A educação pela pedra

"Castelo nos Pirineus", René Magritte


Conheci o poema “A educação pela pedra” apenas muito depois de praticar minha própria educação pela pedra. Acho que o Recenseador também não o conhecia, e duvido que já tivesse lido alguma coisa de João Cabral de Melo Neto. Não importa. Ele aprendeu.

Antônio Conselheiro dizia que o censo era um instrumento do Cão, assim como a República e o sistema de pesos e medidas. Conselheiro era um alucinado. Eu, não. Sou lúcido. Lucidíssimo. Convidei o rapaz para entrar e beber um café enquanto fazia suas perguntas. Não tenho problema com censos. Eles nunca chegam a nenhuma conclusão que valha a pena, mesmo.

Levei-o até o barracão ao lado de casa. Creio que desconfiava de algo quando pedi que entrasse primeiro, mas não podia se recusar a entrar. Entrou. Estava escuro, mas ele conseguiu ver o poço cavado no meio do barracão pois deteve o passo pouco antes de cair. Pena que eu estava logo atrás dele, e lhe dei um safanão tão grande que seu corpo chegou a bater no outro lado do buraco, antes de despencar em meio a um grito desesperado. Ouvi uma pancada seca e silêncio.

Muito tempo se passou. Temi que o Recenseador tivesse batido a cabeça e morrido. Para meu alívio, porém, ouvi seus gemidos, e ele logo começou a gritar por ajuda. Perguntei se estava bem. Respondeu, choramingando, que a perna lhe doía terrivelmente, implorou que eu chamasse ajuda. E eu, já puxando a corda que acionava o sistema de polias, tranquilizei-o dizendo que a ajuda estava a caminho.

Quando ele teria percebido que havia caído numa armadilha? Não sei. Somos viciados em racionalizar tudo, por mais absurda que seja a situação em que nos encontramos. Ele deve ter pensado, num relâmpago, que eu iria ajudá-lo, ou que alguém daria por sua falta, ou ainda que algum vizinho apareceria no momento exato para salvá-lo. Somos viciados em ter esperança. Quase tive dó dele, enquanto puxava, com alguma dificuldade, a corda principal.

Engrenagens encaixaram seus dentes em outras engrenagens, polias e correias e molas rangeram, respondendo ao meu esforço. O barracão inteiro estremeceu, ameaçando desabar. Mas eu havia calculado bem o peso. Quando a corda cedeu e senti uma brisa de poeira em meio à escuridão, eu sabia que a Pedra havia sido erguida. Meu engenho funcionava.

A essa altura, o Recenseador já havia voltado a gritar, tendo compreendido que eu não pretendia retirá-lo do poço. Pedi silêncio e, esgueirando-me pela beira, de onde eu via o pálido reflexo de seus olhos amedrontados, expliquei as regras. Um bloco de granito de quatrocentos quilos pairava naquele instante sobre a boca do poço. A cada quinze minutos, o bloco seria baixado pouco a pouco. Pelos meus cálculos, levaria umas duas horas até que a Pedra o alcançasse e o esmagasse. Ele poderia chorar, espernear, o que desejasse, que nada interromperia Sua trajetória. Caso ele quisesse deixar algo para a posteridade, eu havia instalado um gravador em algum lugar do poço a fim de registrar seus momentos finais.

O jovem me ouviu em silêncio, permanecendo calado por algum tempo depois que terminei de falar, como se buscando sentido no que havia ouvido. Perguntou em seguida se aquilo era um sequestro. Respondi calmamente que não. Uma brincadeira? Tampouco. Respondi que era, isto sim, um experimento. Era necessário que ele aprendesse. Aprender o quê?!, gritou, desesperado. Como se respondendo por mim, a Pedra baixou um pouco e parou, fazendo tremer a estrutura do barracão inteiro. O gemido do Recenseador subiu abafado, quase inaudível.

Satisfeito, voltei para casa e liguei meu computador, pondo os “headphones” para ouvir o que o microfone no poço captava. Não sei por que, lembrei-me de meus tempos de escola, quando ficava sozinho no recreio a ver formigas andando pelo chão. Eu costumava escolher uma e a fazia carregar um pedaço de folha, um papel de bala e, finalmente, uma pedrinha, vendo o inseto caminhar mais lentamente a cada nova carga até parar por completo. Os sons que eu ouvia o Recenseador grunhir naquele momento eram quase os mesmos que eu imaginava que minhas formiguinhas emitiriam, caso pudessem.

Primeiro, o jovem continuou por algum tempo com os gritos de socorro, alternando-os com súplicas para que eu o tirasse dali, dizendo que me pagaria bem e não sei mais o quê. Esse estágio passou, e, diante do meu silêncio, teve início um desfile de desaforos, uma explosão catártica de raiva que lhe tirou o fôlego. Após uma pausa – teria ele conseguido ver a morte pairando acima? A pétrea certeza do fim? -, ele voltou ao desespero, e seus berros animalescos foram diminuindo até a voz sumir.

Finalmente, algum tempo depois, levantei-me e voltei ao barracão. Pelos meus cálculos, a Pedra deveria estar tão próxima do fundo que o Recenseador poderia tocá-la.

Sim, o bloco ainda pendia milagrosamente sobre o poço. Seria possível ouvir o ranger do cabo de aço que o segurava, não fosse o ronco estranho e abafado que brotava lá de baixo. Gemidos roucos de horror misturados com choro. Pensem, meus amigos. Como vocês se sentiriam, completamente indefesos, enquanto uma pedra os ameaça esmagá-los lentamente? Como conciliar a morte certa com a esperança, essa amante ingrata, de que algo, ou alguém, irá salvá-los na última hora? Cheguei a sentir piedade pelo Recenseador enquanto ouvia sua voz se dissipar aos poucos, já irremediavelmente transformada no que soava como o lamento de um moribundo.

Mais alguns minutos e o granito finalmente pousaria sobre ele, matando-o, ao longo de minutos intermináveis, por asfixia. Decidido, agarrei a corda secundária e a puxei com toda a força. As engrenagens voltaram a funcionar, agora no sentido inverso. Ouvi os dentes das rodas se enganchando e, com grande e lento esforço, a Pedra começou a subir. Enquanto puxava a corda, deixando que as polias e contrapesos fizessem seu trabalho, pensei com um sorriso: a lição estava dada. Ainda ouvi seu fôlego assustado, em meio ao chiado das roldanas, e pensei se ele teria coragem de contar para alguém o que tinha se passado aqui. Pouco importava. Eu sentia orgulho, de mim e de meu experimento.

No meio da lenta subida, porém, o mecanismo engasgou. As roldanas gemeram, cedendo lentamente ao peso monumental que suportavam. Puxei a corda com mais força, sem sucesso. Eu havia calculado mal, afinal de contas. O ruído cresceu, passando da polia principal para as secundárias distribuídas ao longo do teto, e daí para as centenas de pequenas roldanas presas ao longo das paredes do barracão. Temeroso, ouvi aço se torcer contra aço; uma polia se despregou do teto e zuniu pelo ar, quase acertando meu rosto. Fachos de luz irromperam pelas paredes quando estas se rasgaram. Tive tempo apenas de me atirar ao chão quando o barracão inteiro se contraiu como uma fruta espremida e o teto desabou até a altura da cintura.

Naturalmente, isto fez com que a Pedra despencasse no poço sem resistência. Ouvi o som doentio de vários ossos sendo triturados um a um, culminando com o último grito gorgolejante do Recenseador, que acabou num soluço úmido quando o sangue preencheu sua garganta. O estrondo, finalmente, e um borrifo de pó irrompeu para cima, passando pela fresta estreita entre a Pedra e o poço.

Arrastando-me com dificuldade, saí dos escombros. Contemplei a massa de metal retorcido do que havia restado do barracão. Certamente, algum dos vizinhos seria alertado e logo haveria uma multidão à minha porta. Mas não saberão nada, não verão nada, murmurei pensando em meu pupilo, enterrado seis metros e quatrocentos quilos sob a terra. Nos poucos momentos antes de morrer, ele teria aprendido a lição, segundo a qual o medo é seu próprio mestre, e quase senti inveja do Recenseador enquanto despejava o pó de volta para a fresta do poço, terminando a tumba que a gravidade havia começado.



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