1001 filmes: de 114 a 118



114) “Confiança” (“Trust”, 1990)

Que fim levou Hal Hartley? Diretor queridinho dos anos 90, forte no cinema independente americano, Hartley fazia a alegria dos cinéfilos introvertidos que alugavam filmes em VHS para assistirem (sozinhos) comédias de baixo orçamento com personagens bizarros (fui um deles). Era um dos melhores desse filão. Depois se perdeu em filmes que parecia dirigir no piloto automático (“Beatrice e o monstro”, de 2001, e “A garota de segunda-feira”, de 2005, são particularmente ruins), mas seus primeiros filmes eram pérolas. “Confiança” (1990), seu segundo título, é provavelmente o melhor deles.

No mundo da classe média baixa de Nova York, Matthew (Martin Donovan, ator-fetiche de Hartley) é um jovem rebelde que tem uma relação complicada com o pai e vive carregando consigo uma granada como símbolo de seu inconformismo. Maria (Adrienne Shelly) é uma jovem que engravida do namorado e acaba expulsa de casa. Os dois desajustados começam um relacionamento que muda a personalidade dos dois. 

O enredo é ridículo de tão banal, as cenas parecem escritas para uma peça de teatro amador, o roteiro é esquemático, mas, por alguma magia, tudo funciona. Os diálogos são preciosos e os atores se encontram em seus personagens. A fotografia simples, sem grande contraste, reforça o lado humano da história. 

Na superfície, “Confiança” parece uma relíquia do cinema dos anos 90, com pretensões existencialistas e pouco dinheiro no orçamento. Uma hora e meia depois, no entanto, é difícil negar a empatia e o humanismo que Hartley transmite em seu filme.





115) “O medo consome a alma” (“Angst essen Seele auf”, 1974)

Frequentemente, as melhores histórias são as mais simples. Na Alemanha dos anos 70, uma viúva começa uma relação inusitada com um imigrante marroquino. Entre o casal e a sociedade à sua volta, instala-se o medo, a intolerância e o racismo. Neste pequeno grande filme, Fassbinder explora a fundo os perfis dos personagens, mostra-nos o medo da solidão e a redenção que os dois protagonistas, rejeitados pelo mundo, encontram um no outro. Apesar de discriminado pelos vizinhos e pelos familiares, o amor dos dois perdura. Mas eles são apenas humanos, e o idílio do casal acabará em incompreensão e ruína.

Explorando magistralmente o espaço íntimo e a dinâmica conjugal de um casal fora das convenções sociais, Fassbinder revela um retrato muito delicado das relações entre classes e raças na Alemanha do pós-guerra. Os personagens, como em toda a obra do dramaturgo alemão, são finamente construídos, cada um merecendo seu próprio filme. A lição que fica, se é que há alguma, é a importância de se lutar contra o medo, condição inerente ao humano: medo da pobreza, do desamor, da solidão, da vida. É preciso conviver com o medo sem deixá-lo tomar conta, sob risco de se consumir a alma, como diz o imigrante Ali a sua namorada.



116) “Frankenstein” (1931)


Difícil, falar dos clássicos. Com analisar um ícone como Bela Lugosi sorrindo em sua capa de vampiro ou Boris Karloff maquiado e andando desajeitadamente como se tivesse pés de cimento? Como desafiar a força simbólica de imagens que parecem ter sido impressas na sua mente desde que você nasceu?

Essa é uma ideia tola, claro. É necessário discutir filmes clássicos da mesma forma que qualquer outro filme. “Frankenstein” não é exceção. Infelizmente, meu encontro com este clássico não foi agradável. O icônico filme de monstro de 1931 é, de modo geral, ruim. Com o roteiro adaptado de uma peça de teatro baseada, por sua vez, na obra de Mary Shelley, o filme é exageradamente teatral, contando com interpretações canhestras. O Dr. Frankenstein (Colin Clive) e os coadjuvantes esquecíveis à sua volta, como o pai, a noiva e o rival, não conseguem oferecer uma contraparte crível ao monstro interpretado por Karloff, este sim, icônico e absoluto, capaz de impressionar qualquer um com os poucos grunhidos que solta na tela. Ao final, o filme é muito mais um triunfo da produção de arte - com destaque para a maquiagem de Karloff e o laboratório de Frankenstein, onde a Criatura toma vida - do que do roteiro ou dos atores. 

A única cena memorável é o icônico encontro entre o Monstro e uma menina, o proverbial confronto entre a Fera irracional e a Bela inocente. Trata-se de uma cena quase sem diálogos, de resolução irretocável, que exprime perfeitamente o conflito interno do Monstro de Karloff. De resto, ficam apenas as cenas cansadas de perseguição e os gritos de “Está vivo! Está vivo!” do cientista maluco.





117) “A longa caminhada” (“Walkabout”, 1971)


Nicolas Roeg deveria ser decretado patrimônio cinematográfico britânico, como Ken Russell e Stanley Kubrick. Dono de uma visão personalíssima, inclassificável, Roeg fez filmes tão díspares e especiais quanto “Inverno de sangue em Veneza” (1973), um dos melhores filmes de terror já realizados, e “O homem que caiu na Terra” (1976), ficção cientifica cerebral com Bowie. Seu primeiro filme solo como diretor foi “A longa caminhada”, filmado na Austrália. Pouco antes, Roeg havia co-dirigido o estranho “Performance”, com Mick Jagger, lançado posteriormente àquele título.

“Walkabout” trata da relação entre o homem e a natureza de modo tão peculiar que o filme parece ter sido dirigido por Werner Herzog. A história é quase irrelevante: abandonados pelo pai na árida vastidão australiana (o chamado “outback”), uma adolescente e seu irmão menor devem sobreviver sozinhos às intempéries do deserto para voltar à “civilização”. No caminho, encontram um jovem aborígine, que os auxiliará na travessia. A jornada evoca um rito de passagem dos nativos australianos, chamado “walkabout”.

Roeg, já um tarimbado diretor de fotografia antes de enveredar pela direção, confere ao filme um visual deslumbrante. Grandes angulares da bela e perigosa paisagem australiana se combinam com closes de plantas e pequenos animais, enquanto acompanhamos a viagem dos dois irmãos. Emoldurando o filme no começo e no final, a visão da “civilização”, da cidade grande, motorizada e de concreto, acaba parecendo alienante, frente à “verdadeira” vida da paisagem rural. Um filme maduro, belo e perturbador, tal como a maior parte da obra de Roeg.





118) “O matador de ovelhas” (“Killer of sheep”, 1978)


Considerado um marco do cinema norte-americano, “O matador de ovelhas” reúne pequenas histórias do subúrbio de Los Angeles, todas centradas numa família em que o pai Stan (Henry Sanders), funcionário de um abatedouro, encontra-se deprimido e desmotivado depois de passar seus dias matando animais. 

É uma descrição simplista. O filme é muito mais que isso. Financiado pelo diretor-roteirista-produtor-editor-diretor de fotografia Charles Burnett por apenas 5 mil dólares como seu trabalho de conclusão de mestrado em cinema, filmado com equipe e elenco negros, “O matador de ovelhas” parece refletir as agruras de se viver num bairro sem perspectiva, marcado pela pobreza e violência. Em dado momento, Stan é abordado por criminosos para que participe de um golpe. Em outro, fala sobre seu desejo de cometer suicídio. Sua relação com a esposa é marcada pela insatisfação sexual desta. Ele parece desconectado dos filhos. De modo geral, o filme parece um relato importante, apesar de fragmentado e imperfeito, sobre a condição psicológica de ser negro na América. 

Apesar de sua condição como filme de estudante - a qualidade da imagem e de som às vezes pecam -, “O matador de ovelhas” representa um testemunho importante para o cinema independente americano, assim como da presença do negro no cinema. Durante muito tempo, ficou longe das telas devido à falta de recursos de Burnett para pagar os direitos autorais da brilhante trilha sonora do filme (com luminares como Dinah Washington, que interpreta a canção "This Bitter Earth", reproduzida na cena mais bela do filme), mas o problema foi solucionado em 2007, com a compra dos direitos e a restauração do filme, hoje considerado um dos títulos essenciais da cinematografia americana.





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