1001 Filmes: de 79 a 83



79) “Saló, ou os 120 dias de Sodoma” ("Salò", 1975)

Muito já se escreveu sobre “Salò”. Ainda assim, o filme parece ser um dos mais incompreendidos da História. Vilipendiado por décadas por suas cenas de violência e escatologia, ele ainda choca e impressiona, mas por outros motivos que não seu suposto “shock value”.
O filme é um conto moral sobre a violência e da submissão absoluta do povo italiano frente ao regime fascista, ainda presente na memória coletiva da época do lançamento, meros trinta anos após o final da Segunda Guerra Mundial. Adaptando uma novela do Marquês de Sade, Pasolini narra a história de quatro autoridades (representando o poder político, religioso, aristocrático e militar) que resolvem se trancar num castelo com rapazes e moças, libertando todas suas perversões sobre os jovens. Daí se sucedem as infames cenas do banquete de excrementos, de pessoas comendo pregos, de sodomia e tortura, que ainda chocam os espectadores desavisados. 
Ainda assim, ao contrário dos filmes de terror “extremo” dos anos 80, como “Holocausto Canibal” (1980) e a série japonesa “Guinea Pig”, não há fetichização da violência em “Salò”, esta não é mostrada como um fim em si mesmo. A experiência parece representar uma caricatura - potente e relevante - dos desmandos do fascismo, servindo como um alerta do que ocorre quando o Estado estende seus poderes aos corpos e à individualidade de seus cidadãos. “Salò” é uma “tour de force”, uma viagem aos limites da moralidade, um espelho distorcido do poder absoluto. Como tal, é um grande e necessário filme.


80) "A história de um trapaceiro" ("Le roman d´un tricheur", 1936)


Um dos primeiros filmes a usar narração em “off” (e usa-a muito bem), o filme é uma excelente comédia com tom dickensiano, sobre a vida de um pobre órfão que se torna um vigarista em Monte Carlo (interpretado pelo ator, roteirista e diretor Sacha Guitry, comediante popular na França na primeira época do cinema falado). O humor do filme é inovador, com uso de metalinguagem, excertos de documentários e humor negro, tornando-o uma espécie de precursor do cinema de Woody Allen. Guitry, de origem russa e radicado na França, está perfeito como o trapaceiro anônimo, que reconta suas desventuras amorosas e seus encontros com personagens excêntricos. Pouco conhecido, “A história de um trapaceiro” traz um excelente roteiro e situações inusitadas.


81) “A batalha de São Pietro <sem título em português>” (“San Pietro”, 1945)

Em início de carreira, o diretor John Huston foi enviado aos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, juntamente com outros cineastas de Hollywood, para ajudar no esforço de guerra. Um dos resultados desse período foi o documentário em curta-metragem “A batalha de San Pietro”, que narra uma vitória militar dos Aliados na Itália, em 1943. Ao longo de seus trinta minutos de duração, o filme exibe, com excelente montagem, a difícil preparação dos soldados, a batalha e a destruição da vila de San Pietro. 
Diferente de outros curtas-metragens do gênero, Huston não usa um tom propagandístico e triunfalista para narrar a vitória americana na batalha, centrando-se na tragédia da guerra e na dor causada aos simples camponeses de San Pietro pela perda de seus familiares e suas casas na batalha. Além disso, os americanos são vistos sofrendo derrotas ao tentarem tomar a vila. Trata-se de um retrato cru e realista da guerra. Não admira que o filme só tenha sido liberado pelo Exército norte-americano para exibição dois anos após sua conclusão.



82) “Atlantic City” (1980)

Três coisas são necessárias para um bom filme: roteiro, roteiro e roteiro. A frase é um exagero, claro, mas a importância do roteiro como a coluna vertebral que mantém coesos todos os elementos de um filme não pode ser superestimada. “Atlantic City” deixa isso claro, ao apresentar um texto com todos os elementos do cinema clássico narrativo hollywoodiano - estrutura em três atos, apresentação, problematização, resolução - de forma eficiente. Claro, ajuda ter excelentes atores como Burt Lancaster e Susan Sarandon no elenco, assim como a direção experiente de Louis Malle (“Ascensor para o cadafalso”, 1958).
O filme tem ecos de Robert Altman em sua habilidade de saltar de um núcleo dramático para outro sem sobressaltos. Lancaster e Sarandon interpretam vizinhos num prédio no centro de uma reforma urbanística da cidade costeira Atlantic City, conhecida por seus cassinos. O veterano Lancaster, em um de seus melhores papéis, vive um gângster velho e decadente que sonha com seus dias lendários de crime em Las Vegas. Sarandon, por sua vez, é uma jovem que quer se tornar uma crupiê num cassino mas acaba envolvida numa trama de crimes com a chegada de seu ex-marido trambiqueiro. Em seu roteiro, John Guare - autor da peça “Seis graus de separação” (1993) e de seu roteiro adaptado -, satiriza a nostalgia americana pelos “dias dourados” de outrora, diante do interessante cenário de uma cidade podre em desagregação física e moral.



83) “Rosetta” (1999)

O espírito de “Rosetta” reside na personagem-título, interpretada brilhantemente pela estreante Émile Dequenne. Ela está presente em todas as cenas, quase sempre em plano médio ou close-up. A câmera naturalista dos irmãos Dardenne (conhecidos por seus filmes de temática social, retratando marginalizados da sociedade) exibe a difícil jornada da heroína, que mora num trailer numa cidade belga com a mãe alcoólatra, enquanto procura emprego para se sustentar. A situação de Rosetta é precária, porém, em momentos preciosos - quando protesta com a mãe por se prostituir em troca de bebida, por exemplo -, ela demonstra dignidade diante da adversidade. Ainda assim, a pressão social e psicológica é grande demais, e ela acabará cometendo uma traição em nome da sobrevivência. 
“Rosetta” é um filme extremamente realista, de poucos diálogos, que depende da força das imagens, filmadas em estilo documentário-verdade, e da força de sua protagonista para funcionar. Funciona como uma grande crítica ao capitalismo selvagem, com seus personagens se engalfinhando para conseguir migalhas do sistema laboral, mas também como instrumento de empatia com as classes mais pobres. “Rosetta” talvez seja mais instigante que os filmes de Ken Loach, outro grande cineasta de questões sociais mas mais dependente das convenções do cinema clássico narrativo do que os irmãos Dardenne. Não à toa, o filme venceu a Palma de Ouro e o prêmio de melhor atriz para Dequenne em Cannes em 1999.



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