Desafio "1001 Filmes": 25 a 29
25) "O mistério da torre" ("The lavender hill mob", 1951)
Uma das comédias clássicas do estúdio inglês Ealing (já resenhei "As oito vítimas", 1949, leia AQUI). Apesar de um pouco inferior a "As oito vítimas" e "Quinteto da morte" (1955), "O mistério da torre" ainda traz a marca registrada dos filmes da Ealing, como o roteiro inspirado e a atuação brilhante de Alec Guinness, chamado "o homem das mil faces" por seu talento em viver tipos diferentes, tal qual um Chico Anysio britânico.
Aqui, Guinness é um pacato funcionário de banco que planeja um roubo milionário: furtar ouro e contrabandeá-lo na forma de réplicas da torre Eiffel. É incrível como, mais de 60 anos após o lançamento do filme, o humor ainda se sustente. Os personagens são credíveis, as situações são genuinamente cômicas, o pastelão funciona, etc. Destaque para a abertura do filme no Rio de Janeiro e a participação-relâmpago de uma jovem Audrey Hepburn.
26) "O baile dos bombeiros" ("Horí, ma panenko", 1967)
Anos antes de emigrar para os Estados Unidos, onde dirigiu "Um estranho no ninho" (1973) e "Amadeus" (1984), entre outros filmes memoráveis, Milos Forman (1932-2018) já era conhecido como um dos diretores mais criativos de sua Tchecoslováquia natal. Nessa primeira fase da carreira, Forman ficou marcado por suas comédias farsescas, onde satirizava os costumes da sociedade detrás da Cortina de Ferro. A relativa independência dos artistas tchecos, infelizmente, teria fim com a invasão da URSS à Tchecoslováquia, na "Primavera de Praga" de 1968.
A sátira corre alto em "O baile dos bombeiros", onde Forman filma os desencontros de uma festa organizada pelo corpo de bombeiros voluntários de uma cidadezinha. A caricatura dos bombeiros, vistos como velhos indolentes, apegados ao formalismo excessivo e, ao mesmo tempo, tarados pelas moças locais que tentam recrutar para um concurso de "miss", é impagável. A atmosfera de absurdo do filme é reforçada pela escassez de diálogos e pelas cenas do baile, um ambiente caótico onde os comensais se atropelam uns aos outros, culminando num incêndio e em mais caos. Apesar de trechos um pouco repetitivos, o filme é uma bela experiência cômica, tornada melancólica com a lembrança do ocorrido na Tchecoslováquia apenas um ano após seu lançamento.
Anos antes de emigrar para os Estados Unidos, onde dirigiu "Um estranho no ninho" (1973) e "Amadeus" (1984), entre outros filmes memoráveis, Milos Forman (1932-2018) já era conhecido como um dos diretores mais criativos de sua Tchecoslováquia natal. Nessa primeira fase da carreira, Forman ficou marcado por suas comédias farsescas, onde satirizava os costumes da sociedade detrás da Cortina de Ferro. A relativa independência dos artistas tchecos, infelizmente, teria fim com a invasão da URSS à Tchecoslováquia, na "Primavera de Praga" de 1968.
A sátira corre alto em "O baile dos bombeiros", onde Forman filma os desencontros de uma festa organizada pelo corpo de bombeiros voluntários de uma cidadezinha. A caricatura dos bombeiros, vistos como velhos indolentes, apegados ao formalismo excessivo e, ao mesmo tempo, tarados pelas moças locais que tentam recrutar para um concurso de "miss", é impagável. A atmosfera de absurdo do filme é reforçada pela escassez de diálogos e pelas cenas do baile, um ambiente caótico onde os comensais se atropelam uns aos outros, culminando num incêndio e em mais caos. Apesar de trechos um pouco repetitivos, o filme é uma bela experiência cômica, tornada melancólica com a lembrança do ocorrido na Tchecoslováquia apenas um ano após seu lançamento.
27) "A chinese ghost story" ("Sien nui yau wan", 1987)
Antecedendo os já clássicos "O tigre e o dragão" (2000) e "Hero" (2002), "A chinese ghost story" foi um dos primeiros sucessos internacionais do cinema chinês recente e inspirou duas continuações e um "remake". Trata-se de um ótimo filme do gênero "wu xia", caracterizado pelas elaboradas coreografias de artes marciais e pelo cenário de fantasia, ambientado na China medieval.
Mais leve e cômico que seus sucessores "wu xia", "A chinese ghost story" traz um enredo simples mas eficaz (rapaz azarado se apaixona por uma fantasma e se mete em apuros num templo abandonado), personagens sem ambiguidades e efeitos especiais que hoje parecem ingênuos, ainda que deliciosamente toscos. Trata-se de um filme divertido e escapista, um clássico popular em estado bruto.
"A chinese ghost story" é cria precoce de Tsui Hark, lendário diretor e produtor de Hong Kong, responsável pelos primeiros sucessos de John Woo e Jet Li. O diretor, Siu-Tung Ching, por sua vez, ficou conhecido posteriormente como coordenador de dublês em filmes como "Herói" e o primeiro "Homem-Aranha" (2002), chegando a coordenar coreografias para a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008. Destaque também para o ator principal Leslie Cheung, que depois de "A chinese ghost story", trabalhou com grandes diretores como Woo ("Alvo duplo", 1986), Chen Kaige ("Adeus minha concubina", 1993) e Wong Kar-Wai ("Felizes juntos", 1997).
Antecedendo os já clássicos "O tigre e o dragão" (2000) e "Hero" (2002), "A chinese ghost story" foi um dos primeiros sucessos internacionais do cinema chinês recente e inspirou duas continuações e um "remake". Trata-se de um ótimo filme do gênero "wu xia", caracterizado pelas elaboradas coreografias de artes marciais e pelo cenário de fantasia, ambientado na China medieval.
Mais leve e cômico que seus sucessores "wu xia", "A chinese ghost story" traz um enredo simples mas eficaz (rapaz azarado se apaixona por uma fantasma e se mete em apuros num templo abandonado), personagens sem ambiguidades e efeitos especiais que hoje parecem ingênuos, ainda que deliciosamente toscos. Trata-se de um filme divertido e escapista, um clássico popular em estado bruto.
"A chinese ghost story" é cria precoce de Tsui Hark, lendário diretor e produtor de Hong Kong, responsável pelos primeiros sucessos de John Woo e Jet Li. O diretor, Siu-Tung Ching, por sua vez, ficou conhecido posteriormente como coordenador de dublês em filmes como "Herói" e o primeiro "Homem-Aranha" (2002), chegando a coordenar coreografias para a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008. Destaque também para o ator principal Leslie Cheung, que depois de "A chinese ghost story", trabalhou com grandes diretores como Woo ("Alvo duplo", 1986), Chen Kaige ("Adeus minha concubina", 1993) e Wong Kar-Wai ("Felizes juntos", 1997).
28) "A grande testemunha ("Au hasard balthazar", 1966)
É bem possível que Robert Bresson seja o maior diretor da história do cinema no Ocidente. Acho que nenhum outro cineasta conseguiu conjugar tão bem o domínio da técnica cinematográfica com a exploração profunda da natureza humana, com a possível exceção de Bergman. Meu impacto ao assistir a filmes como "Diário de um pároco de aldeia" (1951), "Um condenado à morte escapou" (1956) e "Pickpocket" (1959) foi muito grande: até então, eu não sabia que se podia filmar daquela maneira, simples e pungente.
Não achei "A grande testemunha" tão genial quanto os títulos citados, mas ele é um legítimo herdeiro da do estilo bressoniano, caracterizado pelo esvaziamento total do espetáculo do cinema, as atuações drenadas de quase toda emoção humana, o roteiro repleto de simbolismos religiosos. Aqui, a tal "testemunha" do título é o burrinho Baltazar, que, ao longo de sua vida sofrida, presencia o que há de cruel e estúpido da natureza humana. A existência do burro parece refletir a de Cristo, com o animal sofrendo em nome de um bem maior, uma redenção que nunca se materializa. Personagens como um mendigo alcoólatra e um delinquente juvenil maltratam o bichinho. Baltazar se perde, é reencontrado, e se perde de novo. Uma menina (Anne Wiazemsky, ótima, que depois atuaria no "Teorema" de Pasolini) é a única pessoa que lhe dedica carinho, formando, aparentemente, um laço simbiótico com o bicho. Ao final, a redenção não chega. Baltazar morre na estupidez.
É bem possível que Robert Bresson seja o maior diretor da história do cinema no Ocidente. Acho que nenhum outro cineasta conseguiu conjugar tão bem o domínio da técnica cinematográfica com a exploração profunda da natureza humana, com a possível exceção de Bergman. Meu impacto ao assistir a filmes como "Diário de um pároco de aldeia" (1951), "Um condenado à morte escapou" (1956) e "Pickpocket" (1959) foi muito grande: até então, eu não sabia que se podia filmar daquela maneira, simples e pungente.
Não achei "A grande testemunha" tão genial quanto os títulos citados, mas ele é um legítimo herdeiro da do estilo bressoniano, caracterizado pelo esvaziamento total do espetáculo do cinema, as atuações drenadas de quase toda emoção humana, o roteiro repleto de simbolismos religiosos. Aqui, a tal "testemunha" do título é o burrinho Baltazar, que, ao longo de sua vida sofrida, presencia o que há de cruel e estúpido da natureza humana. A existência do burro parece refletir a de Cristo, com o animal sofrendo em nome de um bem maior, uma redenção que nunca se materializa. Personagens como um mendigo alcoólatra e um delinquente juvenil maltratam o bichinho. Baltazar se perde, é reencontrado, e se perde de novo. Uma menina (Anne Wiazemsky, ótima, que depois atuaria no "Teorema" de Pasolini) é a única pessoa que lhe dedica carinho, formando, aparentemente, um laço simbiótico com o bicho. Ao final, a redenção não chega. Baltazar morre na estupidez.
29) "Ouro e maldição" ("Greed", 1924)
"Greed" é o grande filme do cinema mudo que poderia ter sido e não foi.
Dirigida pelo lendário Erich von Stroheim (cujo "Esposas ingênuas" resenhei AQUI), a versão original de "Greed" durava nove horas e meia, uma adaptação monumental do romance naturalista "McTeague", de Frank Norris. Foi filmada inteiramente fora de estúdio, uma inovação para a época, com a sequência final rodada no meio do deserto escaldante do Mojave, na Califórnia. Infelizmente, o estúdio não engoliu a megalomania de Stroheim e, a fim de garantir seu sucesso comercial, retalhou o filme para duas horas e meia de duração, retirando grande parte da trama e deixando-a ininteligível. Consta que as sobras da sala de montagem foram recicladas para extrair o precioso nitrato de prata da película usada na época. A versão original do filme é dada como perdida para sempre, uma espécie de "santo graal" dos pesquisadores do cinema mudo.
Felizmente, há alguns anos foram encontrados "stills" (fotos) originais das filmagens, utilizados em 1999 para realizar uma "reconstrução" de quatro horas de "Greed", com trechos sobreviventes do filme, fotografias animadas e passagens do romance de Norris e do roteiro de Stroheim. Não é o filme original, mas é melhor que nada. Foi esta versão que assisti.
A "reconstrução" de "Greed" oferece um vislumbre, ainda que incompleto, de um filme coeso e muitíssimo bem dirigido. A história gira em torno de McTeague - um dentista simplório e truculento -, Trina - a gananciosa esposa de McTeague - e Marcus, o amigo do dentista que se torna seu pior inimigo. Amistosa em princípio, a relação dos três é envenenada quando Trina ganha uma bolada na loteria. A partir daí, os três serão tomados pela cobiça, despencando numa espiral que os levará ao conflito, à degradação e, finalmente, ao assassinato.
Os personagens - tanto os principais quanto os coadjuvantes, cerca de uma dúzia, cada um com suas histórias paralelas - saltam da tela, tão boa é a caracterização. A produção, tal qual em "Esposas ingênuas", é luxuosa, contando com cenários reais como uma mina de ouro, um bairro de São Francisco, o deserto do Mojave e dezenas de interiores, filmados de maneira realista. Mas é a fotografia que salta aos olhos. Stroheim entendia a importância do cinema de sugerir emoções por meio de imagens e, ao invés de narrar a história por meio de cartelas de texto, colocava ênfase em metáforas visuais. Metáforas recorrentes, por exemplo, incluem a gaiola de McTeague com dois canários, assim como um retrato de casamento rasgado em dois, simbolizando a trajetória turbulenta do casamento do protagonista com Trina.
A exemplo de outros grandes diretores do cinema mudo, como Eisenstein e Murnau, Stroheim via com clareza a necessidade de usar a imagem não apenas como meio de narração direta da história, mas também como símbolo da condição psicológica de seus personagens. Nesse sentido, ele consegue fazer com que "Greed" transcenda o romance no qual se baseia para se tornar a primeira obra-prima do realismo psicológico no cinema. Pena que jamais a veremos em todo o seu esplendor numa tela de cinema.
"Greed" é o grande filme do cinema mudo que poderia ter sido e não foi.
Dirigida pelo lendário Erich von Stroheim (cujo "Esposas ingênuas" resenhei AQUI), a versão original de "Greed" durava nove horas e meia, uma adaptação monumental do romance naturalista "McTeague", de Frank Norris. Foi filmada inteiramente fora de estúdio, uma inovação para a época, com a sequência final rodada no meio do deserto escaldante do Mojave, na Califórnia. Infelizmente, o estúdio não engoliu a megalomania de Stroheim e, a fim de garantir seu sucesso comercial, retalhou o filme para duas horas e meia de duração, retirando grande parte da trama e deixando-a ininteligível. Consta que as sobras da sala de montagem foram recicladas para extrair o precioso nitrato de prata da película usada na época. A versão original do filme é dada como perdida para sempre, uma espécie de "santo graal" dos pesquisadores do cinema mudo.
Felizmente, há alguns anos foram encontrados "stills" (fotos) originais das filmagens, utilizados em 1999 para realizar uma "reconstrução" de quatro horas de "Greed", com trechos sobreviventes do filme, fotografias animadas e passagens do romance de Norris e do roteiro de Stroheim. Não é o filme original, mas é melhor que nada. Foi esta versão que assisti.
A "reconstrução" de "Greed" oferece um vislumbre, ainda que incompleto, de um filme coeso e muitíssimo bem dirigido. A história gira em torno de McTeague - um dentista simplório e truculento -, Trina - a gananciosa esposa de McTeague - e Marcus, o amigo do dentista que se torna seu pior inimigo. Amistosa em princípio, a relação dos três é envenenada quando Trina ganha uma bolada na loteria. A partir daí, os três serão tomados pela cobiça, despencando numa espiral que os levará ao conflito, à degradação e, finalmente, ao assassinato.
Os personagens - tanto os principais quanto os coadjuvantes, cerca de uma dúzia, cada um com suas histórias paralelas - saltam da tela, tão boa é a caracterização. A produção, tal qual em "Esposas ingênuas", é luxuosa, contando com cenários reais como uma mina de ouro, um bairro de São Francisco, o deserto do Mojave e dezenas de interiores, filmados de maneira realista. Mas é a fotografia que salta aos olhos. Stroheim entendia a importância do cinema de sugerir emoções por meio de imagens e, ao invés de narrar a história por meio de cartelas de texto, colocava ênfase em metáforas visuais. Metáforas recorrentes, por exemplo, incluem a gaiola de McTeague com dois canários, assim como um retrato de casamento rasgado em dois, simbolizando a trajetória turbulenta do casamento do protagonista com Trina.
A exemplo de outros grandes diretores do cinema mudo, como Eisenstein e Murnau, Stroheim via com clareza a necessidade de usar a imagem não apenas como meio de narração direta da história, mas também como símbolo da condição psicológica de seus personagens. Nesse sentido, ele consegue fazer com que "Greed" transcenda o romance no qual se baseia para se tornar a primeira obra-prima do realismo psicológico no cinema. Pena que jamais a veremos em todo o seu esplendor numa tela de cinema.
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