A(s) última(s) sessão(ões) de cinema (1001 filmes, de 144 a 172)


     Minha paixão pelo cinema se manifesta de forma febril e voraz. Sinto vontade de ver filmes de todos os gêneros, rodados em todos os países em todas as épocas, tudo ao mesmo tempo. De maneira até atabalhoada, posso ver uma comédia inglesa dos anos 50 e, logo em seguida, um filme de terror italiano dos anos 70, ou um expressionista alemão dos anos 20, ou ainda um de ação dos anos 90. Nunca encontro em mim o rigor necessário, por exemplo, para assistir, do começo ao fim, a cinematografia completa de um cineasta ou de uma escola estética específica - "nouvelle vague", Cinema Novo, Dogma 90, etc. -, como alguns apreciam. Sinto que meus olhos pedem novidades constantes em termos de linguagem visual e métodos de atuação. Nesse sentido, só consigo assistir aos títulos da lista dos "1001 filmes para ver antes de morrer" de forma aleatória. O que poderá parecer caos aos olhos de alguns se traduz em enorme fonte de prazer para mim, ao me deparar com tantas formas diferentes de narrar histórias através de imagens.




Nestes últimos meses, encerrado em casa devido à pandemia, fiz lentos e, na maioria das vezes, agradáveis avanços na lista. No terror, por exemplo, um de meus gêneros favoritos, gostei muito de "A morta-viva" ("I walked with a zombie", 1943) de Jacques Tourneur, um pioneiro do terror psicológico, também responsável por "Sangue de pantera" ("Cat people", 1942) e "A noite do demônio" ("Night of the demon", 1957), onde os sustos aparecem de forma subliminar. "Piquenique na montanha misteriosa" ("Picnic at Hanging Rock", 1975), como o filme de Tourneur, retrata um mistério elegante, quase gótico, envolvendo o desaparecimento de um grupo de jovens numa montanha na Austrália. Menos satisfatórios foram "Desafio do além" ("The haunting", 1963) - que originou a superior série da Netflix, "The haunting of Hill House" - e "O vampiro da noite" ("Horror of Dracula", 1958), tidos como clássicos do gênero mas que, cada um à sua maneira - o primeiro pelas poucas cenas verdadeiramente assustadoras, o segundo pela produção "camp" típica dos filmes dos estúdios Hammer nos anos 50 e 60 -, não estão à altura de sua fama.




A seleção esteve melhor no gênero ação/policial. Do clássico mudo de Fritz Lang, "Dr. Mabuse, o jogador" ("Dr. Mabuse, der Spieler", 1922) - um estudo psicológico fascinante do personagem-título, um gênio amoral do crime -, à atmosfera "noir" de "Até à vista, querida" ("Murder, my sweet", 1944) - tendo como protagonista o maior dos detetives "noir", Philip Marlowe -, "À meia luz" ("Gaslight", 1944) - que traz uma boa atuação de Ingrid Bergman - e "A sombra de uma dúvida" ("Shadow of a doubt", 1943), dou destaque para este último, talvez o melhor filme de Hitchcock antes dos clássicos que realizou nos anos 50, como "Um corpo que cai" e "Janela indiscreta". Joseph Cotten interpreta um personagem de moral ambígua, amado pela família e, ao mesmo tempo, um frio assassino em série. "Na mira da morte" ("Targets", 1968), por sua vez, me impressionou com o talento precoce de Peter Bogdanovich, que sustenta muito bem seu primeiro longa ao retratar a estranha conexão entre um jovem atirador e um ator aposentado de filmes de terror (interpretado por Boris Karloff, o eterno Frankenstein). "Homens indomáveis" ("Silver lode", 1954) é um razoável faroeste "B", talvez inspirado no sucesso de "Matar ou morrer" (1952), no qual um homem (John Payne) deve provar sua inocência ao mesmo tempo em que foge de um falso xerife. "Terra de ninguém" ("Badlands", 1973), a estréia de Terence Malick, já demonstra a tendência do diretor para a reflexão e as imagens poéticas da paisagem norte-americana. Lançados mais recentemente, "Paradise now" (2005) é um suspense sensível sobre o conflito israelo-palestino, narrado através da amizade de dois jovens candidatos a homens-bomba, e "Os invencíveis" ("Joheunnom nabbeunnom isanghannom", 2008) é um filme de ação sul-coreano tresloucado, que tem sequências de ação bem produzidas mas peca ao apresentar personagens com pouco ou nenhum desenvolvimento dramático, o que descamba no tédio e na falta de empatia com o espectador.





Quanto às comédias, a melhor foi "Caro diário" (1993), uma leitura bem-humorada do  excelente diretor Nanni Moretti sobre temas variados como a urbanização de Roma e um tratamento contra o câncer. Também vi "O casamento de Muriel" ("Muriel´s wedding", 1994), comédia dramática australiana com a jovem Toni Collette tentando encontrar o amor e a riqueza, e "A rede social" ("The social network", 2010), releitura da ascensão do criador do Facebook, Mark Zuckerberg, curiosamente o filme mais leve da carreira de David Fincher mas inferior aos títulos mais "pesados" dele, como "Seven" e "Zodíaco". "Conversa truncada" ("In the loop", 2009), é uma comédia política inglesa divertida, mas muito centrada nos eventos do envolvimento britânico na invasão do Iraque, em 2003, que não envelheceu muito bem. Em "Lady Bird: a hora de voar" ("Lady Bird", 2017), a atriz Greta Gerwig (ótima em "Frances Ha") filma um drama autobiográfico sobre uma jovem (Saoirse Ronan) que tenta sair do ninho familiar. Bom e despretensioso, ainda que um pouco piegas. E "Picardias estudantis" ("Fast times at Ridgemont High", 1982), "clássico" juvenil dos anos 80, traz papéis icônicos de Sean Penn, Jennifer Jason Leigh e Phoebe Cates, em vinhetas sobre jovens enfrentando as ansiedades da escola e da puberdade, ainda que seja menos relevante que outros títulos da mesma estirpe, como "O clube dos cinco" (1985) e "Curtindo a vida adoidado" (1986).





"O franco atirador" ("The deer hunter", 1978) ainda é um dos grandes dramas sociais do cinema americano, na linhagem d´"O poderoso chefão". A história dos amigos de uma comunidade de imigrantes russos nos EUA que vão lutar no Vietnã - interpretados, entre outros grandes atores, por Robert de Niro, Christopher Walken e John Cazale - ainda serve como um relato fiel da crise espiritual que a sociedade americana passou nos anos 70. Em outro país, na mesma época, "As lágrimas amargas de Petra von Kant" ("Die bitteren Tränen der Petra von Kant", 1972) traz o roteiro do genial Fassbinder, narrando a degradação moral de uma estilista de moda diante de seu amor fracassado por uma assistente. A interpretação magistral de Margit Carstensen no papel-título não fica nada a dever às maiores heroínas de Bergman. Mais tradicional é o dramalhão "O jardim dos Finzi Contini" ("Il giardino dei Finzi Contini", 1970), um dos últimos filmes de Vittorio De Sica, que, com sua costumeira sensibilidade às transformações históricas da Itália, retrata os últimos anos felizes de uma família judia antes da devastação fascista. "Orelha" ("Ucho", 1990) é um interessante filme tcheco experimental sobre a atmosfera de paranoia na era comunista, filmado em 1970 mas proibido até a queda da URSS, uma espécie de precursor monocromático de "A vida dos outros" (2006). "Fogo de outono" ("Dodsworth", 1936), dirigido por William Wyler (o mesmo de "Os melhores anos de nossas vidas", resenhado aqui), exibe uma relação conjugal avançada para a época, em que um marido convive com as escapadas amorosas da esposa. Finalmente, "As quatro irmãs" ("My brilliant career", 1979) é um drama australiano de temática feminista, narrando a trajetória de uma jovem do meio rural que sonha em ser escritora, em interpretação magistral de Judy Davis.





O panorama relâmpago pelo cinema durante estes meses sombrios da pandemia se completa com quatro excelentes documentários, que representam marcos do gênero: "O triunfo da vontade" ("Triumph des willens", 1935), clássico da propaganda nazista dirigido por Leni Riefenstahl, que revolucionou o papel do cinema como manipulador de corações e mentes do público; "Francis Ford Coppola - O Apocalipse de Um Cineasta" ("Hearts of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse", 1991), o "making of" para acabar com todos os outros "making ofs", retratando a caótica filmagem de "Apocalypse Now" (1979); "Nostalgia da luz" ("Nostalgia de la luz", 2010), lindo documentário do veterano chileno Patricio Guzmán, que consegue, de forma quase milagrosa, fundir temas tão díspares quanto a astrofísica e a busca pelas vítimas da ditadura de Pinochet; e "Dawson City: frozen time" (2016), um documentário feito quase exclusivamente com imagens de arquivo, retratando filmes encontrados numa cidade da "febre do ouro" do final do séc. XIX, oferecendo uma reflexão multifacetada sobre a imagem, a memória e o cinema. 


Imagens tão especiais quanto díspares, que atravessam os continentes e as doze décadas do cinema. Esses filmes me deram algum alento durante os últimos meses. Quais filmes que você tem visto na pandemia que ficaram com você? 



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