mafagafos


Estou comendo num bistrô ao ar livre quando uma moça para na calçada.
 
- Boa tarde. O senhor…
 
- Não (nhac!) dou dinheiro.
 
- Estou vendendo…
 
- Não (nhac!) quero (nhac! nhac!) nada. Vá embora.
 
- Mas são legítimos mafagafinhos, baratinhos.
 
- Já disse… oi?
 
- Mafagafinhos. De excelente qualidade, desses que o senhor não encontra por aí. Nem em Minas.
 
- Não faço a menor idéia do que seja isso.
 
- Eu mostro. Veja.
 
Ela enfia a mão numa cesta e tira um mafagafinho. É gigantesco, quase um mafagafão. Certamente o maior mafagafinho que já vi, até porque nunca vi um mafagafinho antes.
 
- O senhor pode pegar se quiser.
 
Seguro o troço na minha mão. É de fato descomunal, roliço, bulboso, mas delgado e delicado ao mesmo tempo. Esqueço a comida, a moça, o restaurante, a cidade ao meu redor, apenas contemplando aquele mafagafinho magnífico como um prenúncio de coisas boas e plenas prestes a acontecerem em minha vida.
 
Por algum motivo, sinto que não posso abrir mão daquele pedaço de felicidade.
 
- Quanto?
 
- Cinquenta.
 
- Muito caro! - respondo, sem a menor noção de quanto aquilo vale. - Vinte.
 
- Quarenta?
 
- Trinta e não se fala mais nisso.
 
Paguei, a moça agradeceu e continuou pela calçada até dobrar a esquina seguinte.
 
Em casa, fico apreciando meu mafagafinho. Sinto-me zonzo e um pouco idiota por nunca ter visto coisa parecida. Como meus pais nunca me contaram sobre mafagafinhos? Como eu nunca tinha visto nenhum amigo, ninguém na verdade, com um daqueles na mão? Quanto prazer perdido, quanta felicidade adiada, penso, meio triste. Mas estou disposto a recuperar o tempo perdido. Tenho ganas de passar horas, dias brincando com meu mafagafinho e descobrir novas formas de usá-lo, apesar de saber que a felicidade é algo inerentemente inútil.
 
Alguém toca a campainha. Quem seria àquela hora? Abro a porta. Um velho com o casaco sujo e rasgado olha para mim. Falta-lhe um dente da frente e ele parece orgulhoso em mostrar o buraco.
 
- Sim? - pergunto, pronto para expulsá-lo.
 
- Hee hee… então temos aqui um fã de mafagafinhos…
 
Engulo em seco. Como ele sabe?
 
- Podemos fazer um acordo, hee hee… sei onde ela mora.
 
- Quem?
 
- A mulher que te vendeu o mafagafinho, ora essa! Aquela vadia! Posso dizer o endereço dela, hee hee… e selamos o trato.
 
- O quê quer, velho?
 
- A desgraçada tem que pagar! - exclamou. - Quero que você a mate! E aí, dividimos os mafagafinhos que tem na casa dela. Centenas… milhares… milhões! Tem lá, eu vi, hee hee… então? Aceita?
 
Meia-noite. Numa casinha de tijolo aparente, na periferia da cidade, uma lâmpada ilumina a janela aberta. Em outras circunstâncias, eu nunca passaria naquele bairro, especialmente à noite, mas as palavras do velho me impelem a seguir adiante. Qualquer hesitação é mais que compensada pelo sonho de ter centenas, milhares, talvez milhões de mafagafinhos à minha frente… vejo-me acariciando-os, esfregando-os contra minha pele, banhando-me com eles, sua superfície tão áspera e tão macia friccionando contra meu abdômen… vou até a porta da casinha e bato duas vezes.
 
- Quem é? - perguntam de dentro.
 
Um giro de chave e lá está a moça, olhando surpresa para mim. E atrás dela, esparramados pelo chão, sobre as cadeiras e o sofá e a televisão ligada, cobrindo a mesa e enchendo a pia, muitos e muitos mafagafinhos, mais do que eu imaginava existirem.
 
- Hee hee! - carcareja o velho atrás de mim, empurrando-me para dentro e fechando a porta. A moça, ao ver o velho, transmuta-se e seu semblante passa da surpresa ao pavor.
 
- Agora! Mate-a! - grita o velho, colocando um pedaço de pau na minha mão, que agarro instintivamente. - Mate essa vadia! Nem mais um segundo!
 
Os olhos dela saltam entre eu e o velho. Não sabe se reage, grita por socorro ou permanece parada. Ergo o pau, pronto para desferir um golpe terrível.
 
- Vai!
 
O pau descreve um arco perfeito no ar antes de pegar em cheio na cabeça grisalha. Não é necessário outro golpe: o velho desaba no tapete sem um gemido, como se fosse um saco de batatas que, por algumas horas, viveu como um velho filho da puta antes de se transformar novamente num saco de batatas.
 
O sangue empapa o tapete e os mafagafinhos. A moça olha para mim. E eu, sem tirar os olhos das cadeiras, do sofá, da pia, todos repletos de maravilhosos mafagafinhos, sonho com os dias felizes que me esperam, repletos de frisson e da demência da felicidade plena que me havia sido negada por tanto, mas por tanto tempo. Eu pedirei a moça em casamento, nós ficaremos juntos, e todo esse sacrifício de levar uma vida banal, idêntica a todas as outras vidas, empalidecerá diante do êxtase, do sublime ápice que os mafagafinhos hão de me proporcionar.

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