máximo possível de coisas. Finalmente, após passar diante do Louvre, comprou um crepe no primeiro café que encontrou e o enfiou todo na boca, afogando-o com um capuccino. Ainda de boca cheia, flertou brevemente com uma jovem sentada num banco próximo. Em seguida, recomeçou a correr Só parou quando chegou a Montmartre, às portas da Sacré Coeur. Subiu as escadas esbaforido, as p