o assassinato de gonzalo


O trem atrasa. Os passageiros já embarcamos todos, mas a composição permanece imóvel, aguardando o impulso que a colocará lentamente em movimento. Um momento instável, que sempre me desperta uma fagulha de medo como a avisar que se lida aqui com forças muito além do alcance de um homem,  capazes de me despedaçar em caso de distração. Para mim, uma viagem de trem sempre tem início com tal angústia, antes que eu possa me ajeitar no assento e adquirir a placidez bovina que se espera de todo passageiro. 

Desta vez, porém, o impulso não vem na hora marcada. Cinco, dez minutos se passam, observo a plataforma parada, partem outros trens e nada. Para passar o tempo, concentro-me nos pequenos sons do interior do vagão: o suave bater do teclado do laptop pertencente ao rapaz à minha frente, o farfalhar do saco plástico de alguém desembrulhando o lanche, os murmúrios de uma conversa entre duas moças. Um dos sons distingue-se, soberano, quase imediatamente: a voz masculina a conversar, não, a quase gritar no celular, em castelhano de sotaque andino, com alguém de nome Gonzalo. 

Meu espanhol não é lá essas coisas, mas a voz límpida e o tom assertivo do homem reduz as dificuldades que eu poderia ter em compreendê-lo. Grita, mas sem ódio. Assegura ao tal Gonzalo - o nome, estranhamente, soa-me familiar - de que "tudo estará bem". Repete várias vezes que já contatara um advogado. Para quê? Não sei. Esqueço-me dos outros sons para me concentrar apenas no amigo de Gonzalo, resistindo, ao mesmo tempo, ao desejo quase irresistível de virar o corpo e descobrir seu rosto, temendo melindrá-lo e acabar encurtando a conversa. Sim, possuo compulsão quase erótica em ouvir conversa alheia. Não, você não é o único.

Continuo quieto. É de seu casamento, ou melhor, do fim dele, de que o homem trata. Diz que não há com o que se preocupar, está tudo arranjado, tivera uma conversa "amigável" com a ex-esposa - a do homem, bem entendido, não a de Gonzalo, se é que este é ou foi casado -, a ex "não criaria problemas". Já haviam decidido o destino da casa e do carro. Só quero me ver livre disto, Gonzalo. Quero acabar. 

Tento adivinhar qual a relação entre os dois. Pelo tom, parecem bons amigos, talvez irmãos. Só tenho a certeza de que um não é o advogado do outro, pois o tipo repete que já falara com seu advogado e não creio que sofresse do mesmo complexo de Pelé de sempre se referir a si mesmo na terceira pessoa. 

O mais curioso é a familiaridade que compartilham. Gonzalo ouve todos os detalhes do divórcio do amigo com paciência monástica. Penso que Gonzalo talvez seja o psicólogo do sujeito. Aliás, percebo que conheço mais sobre Gonzalo, a quem nunca vi ou ouvi, que deste meu companheiro de viagem (deve ser algum fenômeno do século XXI, o de conhecer desconhecidos intimamente). Talvez fosse seu guru. De qualquer maneira, seria um homem muito paciente. Até eu, a princípio interessado naquele monólogo improvisado, comecei a me aborrecer em ouvir, pela enésima vez, a conversa que o andino tivera com seu advogado. Sujeitinho prolixo. E São Gonzalo. 

Lembro, afinal, de onde eu ouvira o nome. Em "Hamlet", o príncipe dinamarquês busca obter a prova da culpa do tio no assassínio de seu pai, encenando, diante da corte, uma peça chamada "O Assassinato de Gonzalo". Hamlet pede à trupe de atores mambembes que inclua nas falas alguns versos de sua autoria, visando desmascarar o tio com mais facilidade (acaba conseguindo, como se vê depois). Pobre Gonzalo. Talvez terá morrido ouvindo, milhares de vezes a fio, que o divórcio do amigo corria às mil maravilhas. Nem imaginava que era alvo de minha simpatia. Como Gonzalo, tenho alguns amigos que, calados, escrevem os mais belos poemas da literatura universal. 

Parte o trem, finalmente. O andino se despede de Gonzalo e desliga o celular. Não o ouço mais a viagem inteira.


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