1001 Filmes: de 173 a 177

 


173) "Ladrão de alcova" ("Trouble in paradise", 1932)

    Nos anos 20 e 30, o alemão Ernst Lubitsch era o rei das comédias "finas", onde condes e ricaços trocavam tapas de luvas de pelica e o humor pastelão de filmes como os do Gordo e o Magro dava lugar a trocadilhos e alfinetadas sutis. Em 1932, antes de dirigir "Ninotchka" (1939) - deliciosa comédia cujo maior atrativo era ver a sisuda sueca Greta Garbo sorrindo - e "Ser ou não ser" (1942, resenhado aqui), o diretor lançou "Ladrão de alcova", mais um filme com o "toque Lubitsch". Um ladrão galante, estilo Arsène Lupin, junta forças com uma trambiqueira para roubar o dinheiro de uma ricaça herdeira de uma fábrica de perfumes. O enredo é o de menos; melhor é se deliciar com a sucessão quase interminável de "gags" verbais e ironias visuais raras para um filme desse período. Genuinamente engraçado, o filme ainda traz cenas ousadas em que adultos falam quase abertamente de sexo, poucos anos da implementação do Código Hays, que tornaria Hollywood muito mais careta até os anos 60.



174) "Lincoln" (2012)

Steven Spielberg parece ter dupla personalidade. Por um lado, ele é o produtor e diretor responsável por obras empolgantes como "Tubarão" (1975), "O resgate do soldado Ryan" (1998) e "Munique" (2005), isso quando não realiza clássicos modernos, como "E.T." (1982); por outro, também dirigiu bobagens lacrimosas e esquecíveis como "Amistad" (1997), "Hook, a volta do capitão Gancho" (1991) e "O terminal" (2004). Sua versão da história de Abraham Lincoln fica no meio do caminho: se, por um lado, conta com a mão segura de um diretor experiente - que não desperdiça uma grande atuação de Daniel Day-Lewis, provavelmente o melhor ator de sua geração -, trata-se de mais um filme redondinho e bem-acabado de Spielberg. 

Há escolhas dramáticas interessantes em "Lincoln", como nas cenas de gabinete em que o personagem-título e seus assessores costuram, de forma ardilosa, a aprovação da 13a. emenda à Constituição norte-americana, que libertou os escravos nos EUA em 1865. Lincoln aqui está mais próximo de uma raposa política do que de sua figura idealizada de "libertador dos escravos", o que não deixa de ser uma deconstrução interessante do mito. Por outro lado, Spielberg deixa o elenco coadjuvante de forma bidimensional, nunca desenvolvendo os conflitos no segundo plano - em especial, o dos escravos que estão sendo usados como moeda de troca para o encerramento da Guerra Civil entre o norte e sul dos Estados Unidos. A perspectiva da população negra, obviamente a mais afetada pela emenda constitucional, nunca é explorada além da meia dúzia de falas da dama de companhia (negra) da primeira-dama. Ao final, "Lincoln" é um bom drama de época com uma interpretação magistral em seu centro, mas que não consegue ultrapassar a pieguice que contamina alguns dos filmes de Spielberg.



175) "A face oculta" ("One-eyed jacks", 1961)

O único filme dirigido por Marlon Brando, que assumiu o comando quando Stanley Kubrick abandonou a produção, é um híbrido estranho de faroeste com romance psicológico. A sinopse aparentemente pedestre - um ladrão traído por seu parceiro jura vingança - oculta personagens ambíguos e falhos, que tropeçam em suas intenções sempre que tentam sair por cima. Apesar de certa pretensão artística, prejudicada pela inexperiência atrás das câmeras, Brando consegue dotar a maioria das cenas de tensão e mistério, em especial as que o protagonista confronta o traidor - muito bem interpretado por Karl Malden -, um ladrão tornado xerife de uma cidade costeira. Outro bom elemento é ver personagens femininas fortes, interpretadas pelas mexicanas Katy Jurado e Pina Pellicer, capazes de desafiar os homens num gênero normalmente machista até a medula. Apesar dos minutos finais insatisfatórios - provável resultado do conflito entre Brando e o estúdio, que encurtou consideravelmente a edição final do filme -, "A face oculta" é um exemplar estranho do faroeste, sendo "estranho" aqui um elogio.



176) "O gato preto" ("The black cat", 1934)

    Apesar do "status" de clássico do terror, este título que reúne as duas maiores estrelas do gênero até então - Bela "Drácula" Lugosi e Boris "Frankenstein" Karloff - serve mais como uma curiosidade do que como um filme de peso. Numa mansão misto de residência modernista com masmorra medieval, dois rivais se enfrentam pela vida de um casal que se encontra ali por acaso. No meio, há um arremedo de história envolvendo a Primeira Guerra Mundial, um cemitério e adoradores do diabo, mas tudo é mal abordado e confuso na curta (1h05) duração do filme. Até o título "O gato preto", extraído de um conto clássico de Edgar Allan Poe, soa falso pois o roteiro não tem nada a ver com a narrativa do mestre literário do suspense. Tirando uma ou outra cena mais ousada de violência, há pouca coisa aqui digna de nota.




177) "A tênue linha da morte" ("The thin blue line", 1988)

Precursor dos documentários sobre crimes que hoje pululam na Netflix, este documentário do premiado Errol Morris (responsável por alguns clássicos do gênero, como "Sob a névoa da guerra", 2003) foi pioneiro no uso da reconstituição dramática para recriar a cena de um crime. No caso em questão, Morris disseca o assassinato de um policial em 1976, apresentando com rigor o processo que condenou um inocente pelo crime. Tanto rigor, aliás, que o filme acabou sendo fundamental para reabrir o julgamento do caso e, anos depois, absolver o acusado. Em seu estilo costumeiro, o diretor narra a história exclusivamente através dos depoimentos dos entrevistados, auxiliado pela trilha sonora hipnótica de Philip Glass e misturando sequências com objetos (mapas, relógios, carros em câmera lenta) que evocam a atmosfera de tensão dos melhores dramas policiais. Mesmo 30 anos depois de lançado, e imitado à exaustão por longas e séries documentais como a popular "Making a murderer" (2015), da Netflix, "A tênue linha da morte" ainda impressiona.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Desafio "1001 filmes": 44 a 48

A educação pela pedra

. . .