1001 Filmes: de 178 a 191
Há quem defenda que a arte não deve ter qualquer objetivo. Discordo. A expressão artística, independentemente do meio usado, tem como missão buscar o humano, seja para retratá-lo, confrontá-lo, celebrá-lo ou até negá-lo, mas sempre tendo como ponto de partida - e ponto de chegada - provocar a sensibilidade humana.
Alguns filmes que tenho visto ultimamente triunfam nessa missão de fazer palpitar o coração e o cérebro. Cito, em especial, quatro deles:
- “Um dia quente de verão” (1991), do taiwanês Edward Yang, poderia ser descrito como um “épico intimista”, por mais contraditória que pareça essa expressão. A sinopse quase ingênua (nos anos 60, um grupo de colegiais conhece o amor, a amizade e a violência em meio à turbulência política de Taiwan) simplifica o panorama complexo e riquíssimo que Yang constrói por meio de vinhetas com uma meia dúzia de protagonistas. Há tantos temas abordados nas 4 horas de duração - relação de pais e filhos, homenagens ao cinema, etc. - que o filme suscita um caleidoscópio de emoções, que se projetam muito além do recorte histórico e geográfico retratado. “Um dia quente de verão” lembra o belo e também taiwanês “A cidade do desencanto” (resenhado AQUI), mas superando o rico panorama histórico que este faz da independência da ilha asiática. Sem sombra de dúvida, “Um dia quente de verão” é um dos melhores filmes que já vi;
- Continuando na Ásia, finalmente assisti ao segundo e terceiro filmes da famosa “trilogia de Apu”, que catapultou o diretor indiano Satiyajit Ray ao panteão do cinema. A fama é plenamente justificada. Se “A canção da estrada” (1955), o primeiro da trilogia, indicava o talento nascente de Ray ao narrar as desventuras do pequeno camponês Apu, o auge da história está em “O invencível” (1956). Na segunda parte, o núcleo familiar de Apu é quebrado e o menino se muda sozinho para Calcutá, metrópole indiana, onde perseguirá seu sonho de estudar e se tornar um escritor. A poesia das imagens de Ray é sutil, porém arrebatadora. Evitando metáforas tanto óbvias quanto ininteligíveis, o diretor contrapõe as descobertas de Apu na cidade grande com a alienação da mãe, que permaneceu no meio rural, o que provocou o distanciamento entre os dois. A relação entre mãe e filho é um exemplo perfeito da busca pelo humano, sem maniqueísmos ou julgamentos morais dos personagens. “O mundo de Apu” (1959), a parte final, resvala um pouco no sentimentalismo. Aqui, Apu, já crescido, aprofunda sua alienação do mundo ao abandonar a carreira incipiente de escritor e se tornar um andarilho. A narrativa lembra um livro de Herman Hesse, no sentido de mostrar a jornada de um individuo em busca de seu papel no mundo. Mesmo não repetindo a genialidade da segunda parte, porém, Ray consegue fechar com dignidade o arco da história de Apu e presentear o mundo com uma das melhores trilogias da história do cinema; e
- “O espírito da colmeia” (1973), clássico do cinema espanhol que merece toda a atenção. Onírico, de narrativa “solta”, o filme de Victor Erice - que conta com apenas 2 longas-metragens numa carreira de 60 anos - traça um balanço da psiquê coletiva espanhola nos últimos anos da ditadura franquista. A protagonista é uma menina de olhos expressivos (Ana Torrent, que poucos anos depois interpretaria um papel semelhante em “Cria corvos”, de Carlos Saura), que se refugia em sua imaginação para escapar da brutalidade do mundo adulto. Longas cenas, com pouco enredo, capturam o olhar do espectador num filme carregado de poeticidade.
Curiosamente, estes quatro filmes têm como enredo comum o tema da passagem dos protagonistas da infância para a maturidade. É um tema desafiador, brilhantemente retratado em todos eles.
Ainda da Ásia, o terror japonês “Onibaba” (1964) traz belas cenas no meio de um trigal e personagens cada um mais inescrupuloso que os outro, numa história de traições e desejos frustrados. Pode não ser uma história japonesa de fantasmas tão elegante quanto “Contos da lua vaga” (1953), nem tão aterrorizante quanto “Kwaidan, as quatro faces do medo” (1964), mas é capaz de deixar o espectador perturbado depois do final e vale muito ser visto.
Outros filmes, ainda que não tão geniais quanto os mencionados, chamaram minha atenção pelo experimentalismo da linguagem utilizada. Dois títulos do início da carreira de Godard, “Viver a vida” (1962) - que cimentou Anna Karina como a intérprete feminina da "Nouvelle Vague", assim como Jean-Pierre Léaud se tornou o rosto masculino do movimento - e “Masculino-Feminino” (1966), retratam, com uma visão inovadora para a época, a revolta e as contradições da juventude francesa que explodiriam pouco depois, no maio de 1968. Aqui, a “Nouvelle Vague” ainda está explorando a releitura de gêneros cinematográficos norte-americanos, como o documentário social, o melodrama e o cinema noir, e ainda não investiu pela via da desconstrução destrutiva - e, às vezes, ininteligível - que Godard defenderia a partir de “Week-end à francesa” (1967, resenhado AQUI).
Outro francês inovador, ainda que inserido na lógica romanesca pré-“Vague”, é “Trágico amanhecer” (1939), dobradinha de Marcel Carné (diretor de um de meus filmes preferidos, “O boulevard do crime”, 1945, resenhado AQUI) e a estrela da época, Jean Gabin. Numa narrativa que intercala o tempo presente com fatos passados, uma novidade na época, Carné filma um homem encurralado pela polícia num apartamento, que lembra dos fatos que o levaram a cometer um assassinato. O olho do diretor para o “noir” e a ênfase em personagens bem definidas, demonstrada em “Boulevard...” e “Cais das sombras” (1938), fazem de “Trágico amanhecer” um filme policial pioneiro não apenas na cinematografia francesa, mas também para o cinema americano.
Desta safra, gostei de dois filmes mudos, apesar de não serem tão memoráveis quanto outros da lista dos “1001 filmes...”. “Órfãs da tempestade” (1921), dramalhão do venerando D. W. Griffith, traz as atrizes-fetiche do diretor, as irmãs Lilian e Dorothy Gish, numa história de desencontros durante a Revolução Francesa. É realizado com a costumeira excelência técnica de Griffith, mas falta a ousadia que o diretor demonstrou em outras obras melhores, como “Intolerância” (1916) e “Lírio partido” (1919, resenhado AQUI). Já “Sunita” (1921), dirigido pelo alemão Franz Osten, é um filme indiano “antes da Índia”, já que foi lançado enquanto o país ainda estava sob o jugo britânico. Apresenta estereótipos demais, como o marajá nobre, a princesa indefesa e o vilão ardiloso, mas, descontando as insensibilidades culturais típicas de sua época, dá até pra assistir.
Comento ainda três títulos europeus, em ordem de qualidade:
- “Os cavalos de fogo” (1965), do grande Sergei Parajanov, conhecido pelo clássico “A cor da romã” (1969). Apesar de não tão importante quanto este último, “Os cavalos de fogo” é um ótimo exemplar da obra de Parajanov, que usava histórias do folclore eslavo - aqui, uma história de Romeu e Julieta nas estepes, com bruxaria misturada no meio - como veículo para cenas de visual arrebatador. “Travellings”, “dollies”, atores com rostos fellinianos e closes lânguidos: o diretor faz jus à sua reputação como um dos maiores poetas visuais do cinema soviético;
- “O amigo americano” (1973), de Wim Wenders. Apesar de carregar no lado esquerdo do peito filmes como “Asas do desejo” (1987) e “Paris, Texas” (1984), não sou grande fã de Wenders, que frequentemente parece estar mais preocupado em emular um estilo cinematográfico do que em narrar uma história. O maneirismo do alemão, porém, funciona bem em “O amigo americano”, adaptado de um dos romances de Patricia Highsmith estrelado pela grande personagem Tom Ripley. As convenções do cinema noir se encaixam, lembrando um bom Hitchcock. Aqui, Dennis Hopper está surpreendentemente contido como Ripley, fazendo par - numa tensão homoerótica nunca consumada, mas sempre insinuada - com Bruno Ganz, excelente no papel de um emoldurador manipulado para cometer um assassinato. O “eurothriller” às vezes se arrasta, mas o resultado final acaba sendo satisfatório; e
- “Cinzas e diamantes” (1958), de Andrzej Wajda. Última parte da trilogia do diretor sobre a Polônia na Segunda Guerra Mundial, o filme narra, com toques de “Nouvelle Vague”, no tocante à amoralidade dos personagens e às digressões semi-filosóficas, o planejamento de um atentado de guerrilheiros poloneses contra um oficial nazista. É um bom filme de espionagem, com inovações técnicas para a época, mas talvez um pouco superestimado. Gostei mais dos filmes posteriores de Wajda, como “O homem de mármore” (1977, resenhado AQUI).
Para encerrar, comento um filme americano memorável, “Marty” (1955). Um dos primeiros sucessos independentes do cinema dos EUA, o filme foi responsável por lançar Ernest Borgnine como anti-galã simpático e abrir caminho para a produção de filmes de baixo orçamento com qualidade, que não retratassem monstros ou ameaças alienígenas. Narrando a história de um simples açougueiro de Nova York que busca o par ideal, e o encontro dele com uma moça comum - interpretada perfeitamente por Betsy Blair -, “Marty” vaza realismo pelos poros; as filmagens ocorreram em locações reais e os diálogos soam genuínos, assim como os dilemas cotidianos da pequena classe média novaiorquina. Trata-se de um filme que foge do pieguismo que afligia boa parte do cinemão norte-americano dos anos 50, com a exceção de um Douglas Sirk ou um Nicholas Ray. “Marty” é engraçado, comovente e real, ou tão real quanto um filme pode ser, um exemplar digno da busca pelo humano que toda obra de arte deveria empreender.
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