1001 filmes: de 99 a 103


99) “Dog star man” (sem título em português, 1964)

No início dos anos 60, o artista visual norte-americano Stan Brakhage dirigiu quatro curtas-metragens mudos experimentais que reuniu posteriormente em “Dog star man” (“cachorro estrela homem”). Em se tratando de um filme experimental, não há um enredo facilmente discernível, apenas fragmentos. Vemos imagens em rápida sucessão do que parecem ser explosões solares, um nu feminino e um homem que tenta subir uma montanha nevada com seu cachorro. O fluxo de imagens é furioso, de tirar o fôlego: antes de termos definido um significado para uma imagem, logo surge outra em seu lugar, assim como imagens justapostas, figuras abstratas, massas de cores (com o uso de tinta aplicada diretamente sobre película), árvores, um bebê, etc.

O resultado poderia ser uma banal instalação de arte, mas não é. A obra de Brakhage, que trabalhou ao lado de sua esposa no filme, exige uma mercadoria rara de seu espectador: a arte da contemplação com olhos desarmados. Sua mente vagueia em torno do filme, perambulando por um oceano de signos e possíveis significados, suscitando mais emoções do que expectativas de reconhecimento. Somos apresentados a imagens vibrantes e convidados a oferecer nossa própria interpretação, um jogo instigante que faz com que “Dog star man” seja uma memorável experiência visual.

(filme integral, sem som: https://www.youtube.com/watch?v=NAoTHILzheo
)




100) “A general” (“The general”, 1926)

Obra mais conhecida de Buster Keaton (o “homem do rosto de cera”), e um dos maiores clássicos do cinema mudo, “A general” é comédia física em estado puro. O arremedo de história - durante a Guerra Civil dos EUA, um maquinista persegue soldados inimigos com sua amada locomotiva, apelidada “General” - serve de desculpa para Keaton botar à prática o maior repertório de piadas e “gags” já reunido sobre o mundo ferroviário. As estripulias culminam na impressionante cena de um trem e seus vagões desabando de uma ponte de madeira sobre um rio - a cena mais cara filmada no período mudo.

Infelizmente, a desenvoltura do comediante resvala na falta de um roteiro coeso e de  boas personagens secundárias. Os coadjuvantes de Keaton entram e saem de cena sem consequência, não dedicamos nenhuma simpatia a ninguém exceto o herói. Em decorrência disso, o filme perde força. Nenhuma boa comédia, em especial com duração relativamente extensa (1h40), se sustenta unicamente pela sofisticação de suas piadas visuais. É a lição de Chaplin que Keaton não aprendeu: nos filmes de Carlitos, a mocinha é sofrida e generosa, o vilão é impiedoso, os policiais são bobos, há um mínimo de caracterização e poesia em cada um dos personagens, o que atrai nossa atenção e nosso engajamento emocional para o que se está mostrando na tela. Esses elementos estão ausentes de “A general”, que se preocupa unicamente com o ritmo frenético e a montagem de piadas como esquetes sucessivos. Mas apuro visual e acrobático não é tudo. 

Nesse sentido, Keaton me parece mais sucedido em “Bancando o águia” (“Sherlock Jr.”, filme de 1924 que revisei aqui), um filme com mais coração do que o desnecessariamente longo “A general”.



101) “Se…” (“If…”, 1968)

Recentemente, escrevi sobre “Tudo começou num sábado” (1960 - leia a resenha aqui), filme inglês que deu início ao subgênero “angry young man” (“jovem furioso”) de dramas sociais britânicos. Com o início dos ventos da contracultura nos anos 60, a juventude britânica - a exemplo do que acontecia em outros países do Ocidente - passaram a se revoltar de diversas formas contra o que viam como o conformismo de seus pais frente ao modo de vida capitalista e a antigas tradições. “Se…” talvez seja o maior dos filmes “angry young man” e seu protagonista, Malcolm McDowell então com 25 anos, o mais conhecido dos jovens furiosos.

O filme de Lindsay Anderson é ambientado num tradicional internato para rapazes, que serve de metáfora para o mundo rígido e autoritário dos adultos. Lá, os professores são entidades distantes, inatingíveis; os alunos mais velhos atuam como seus carrascos, espancando e humilhando os colegas mais jovens ao seu bel-prazer; as relações entre os alunos são ditadas pelo darwinismo social e a falta de solidariedade. Em cada segmento do filme, Anderson apresenta um aspecto do repressivo colégio, aumentando a tensão que culminará no célebre final em que McDowell e seus acólitos atacam os poderes constituídos numa rebelião armada, em sequência que lembra Godard pela sua força visual e crítica social. Outra inspiração direta é a revolta estudantil de “Zero de conduta” (1933), de Jean Vigo. 

"Se..." é um filme criativo, não-conformista e, ao mesmo tempo, não-panfletário, à medida que não endeusa o protagonista e seus amigos rebeldes, tornando-o, por isso mesmo, um libelo forte e complexo da contracultura sessentista.


102) “Ponte dos espiões” (“Bridge of spies”, 2015)

A maioria dos títulos da lista dos “1001 filmes para ver antes de morrer” são peças cinematográficas histórica ou artisticamente relevantes. Infelizmente, este foge à regra. Apesar de dirigido por alguém da tarimba de Steven Spielberg e com roteiro dos mestres Joel e Ethan Coen, “Ponte dos espiões” é um drama aborrecido e descartável, pouco melhor que um telefilme histórico para se ver numa madrugada de insônia.

“Ponte dos espiões” é emblemático da fase tardia dos filmes dirigidos por Spielberg, marcada por títulos redundantes como “Cavalo de guerra” (2011) e “As aventuras de Tintim” (2011), com a notável exceção de “Munique” (2005). Tom Hanks, que faz aqui sua centésima encarnação do herói bonzinho e compreensivo “à la” James Stewart, interpreta um advogado norte-americano escolhido para defender um espião soviético preso em Nova York no início dos anos 60, no auge da Guerra Fria. Após a captura de um piloto americano pela União Soviética, o advogado é recrutado pela CIA para negociar uma troca de prisioneiros em Berlim. 

A história, baseada em fatos reais, é interessante e poderia ter dado um belo “thriller” de espionagem, a exemplo de “O espião que sabia demais” (2011). Com a direção açucarada - ainda que tecnicamente impecável - de Spielberg e o roteiro pedestre dos Coen, porém, o filme não acerta sua marca, deixando-se arrastar por uma sequência monótona de acontecimentos até seu previsível final feliz. O único elemento que momentaneamente tira o filme de sua mediocridade é a "blasé" personagem do espião soviético, bem interpretado por Mark Rylance, que encara seu destino com impressionante resignação.



103) “Cupido é moleque teimoso” (“The awful truth”, 1937)

Graças a Deus, o filme é melhor do que a tradução abilolada do título original. Uma das melhores comédias “oddball” produzidas na Hollywood dos anos 30 (a exemplo de “Irene, a teimosa”, de 1936, resenhado aqui), o filme traz Cary Grant em grande forma, tanto na comédia física quanto nas piadas verbais, repleto de “gags” sobre a vida conjugal. Infelizmente, os melhores diálogos ficam com Grant, impedindo que seu par, a boa atriz Irene Dunne, não tenha muita chance de brilhar. 

O roteiro narra a desintegração do casamento de um casal de classe alta e o ciúme que Grant sente quando Dunne começa a sair com um milionário do interior (Ralph Bellamy). Como em outras comédias “oddball”, o ritmo é veloz, as piadas são rápidas e a crítica de costumes é ferina. É um belo exemplo do gênero, apesar da queda de qualidade no terço final do filme. “Cupido é moleque teimoso” (que título, meu Deus…) é comparável a “Irene, a teimosa” mas inferior ao melhor “oddball”, a frenética “Jejum de amor” (1940), que traz mais uma vez Grant como o galã desconfiado e Bellamy como o rival, substituindo Dunne por Rosalind Russell como o interesse amoroso. 


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