Resenha: "A guerra do fim do mundo" (1981)
Há livros que representam verdadeiros pontos de inflexão em nossa vida cultural. A leitura d´“Os sertões” de Euclides da Cunha foi, para mim, um desses marcos. Tudo no livro é antológico: a linguagem cientificista, tão em voga na época do lançamento e que Euclides eleva ao ponto da excelência poética; a descrição detalhada da geografia do sertão e da formação humana do sertanejo, culminando na crônica da Guerra de Canudos; e o testemunho pessoal do autor, que, longe de corroborar a narrativa oficial de civilização “versus” barbárie, levanta numerosos pontos de interrogação sobre o embate entre soldados e jagunços.
Ao final da leitura, eu havia chegado à conclusão que Euclides tinha esgotado o assunto. Pensei que ninguém teria a maestria necessária para retratar novamente o conflito em Canudos com o mínimo de talento que o tema exige. Felizmente, eu estava enganado. Foi necessário um peruano para dissecar, desta vez no âmbito ficcional, o episódio ocorrido no sertão do Brasil em 1897.
Mario Vargas Llosa, Nobel de literatura em 2010, lançou “A guerra do fim do mundo” em 1981. Era seu sexto romance e, para alguns, o melhor de sua carreira. Inspirado por “Os sertões” e amparado em extensa pesquisa, Vargas Llosa entrelaçou personagens reais e ficcionais numa narrativa complexa para contar, ao seu modo, a tragédia de Canudos. O resultado é um livro empolgante e intenso, que ora evoca um romance de ideias, ora um folhetim de faroeste de banca de revista, ou, ainda, um ensaio antropológico sobre o sertão brasileiro.
Ainda que conte com novecentas páginas, o livro mantém o ritmo em sua maior parte. Vargas Llosa mostra simplicidade e concisão na linguagem, especialmente na descrição física e psicológica dos personagens. De tão bem traçados, personagens reais como Antônio Conselheiro e o coronel Moreira César, assim como os ficcionais Galileu Gall e um jornalista baiano sem nome, tomam vida e preenchem páginas com suas contradições e seus motivos para tomar parte no conflito de maneira extremamente convincente.
Um tema recorrente - e que também pode ser encontrado na obra de Euclides - é a análise velada da suposta justiça da Guerra. Qual lado, afinal, é o certo? O governo da então jovem República brasileira, que pinta os jagunços de Canudos como rebeldes fanáticos e monarquistas? Ou os sertanejos de Canudos, refugiados de uma realidade miserável, que acreditam lutar contra a opressão governista em nome da justiça divina? Deus luta em qual trincheira?
Não há espaço para respostas fáceis no romance. De forma cuidadosa, Vargas Llosa descreve tanto soldados e jagunços como responsáveis por atos de generosidade e barbárie, como criaturas profundamente humanas e, por isso mesmo, paradoxais. O que une os dois lados parece ser a incapacidade de transcender a violência que marca a vida no sertão. Quanto a isso, nem as prédicas do Conselheiro, nem o positivismo da República brasileira parecem ser capazes de resolver.
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