1001 Filmes: de 89 a 93
Desde aquela fatídica sessão organizada pelos irmãos Lumière em 1895, o cinema se dividiu em duas grandes tendências. Com seus filmetes que reproduziam cenas banais como a chegada de um trem à estação ou a saída de operários de uma fábrica, os Lumière ressaltavam a importância do cinematógrafo na reprodução do movimento com exatidão, com interesse meramente científico. Por outro lado, outro espectador daquela sessão de cinema, o ilusionista Georges Meliès, deu outro significado à nova arte. Por meio de trucagens, Meliès se especializou em contar histórias mirabolantes, pouco se importando com o aspecto prático da nova geringonça e abraçando a faceta artística do cinema, com toda a liberdade e anarquia que a nova forma narrativa podia proporcionar.
“Les vampires”, cinessérie policial em 10 episódios criada pelo prolífico Louis Feuillade (responsável pelos igualmente populares “Fantômas” e “Judex”, dois dos cerca de 500 títulos que dirigiu), bebe diretamente da fonte de Meliès. Feuillade não tinha qualquer respeito pela verossimilhança: em sua obra, hipnotizadores se fingem de mortos, cadáveres aparecem decapitados em celas trancadas por dentro, heróis perseguem bandidos em tetos de prédios e vilões usam venenos paralisantes, canhões portáteis e mil disfarces para conseguir seus objetivos de maneira absolutamente estapafúrdia e divertida. O fiapo de história - um jornalista aventureiro e seu ajudante trambiqueiro tentam desbaratar uma quadrilha de gatunos - serve meramente como mote para “set pieces” elaborados, como o roubo durante uma festa da alta sociedade em que os “vampiros” espalham gás sonífero pelo salão de festa.
A figura feminina da arquivilã “Irma Vap” - que, de tão icônica, deu nome até a uma popular peça teatral brasileira dos anos 80 - parece uma figura erótica saída de um maço de cigarros. Tudo serve ao espetáculo. A ambiguidade dos personagens é superficial, não há grandes arcos narrativos, cada episódio narra uma batalha entre os mocinhos e os bandidos até o episódio final.
A figura feminina da arquivilã “Irma Vap” - que, de tão icônica, deu nome até a uma popular peça teatral brasileira dos anos 80 - parece uma figura erótica saída de um maço de cigarros. Tudo serve ao espetáculo. A ambiguidade dos personagens é superficial, não há grandes arcos narrativos, cada episódio narra uma batalha entre os mocinhos e os bandidos até o episódio final.
Enquanto, na mesma época, D.W. Griffith estabelecia os rudimentos da linguagem cinematográfica “séria” com “O nascimento de uma nação” (1914) - assim como o princípio do cinema como instrumento de propaganda -, Feuillade concedia tudo ao espetáculo. “Les vampires” é uma viagem alucinante, um eco frenético do primeiro cinema em que a ação parece um desdobramento do teatro de variedades, um “grand guignol” de emoções que duram apenas até o final de cada episódio.
90) “Jezebel” (1938)
Alguns clássicos de Hollywood deixam um gosto amargo na boca, como se tivessem envelhecido mal, deixando nada além de saudades para a platéia atual. É o caso de “Jezebel”, cujo roteiro é tão formulaico e a fotografia, tão esquecível, que chega a dar pena ver bons atores como Bette Davis e Henry Fonda desperdiçarem seu talento num romance pouco imaginativo.
O enredo, adaptado de uma peça sobre uma família rica na Louisiana em meados do século XIX, segue o esquema clássico da mocinha rebelde que, no final, acaba se rendendo às normas da “boa sociedade”. Dirigido por William Wyler (“Ben-hur”, 1959, e “Os melhores anos de nossas vidas”, 1946, resenhado aqui), o filme nunca decola, seja pelas personagens mal definidas ou pelos diálogos pueris. Difícil imaginar que “Jezebel”, na época de seu lançamento, foi visto como um rival de “E o vento levou” (1939), obra infinitamente superior.
91) “Boyhood: da infância à juventude” (“Boyhood”, 2014)
Incensado quando de seu lançamento, “Boyhood” é um filme comovente e bem-dirigido, mas nem de longe uma obra-prima. Sua razão de ser é o fato de ter sido rodado ao longo de 12 anos (entre 2002 e 2014), acompanhando o crescimento de um menino e sua família, interpretados pelo mesmo elenco. Trata-se de um grande feito de persistência por parte do diretor Richard Linklater (dos excelentes “Acordar para a vida”, 2001, e os filmes da trilogia iniciada com “Antes do amanhecer”, lançados em 1995, 2004 e 2013), mas não suficiente para contar uma grande história.
A trajetória do menino Mason (Ellar Coltrane) é contada em estilo “gente como a gente”, com direito a uma mãe esforçada (Patricia Arquette), um pai carinhoso mas ausente (Ethan Hawke) e personagens como padrastos abusivos, amigos e namoradas, coadjuvantes na odisséia do homem comum. Tudo é narrado com grande sensibilidade pelo diretor - que chegou a escalar sua filha como a irmã de Mason -, que consegue dar surpreendente coesão a uma história narrada em soluços ao longo de mais de uma década. Ao final, porém, ficamos com a impressão de termos perdido o fio da meada, ou, ao menos, o motivo da grande odisseia de Mason.
92) “Tudo começou num sábado” (“Saturday night and sunday morning”, 1960)
O cinema inglês dos anos 60 produziu um curioso subgênero do drama social, chamado de “angry young man”. Nessas histórias, estava em evidência a juventude dos bairros operários da Inglaterra, que se sentia alienada da geração de seus pais - que havia visto os horrores da guerra - e, ao mesmo tempo, desejava abraçar os ventos da contra-cultura que vinha dos Estados Unidos e a descrença pela autoridade estabelecida. Diversos atores encarnaram esse arquétipo, como Malcolm MacDowell (“Se…”, 1968), Michael Caine (“O homem que amava as mulheres”, 1966) e Terence Stamp (“O colecionador”, 1965). Mas o maior de todos provavelmente foi Albert Finney, que inaugurou o retrato do “angry young man” em “Tudo começou num sábado” da mesma forma que Marlon Brando criou o modelo do “rebelde sem causa” em “O selvagem” (1953).
Finney, em seu primeiro papel, encarna com perfeição o papel do jovem operário que busca diversão em noites em bares e em casos superficiais com moças. À medida que começa a enfrentar os dilemas da vida adulta - como a gravidez indesejada de uma amante, já casada -, o protagonista começa a meditar sobre suas ações. O filme, dirigido por Karol Reisz, tem uma atmosfera leve e ágil como uma peça de “jazz”, que lembra obras como “Shadows” (1959), de Cassavetes, e “Quem bate à minha porta” (1967), de Scorsese. É um retrato ousado para a época de uma “geração perdida”, cuja única certeza era não repetir os erros de gerações anteriores.
93) “O jogo da guerra” (“The war game”, 1965)
Um dos primeiros “mockumentaries” (falsos documentários) do cinema, “O jogo da guerra” é fruto do cinema engajado do britânico Peter Watkins. Filme-denúncia sobre os horrores de uma eventual guerra nuclear - um cenário que, durante a Guerra Fria, estava bem próximo dos cidadãos da Grã-Bretanha -, o média-metragem (45 minutos) foi produzido pela BBC, mas, devido ao realismo de cenas de cidadãos mutilados pela bomba atômica, acabou engavetado durante anos. Exibido nos cinemas, acabou vencendo o Oscar de Melhor Documentário e suscitando o debate sobre o desarmamento das grandes potências. Uma espécie de pré-“O dia seguinte” (1981), “O jogo da guerra” é obrigatório para quem se interessa pelo poder da propaganda e do cinema como a “arte persuasiva” por excelência.
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