uma vingança

Entrou o policial fardado no bar, bom dia, seu Mateus tentou disfarçar o desprezo que se estampava quase instintivamente em seu rosto, bom dia, respondeu, o policial pediu a média de leite e o sanduíche de presunto de todos os dias, e mais manteiga que ontem, viu, seu Mateus, a manteiga anda cara? riu, o velho apenas grunhiu, foi pegar o pão, a autoridade ficou encostada no balcão admirando a moça que limpava as mesas com um pano, traços delicados mas expressivos, a pele negra e jovem, os olhos doces, observava-a como a uma jóia alheia, gritou para a cozinha como se ela não estivesse presente, filha do senhor? o velho retornou com o sanduíche, é sim, murmurou entre os dentes, fingindo ser a primeira vez que o policial fazia tal pergunta, muito bonita, falou alto para ela ouvir, parou os olhos na bunda, qual o nome dela, o sanduíche do senhor, replicou o velho, empurrando o prato e o copo com asco, os olhos marciais saíram da moça e pousaram em Mateus, a expressão de desafio a intrigar o policial, pensou se valia a pena chamar a atenção do velho, melhor não, era cedo, bebeu da média e abocanhou o pão, seu Mateus, disse satisfeito, caprichou na manteiga hein, o velho fingia esfregar o balcão, tinha coisa pra fazer lá dentro mas não queria deixar a filha sozinha com ele, qual o seu nome, a voz grave e autoritária ecoou pelo salão vazio, a moça parou o serviço, o rosto acanhado, olhou para ele, o pai, o chão, sussurrou, é Valquíria, nome bonito, de flor, você é muito bonita também, a moça apenas abriu os lábios à guisa de agradecimento, Mateus sentiu a cabeça inchar, as têmporas latejarem, tentava focar nas insígnias no ombro do meganha, no coldre preto na cintura, buscava se conter mas era difícil, o policial tirou o boné cinza, segurou a aba com dois dedos e se inclinou no balcão, disse em tom de confidência, seu Mateus, cadê a mãe dessa menina que eu nunca vejo, sou viúvo, respondeu com rispidez, mas seu Mateus, prosseguiu, criar sozinho uma menina nessa idade é um perigo, a molecada hoje tá muito maluca, não é mais como no tempo do senhor, todo dia vejo menino metido no tráfico, no roubo, a Valquíria começa a se meter com esse povo, já era, minha filha é direita, respondeu, vai da casa pro colégio e do colégio pra casa, não fica na rua à toa, o policial fingiu compreensão, eu entendo, mas nessa idade fica mais difícil, é aí que a gurizada começa a se soltar, a namorar, eu vejo tanta menina mais nova que a Valquíria com a barriga inchada, às vezes já com uma criança na mão e esperando outra, o velho quase teve de segurar a mão para impedir que ela fosse parar na cara do outro, a voz saiu esganiçada de ódio, minha filha é direita, repetiu, o policial viu a cara contorcida do velho, achou graça, olhou novamente para ela, que se mantinha perto da porta, é, mas às vezes as coisas não dependem da gente. Repôs o boné no crânio, a rua tá foda, seu Mateus, acontece qualquer coisa com o senhor e a moça fica aí, sozinha, ela podia ter um homem forte perto pra cuidar dela, deu a última mordida no sanduíche, lavou a boca com o resto da média, até amanhã, sentenciou, e, sem a menor menção de pagar, caminhou até a porta, despediu-se da moça com um sorriso, esta murmurou qualquer coisa, sem lhe dar as costas como um animal acuado, o velho respirou de alívio, temera tomar qualquer ação irrefletida, disse à filha, amável, pode entrar que eu termino a limpeza, ela agradeceu e foi para o quarto, seu Mateus empunhou o pano e continuou a esfregar a fórmica. Lembrou-se subitamente, e a lembrança lhe trouxe um breve sorriso aos lábios, que deveria caprichar novamente na “manteiga” no dia seguinte.

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