Desafio “1001 Filmes” - nos. 20 a 24





20) “O boulevard do crime” (“Les enfants du paradis”, 1945)

Poucas vezes um cinéfilo assiste um filme e se dá conta de que está diante de um clássico, daqueles que justificam os irmãos Lumière terem inventado aquela caixinha estranha. “2001, uma odisseia no espaço” é um clássico; “Ran” é um clássico; e “Les enfants du paradis”, indubitavelmente, é um clássico. Citado por dez entre dez críticos franceses como um dos melhores filmes já realizados, o filme traz uma daquelas histórias rocambolescas, que parecem contadas por Victor Hugo ou Alexandre Dumas. No século XX, porém, esse bardo recebe o nome de Jacques Prévert, não apenas um grande roteirista como também um dos maiores nomes da poesia francesa no século passado.

Ambientado no mundo do teatro francês do início do século XIX, “O boulevard…” reconstitui durante três horas - que parecem voar, aliás, de tão fluido que é o filme -, os encontros e desencontros de três homens - o ator canastrão Frederick Lemaître, o sensível mímico Baptiste Debureau e o criminoso Lacenaire -, apaixonados pela mesma mulher, Claire Garance (interpretada pela cantora Arletty, famosa em seu tempo). Todos os atores estão perfeitos em suas interpretações, assim como a luxuosa produção nos atira nas ruas sujas da Paris de 1830 - fato impressionante, especialmente considerando que o filme foi rodado no difícil cenários da França ocupada pelos nazistas -, mas a estrela é mesmo o texto de Prévert. Ousado e criativo, até hoje o roteiro mantém seu charme, com frases memoráveis e personagens que parecem continuar vivos setenta anos após o lançamento do filme.

(Nota no IMDb: 8,3)


21) “Aileen: life and death of a serial killer” (2003)

Aqui temos um documentário com estrutura convencional, mas que envolve enormemente o espectador. Desviando-se da trilha seguida por incontáveis documentários sobre “serial killers”, o diretor Nick Broomfield deixa em segundo plano os crimes de sua protagonista - Aileen Wuornos (1956-2002), considerada a primeira assassina em série dos EUA - para retratar sua vida torturada, realizando, ao mesmo tempo, um “acerto de contas” com o primeiro longa que dirigiu sobre Wuornos (“The selling of a serial killer”, de 1992, que também figura na lista dos “1001 filmes para ver antes de morrer”). 

Condenada na Flórida por matar sete homens, Wuornos virou uma atração no circo da mídia dos EUA. Os investigadores de seu caso foram acusados de vender sua história para revistas sensacionalistas e estúdios de Hollywood (de fato, foram realizados dois filmes sobre o caso, incluindo “Monster”, onde a interpretação de Charlize Theron rendeu um Oscar de melhor atriz). Broomfield denuncia a exploração do caso por policiais e advogados, ao mesmo tempo em que humaniza a figura de Wuornos, apresentando seu histórico de abuso por familiares e namorados. Ao final, o diretor parece nos dizer, não há explicações fáceis para a psicose humana.

(Nota no IMDb: 7,1)


22) “Os melhores anos de nossas vidas” (“The best years of our lives”, 1946)

Fruto da colaboração de dois figurões dos anos áureos de Hollywood (o diretor William Wyler, responsável por “Ben-Hur”, e o produtor Samuel Goldwyn) e com um elenco de estrelas da época como Fredric March, Dana Andrews e Myrna Loy, à primeira vista “Os melhores anos de nossas vidas” lembra um daqueles dramalhões que arranca lágrimas e Oscars (de fato, foi o campeão do Oscar no ano de seu lançamento). Visto de perto, porém, o filme se revela um drama honesto, com direção de fotografia excepcional (obra do grande Gregg Toland, de “Cidadão Kane”) e personagens bem construídas.

O conflito aqui é a tentativa de três veteranos da Segunda Guerra Mundial de se readaptarem à vida civil. Num raro caso nos roteiros da época, os protagonistas vem de diferentes classes sociais - March, por exemplo, interpreta um banqueiro, enquanto Andrews é um balconista de farmácia -, o que oferece tensões sociais que enriquecem a trama. Infelizmente, o terço final do filme resvala para o chororô, focando no romance proibido entre a filha rica de March (vivida por Teresa Wright) e o pobretão Andrews. Ao final, as melhores interpretações são de Harold Russell (o único amador do elenco, que era, de fato, um veterano que perdeu as duas mãos na guerra) e March, um dos raros exemplos de galã dos anos 30 que conseguiu abandonar o estilo teatral e pomposo dos primeiros anos do cinema falado (como em “Os miseráveis”, de 1935) para abraçar uma interpretação mais realista.


23) “A vingança do ator” (“Yukinojô henge”, 1963)

Às vezes, valorizamos demais o suposto tom “realista” dos filmes e livros que experimentamos. A frase “baseado em fatos reais” parece um mantra que ajuda a atrair espectadores, fascinados pela oportunidade de dar uma espiada na vida privada de celebridades e desconhecidos. Por outro lado, esquecemos que toda construção narrativa - seja por meio do cinema ou da literatura - é, antes de tudo, obra do talento do artista em reordenar elementos da realidade para nosso deleite. Há muito mais “invenção” onde vemos apenas uma suposta “recriação” da realidade do que imaginamos.

“A vingança do ator” - produzido, em princípio, para celebrar a longa carreira do icônico ator Kazuo Hasegawa - tem muito de estilizado e pouco de real. O grande diretor Kon Ichikawa - responsável por “A harpa birmanesa” (1956), um dos melhores filmes japoneses do pós-guerra - usa um grande repertório de efeitos visuais (cenários falsos, sombras e até “wipe”) para contar uma história de vingança de um ator do “kabuki”, teatro popular japonês, contra seus inimigos. O destaque, claro, é de Hasegawa, que interpreta o vingador como um homem de sexualidade ambígua: ao mesmo tempo em que circula “montado” como uma mulher, o ator seduz a bela filha de seu inimigo. 

“A vingança do ator” pouco ou nada tem de real: trata-se, isso sim, de um espetáculo visual estilizado, repleto de cores vibrantes, personagens caricatas e reviravoltas que parecem saídas de uma peça de teatro burlesco. Esse sentido de espetáculo, que o filme abraça sem reservas, transforma o que poderia ser mais uma história de samurais numa prova da grande capacidade do cinema japonês de surpreender e encantar.

(Nota no IMDb: 7,6)


24) “Mortalmente perigosa” (“Gun crazy”, 1950)

Ao contrário dos outros filmes desta “rodada”, “Mortalmente perigosa” não é um drama oscarizado ou um espetáculo visual. Aliás, os filmes de seu diretor, Joseph H. Lewis, são mais adequados a cinemas decrépitos de bairro, exibindo filmes policiais de segunda categoria. Isso pode parecer um desaforo, mas não é. Assim como Roger Corman e Samuel Fuller, Lewis era conhecido por dirigir fitas de baixo orçamento com atores desconhecidos, histórias ágeis e muita criatividade técnica. “Mortalmente perigosa” seria sua “obra-prima”, um filme adequado à sua época, quando reinavam o cinema “noir” e as “femme fatales”.

O argumento é simples: um atirador de elite se junta a uma artista de circo e, juntos, cometem uma série de roubos e mortes que os fazem ser perseguidos por todo o país. A história (co-roteirizada, por MacKinlay Kantor, argumentista de “Os melhores anos de nossas vidas”, e Dalton Trumbo, proscrito pelo macartismo) oferece diversos momentos de tensão, como o audacioso roubo do casal a um frigorífico. A sequência, tecnicamente impecável, serviu como prenúncio a outros filmes posteriores sobre crimes (sua influência pode ser vista, por exemplo, em “O grande golpe”, de Kubrick, lançado em 1956). 

O roteiro de “Mortalmente perigosa” está longe de ser um primor, e a premissa de “mulher bonita corrompe o homem bom” já era esgotada até na época do lançamento, mas o filme ainda entretém com diálogos sensacionalistas como este, em que o protagonista fala à sua parceira de crimes: “nós combinamos como armas e munição, Annie”.

(Nota no IMDb: 7,7)


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