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Mostrando postagens de fevereiro, 2019

ônibus

Tenho que contar isso. Eu estava em um ônibus, lendo um livro de Octavio Paz. O sol iluminava o dia, preenchendo-o de possibilidades, inclusive as mais improváveis. Meus olhos percorreram meus companheiros de viagem, uma senhora gorda cheia de sacolas sentava ao meu lado, decidi que se chamava Gilda e que as sacolas estavam cheias dos pedaços de seu marido que ela matou depois de 26 anos de casamento. Uma garota, definitivamente Sofia, permanecia em pé, olhando para essa inso fismável dimensão do nada. Ao lado de Sofia estava Júlio, talvez se chamasse Júlio, a testa franzida, sem saber se seria aquele o dia em que finalmente iriam demiti-lo do emprego.  Deixo em paz meus queridos desconhecidos e fito a janela. Outro ônibus acelera e se emparelha com o nosso, vejo os outros passageiros com um pouco menos de familiaridade, talvez uma inexplicável competição. Levo um susto, Júlio está de pé no outro ônibus, a testa franzida pensando na demissão e nos boletos, Sofia digerindo o v

futuro

Cenário: um estúdio de rádio durante transmissão ao vivo do programa “MÁRCIA TRAMONTINA SEM CENSURA”. MÁRCIA - Boa tarde queridões! Hoje eu vou conversar com o Homem do Futuro. Ele veio do futuro só pra conversar com a gente aqui no nosso programa. Bem-vindo! HOMEM DO FUTURO - Obrigado, Márcia, é um prazer estar aqui. Mando uma saudação calorosa pra todos os ouvintes. M – Então, tô lendo aqui que você vive 500 anos no futuro e que voltou pra nossa época. Nossa, 500 anos é muito tempo, né? HF - Meio milênio, Márcia. Realmente, pra vocês é muito tempo. M - A viagem foi cansativa? HF - Não. Aliás, a gente... tipo, quando vocês aprenderem a viajar no tempo, vão ver que não é nada demais. Basta pensar forte, um cálculo aqui e acolá e pronto. Não é difícil, não precisa de máquina, carro voador, nada disso. M - Que legal. E que roupa é essa? Gente, ele tá usando uma roupa meio brilhante, de astronauta, toda prateada... essa é o uniforme especial pra viajar no tempo? HF - Na

algoritmo

- Sua pizza, senhor. - Obrigado. Mas... essa aqui é margarita. Eu pedi de calabresa. - Seu algoritmo mudou para margarita, senhor. - Pois pode chamar Seu Gorítimo aqui. Quem escolhe o que eu como sou eu. - Senhor, o algoritmo é um programa de computador que sabe o que os clientes querem, baseado nas suas escolhas passadas. - Não quero saber. Uma margarita, faz favor. - De acordo com o algoritmo, o senhor sempre pede pizza de calabresa. Também come pratos gordurosos em outros restaurantes, no delivery, etc. Ademais, o senhor não sai da frente do computador e da televisão, não faz exercício, tem um estilo de vida bastante sedentário. - Eu sei! Por isso quero comer mais saudável! - Mas o senhor não pode mudar de padrão assim, repentinamente. Isso causa problemas para o algoritmo. É melhor o senhor começar pedindo pizza de frango, por exemplo. Assista a uns programas de culinária vegana no Netflix, siga umas páginas de saúde no Facebook e uns perfis de gente magra no Instagram...

palavras

Eu escrevo de madrugada quando acordo de sonhos intranquilos, escrevo no escuro pois tenho vergonha de jogar palavras no lixo. Palavras que libertam cativos, que decretam anistias, que salvam almas e condecoram heróis, palavras que atiro na calçada de uma rua escura povoada de nada. Palavras fugazes e inúteis, sombras brilhantes na tela branca, rabiscadas em má caligrafia, diversões burguesas enquanto na rua abundam dor e agonia. Uma ambulância rasga a aurora e o poema. Um minuto de vida vale mais que todas as palavras escritas. Nasce o dia, uma nova palavra. Um novo nome para descrever o indescritível.

message

June 1st, 2039. This is a message from Capt. Eric Spencer Petraeus, commander of the Gargantuan Space Mission, first manned space flight to Mars. NASA will be able to verify this message. I write this while subdued by the might of a superior force. This force has caused the demise of the crew of the Gargantuan: Lieutenant Galina Petrovna and Majors Ernesto González and Akira Takahashi. They were eliminated by some sort of telekinesis pulse the instant I set foot on Martian soil. The superior force has telepathically made it known to me that they did not suffer. Right now, I am located inside a natural cave near the volcano Arsia Mons, a few hundred feet from the ship. This may be verified by telescopic view. Very soon, I will join my crew. The message I am to relay to you is simple: cease all exploration of Mars. No other mission, either manned or unmanned, must attempt to land on this planet. If any does, it will meet the same fate of the Gargantuan. This is assur

mafagafos

Estou comendo num bistrô ao ar livre quando uma moça para na calçada.   - Boa tarde. O senhor…   - Não (nhac!) dou dinheiro.   - Estou vendendo…   - Não (nhac!) quero (nhac! nhac!) nada. Vá embora.   - Mas são legítimos mafagafinhos, baratinhos.   - Já disse… oi?   - Mafagafinhos. De excelente qualidade, desses que o senhor não encontra por aí. Nem em Minas.   - Não faço a menor idéia do que seja isso.   - Eu mostro. Veja.   Ela enfia a mão numa cesta e tira um mafagafinho. É gigantesco, quase um mafagafão. Certamente o maior mafagafinho que já vi, até porque nunca vi um mafagafinho antes.   - O senhor pode pegar se quiser.   Seguro o troço na minha mão. É de fato descomunal, roliço, bulboso, mas delgado e delicado ao mesmo tempo. Esqueço a comida, a moça, o restaurante, a cidade ao meu redor, apenas contemplando aquele mafagafinho magnífico como um prenúncio de coisas boas e plenas prestes a acontecerem em minha vida.   Por algum motivo, sinto que não pos

1001 filmes: 54 a 58

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54) “Assim caminha a humanidade” (“Giant”, 1956) Diz bem o título original: “GIGANTE!” Paixões desenfreadas se desafiam numa locomotiva de emoções! Grandes astros, grandes locações, uma grande história! Três horas e meia, quase a metade de um filme de super-herói da Marvel! Mas sério, “Assim caminha…”, com os astros Rock Hudson, Elizabeth Taylor e James Dean, é o protótipo do cinemão-épico-hollywoodiano, da estirpe de “Os dez mandamentos” (lançado no mesmo ano, aliás). Para quem gosta de filmes pequenos e artísticos, seria de torcer o nariz, certo? Arrá, errado! O filme dirigido por George Stevens surpreende, com uma história cativante, ambientada na febre do petróleo no Texas na primeira metade do século vinte, contando com bons personagens e temas instigantes como racismo e luta de classes. A direção de fotografia é primorosa, com as planícies desérticas do Texas em primeiro plano. Atenção para um jovem Dennis Hopper, em sua primeira atuação no cinema como filho do gal

hospital

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(Foto do site https://operipatetico.wordpress.com/2012/05/27/diferencas/) Os pacientes que se amontoavam na sala de espera da emergência do Hospital Sagrado Coração ficaram embasbacados com a cena que se desenrolava diante de seus olhos. E, sinceramente, quem poderia culpá-los?  Em meio a braços pendurados por ataduras de gaze e rostos comidos pela dor e pela espera, uma dúzia de homens com barbas falsas irrompeu pela porta da rua e abriu caminho até a recepção. Liderando-os estava uma mulher envolta num manto azul-claro, com os cabelos cobertos como uma freira. Os demais recém-chegados vestiam túnicas de cores improváveis, verde-limão, roxo, calçavam sandálias e carregavam algo sobre os ombros, sim, algo que encobria a luz tênue das lâmpadas fluorescentes, algo enorme como um caixão, não, uma cruz de madeira, e um corpo sobre a cruz, um jovem magro de cabelos longos com um breve pano cobrindo as vergonhas. Quase imperceptíveis, gotas de sangue pingavam das extremidade