alguns textos


"O MEME"

Se alguém te disser que é possível ficar famoso por levar uma bolada na cara, você não acreditaria. Mas é verdade. Aconteceu comigo. Era 11 de dezembro de 2005. Eu tinha cinco anos. Um vídeo de vinte segundos, os mais longos da minha vida. Na imagem, você pode me ver segurando uma bola gigante de plástico, pintada como um globo terrestre. Fazia parte de uma exibição no shopping center, ou algo assim. À direita, meu tio Osvaldo segura a bola e manda que eu me afaste. Assim o faço. Ele chuta o globo, que voa pelo ar antes de acertar minha fuça em cheio. Lembro claramente desse momento. Sinto algo estourar na bochecha e meu corpo é jogado para trás. O vídeo, filmado pela tia Nara, mostra o momento em que sou nocauteado e vou ao chão, de braços abertos como Jesus.

                Era para ser um simples momento de comédia familiar, como seu tio bêbado pulando na cama até quebrar ou o cachorro puxando a saia de sua mãe com os dentes. Deveria provocar uma ou duas risadinhas e comentários constrangedores em almoços de família, nada mais. O problema, meu caro, é que vivíamos na era da Internet. Dos celulares que respondiam suas perguntas antes que você as fizesse. Das câmeras que filmavam o que você faz no banheiro. Algum engraçadinho que tinha meu vídeo – suspeito do meu primo Arnaldo, aquele maldito – o postou na Internet. Não demorou e ele viralizou. Virei meme.

                O sucesso foi avassalador. Quinze anos depois daquele dia fatídico, ainda era possível assistir ao meu tio atirando o mundo na minha cara. E não só. Fizeram clipes comigo. Podiam me ver caindo no chão ao ritmo de “sweet dreams are made of this...”; em ritmo de música eletrônica; de forró. Centenas de variações. Remontaram a cena num teatro, em que jogavam uma bola na cara de um adulto vestido igual a mim, caindo para trás. Usaram o vídeo num programa de notícias do Uzbequistão. Passou no telão da Times Square, em Nova York. Venceu um festival de memes no Japão. Eu, meu tio e a bola. Me compararam com Chaplin em “O grande ditador”. Disseram que o vídeo era uma metáfora da incapacidade do homem em combater a mudança climática. E eu, aquela pobre criança de cinco anos, continuava desabando no chão do shopping center com uma bola gigante na cara. Sucessivamente. Eternamente.

                No começo, eu queria morrer. Meus colegas de escola viam o vídeo pelo celular. Os professores riam. Todo mundo ria. Sofri de depressão. Depois da adolescência, porém, tive um momento de conciliação. Fui convidado para festivais de memes. Tirei selfies, dei autógrafos. Repeti a cena, já crescido, em que, mediante uma módica taxa de cinquenta reais, você podia me acertar com uma bola inflável e eu caía num colchão de ar. Cheguei a ser convidado para um debate sobre relações internacionais.

                Mas essa fase otimista passou.

                Cento e vinte anos depois, a única coisa que me restou é a pergunta: minha vida se resume a ter levado uma bolada na cara? Cresci, casei, tive filhos, escrevi poesia, mas não há ninguém no mundo que não me conheça como o menino que levou uma bolada. Penso sobre a aleatoriedade de tudo, e a falta de sentido que se esconde por trás do excesso de sentido.

                Levanto-me da cama com dificuldade e, apoiando-me na bengala, vou até a janela. Cortado por um engarrafamento de carros flutuantes, vejo o telão de neon, do tamanho de uma cidade inteira. Sombras eletrônicas exibem robôs em cores berrantes, posições sexuais bizarras, cabeças de gatos fofinhos enfiadas em postes, tudo numa velocidade estonteante, que faz com que eu não consiga compreender boa parte do que está sendo exibido mas que as crianças de hoje consideram até entediante. E, no meio da programação, passa a vinheta antiga, vintage, rara como uma safra de vinho sintético de 2049, a imagem borrada de um menino caindo no chão, nocauteado por uma bola de plástico representando o mundo, da época em que ainda se pensava que o mundo fosse redondo.        



"O ÓDIO"


                Ele caminhava na calçada, e quem cruzasse seu caminho diria que tinha os olhos cheios de ódio. Ódio de quê? Ninguém sabia. Talvez nem ele soubesse. Do cansaço de acordar, dia após dia, logo que o sol nascia? Do aperto no ônibus, das caras amarradas dos outros, do sol forte, do céu nublado? Ou ódio dos sonhos, que ficavam a cada dia mais distantes, das expectativas frustradas, das tragédias no jornal, da monotonia, da comida ruim?

                Talvez o ódio nascesse de tudo isso, mas logo crescia e chegava ao ponto em que qualquer coisa o alimentava. Até alimentos improváveis, como um sorriso trocado entre dois amigos (porque aquele sorriso não era para ele), uma pausa para o café no meio da manhã (fonte de ansiedade mórbida), um beija-flor passando pela janela, tudo servia de nutrição à criatura do ódio. E logo em seguida – algumas horas, um dia, não mais -, o bicho se espichava até chegar à sua altura, adquiria peso, a ponto de podermos vê-los caminhando lado a lado, ele e seu companheiro obscuro, que o admoestava a todo momento sobre as injustiças da vida.

                Permaneciam ambos nesse expediente, buscando novas formas de esmagar qualquer traço de serenidade interior que ainda subsistisse. O mundo perdia sua régua: o café estava muito quente ou muito frio, jamais na temperatura certa. O timbre do telefone sempre lhe representava um prenúncio de desgraça, de uma notícia indesejada, uma morte ou uma conta para pagar. Nenhuma atividade a que se dedicava poderia ser exitosa, não importava quão insignificante fosse. O acaso não existia, tudo conspirava para a degradação do que é bom e correto, do que é sereno, e quem acreditava no contrário era, na melhor das hipóteses, um idiota. O mundo era povoado por bruxas e semáforos fechados. Ou assim cochichava a criatura no ouvido, alegre em sua tristeza.

                Seus pés o levaram a um parque e ele se sentou num banco, apertando as mãos, a cabeça baixa ruminando as particularidades do ódio. Havia tanto para odiar e desprezar! Todas as idéias inúteis, propagadas por gente arrogante! Todo o sofrimento sem sentido, perpetrado por beócios egoístas! E todos os oportunistas, que se declaravam contra os beócios mas que visavam tão-somente seus próprios fins! Quanta neblina, quantos truques e caprichos lançados num mundo gélido e cruel!

                A cabeça da criatura se perdia nas nuvens, colossal, invencível.

                Uma sombra se projetou sobre o banco. Ele ergueu os olhos cheios de ódio e contemplou uma menina, que o observava, curiosa. Sorria. Instintivamente, ele se preparou para destruir aquele sorriso. Percebeu, porém, que a menina não era movida por escárnio nem interesse. Ele havia esquecido o que existia por trás de sorrisos como aquele.

                A menina lhe estendeu uma pequena flor branca. Atordoado, seus dedos a colheram. A menina voltou para os brinquedos, partindo tão repentinamente quanto havia surgido. Ele se voltou para pedir à criatura que lhe explicasse aquela flor. Mas a criatura havia sumido.



"EXTREMO"

... ontem em Plimpi-Plómpi, país vizinho de Mablunda, atentados a bomba mataram 117.534 pessoas. Aparentemente, as bombas estavam espalhadas em milhares de apartamentos da capital Uóuzoom. A polícia teme que a maior parte da população de Plimpi-Plómpi tenha se filiado à facção "Escoteiros", composta por terroristas hedonistas suicidas. Em resposta aos atentados, as forças de segurança efetuaram milhões de prisões e entraram em repetidos choques com membros dos Escoteiros, provocando a morte de cerca de 350 mil suspeitos. O presidente de Plimpi-Plómpi, Marechal Cuca Beludo, declarou em Uóuzoom que "não haverá trégua" aos Escoteiros. O governo estaria conversando com o vizinho Mablunda para conseguir a cessão de um terreno deste para construir uma nova prisão a fim de abrigar os cerca de 15 milhões de detidos desde o início do conflito. Calcula-se que 42 plimpi-plómpinenses não sejam terroristas, membros das forças de segurança, nem estejam presos ou mortos.



Em esportes, o Íbis se sagrou campeão da Libertadores...


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Dim-dom.
- Pois não.
- Oi, tá lembrada de mim? Sou o Eduardo, que comentou no seu post no Facebook.
- Como? Não te conheço.
- Sou amigo da Márcia que é amiga do Bruno que é seu amigo.
- Ah... oi.
- Então. Vim buscar o doce.
- Que doce?
- Não lembra? Ontem, você postou a foto de um bebê e escreveu, "um doce pra quem acertar quem é essa daqui". Eu respondi, "é você pequena". Acertei, não acertei?
- Sim, mas...
- Então. Vim buscar meu doce. Tem goiabada? Pode ser cocada também. Adoro cocada.
- Olha... Eduardo, né? Eu escrevi aquilo de brincadeira. Era uma metáfora. Não significava que ia literalmente dar um doce.
- Se tiver bem-casado, melhor ainda.
- Eu não como doce, Eduardo. Não tem nenhum aqui.
- Marrom-glacê, hmmm.
- (suspiro)
- Opa, gosto muito de suspiro.
- Se eu te der uma barrinha de cereal, você vai embora?
- Se for de chocolate, sim.
- Vou dar unfollow em você. E no Bruno.


- Prometeu, tem que cumprir.





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- Um hamburguer, por favor.
- Desculpe, não temos hamburguer.
- Então uma porção de batata frita.
- Não servimos comida, senhor.
- ?? O que vocês servem?!
- Aqui é uma porradaria gourmet. É um novo conceito. O senhor pega um desses pedaços de pau que oferecemos ali no canto e bate na sua cabeça com a força que quiser. Cobramos pelas ataduras.
- Cê tá me sacaneando?
- São R$ 100 por hora.
- Isso é um absurdo. Porradaria gourmet. Só pode ser zoação.
- É um novo conceito de diversão em família.

- Então quero duas horas.



SEMPRE TEREMOS TEERÃ



Yalta, Crimeia, fevereiro de 1945. Na cidade às margens do Mar Negro, a conferência das três potências que lutam contra a Alemanha nazista está chegando ao fim. Franklin D. Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, Josef Stálin, líder da União Soviética, e Winston Churchill, primeiro-ministro da Grã-Bretanha, posam para a fotografia oficial do evento junto com seus assessores.

A Segunda Guerra Mundial está a meses de seu fim. Prevendo a derrota alemã, os Aliados se reúnem em Yalta para conversar sobre o destino do mundo após o conflito. Não é uma conversa fácil, há muitos interesses em jogo.

Depois da foto, as delegações se dispersam. Os generais de Roosevelt movem a cadeira de rodas do presidente ao longo do corredor externo do Palácio de Livadia, onde a conferência é realizada.

Inesperadamente, Stálin se aproxima dos americanos. Apesar de mostrar claros sinais de debilidade, a figura solitária do ditador georgiano de 66 anos - responsável direto pela vida e morte de milhões - ainda impressiona. Com um gesto de cabeça de Roosevelt, seus generais se afastam. Os dois líderes se dirigem a um canto do corredor. Desejam conversar a sós.

Será esta uma daquelas conversas de bastidores decisivas para mudar o rumo da História?

- Olá, Franklin. - diz Stálin em inglês com forte sotaque russo.
- Como está, Josef? - pergunta Roosevelt, olhando fixamente para os olhos castanhos do “Jardineiro da Felicidade dos Povos”.
- Lutando contra Hitler. Botando ordem. Sabe como é. - Stálin pigarreia - Você recebeu as cartas que te mandei?
- Sim. Uma delas quase caiu nas mãos da Eleanor. - diz o americano, sorrindo e tossindo.
- Sei que é difícil, mas você poderia ter respondido a alguma delas.
Um silêncio constrangido envolve os dois.
- Você prometeu que não íamos perder o contato. - murmura o soviético.
- Cada um tem sua própria velocidade, amor. - responde Roosevelt, usando o apelido carinhoso de Stálin. - O que quer que eu faça? Que mande um telegrama da Casa Branca para o Kremlin assinado, "com amor, Roosie"? Não dá.
- Desde Teerã, sinto que você está distante.
O georgiano se refere à conferência realizada em Teerã em novembro de 1943, onde foi discutida a questão da Iugoslávia.
- Aqueles dias foram incríveis. - murmura o americano. - Se não fosse o chato do Winston, poderíamos ter passado a semana toda no quarto.
- É verdade. - o basto bigode de Stálin se abre num sorriso cheio de saudade.
- Josef, você acha que eu vim a Yalta pra conversar sobre a Polônia? Pra ver a cara feia do Winston mastigando charutos? Vim aqui pra te ver, porra. Só você pra me arrastar pra esse balneário vagabundo fedendo a peixe.
Stálin sorri.
- Era tudo o que eu queria ouvir.
Por um instante, os dedos dos dois líderes se entrelaçam antes de se separarem. Roosevelt empurra as rodas da cadeira.
- Escreve, tá? - diz o criador do New Deal, com os olhos marejados. - Prometo que vou tentar responder.
Ele se afasta alguns metros pelo corredor do Palácio de Livadia.
- Espere.
Roosevelt se detém ante o pedido de Stálin.
- Sempre teremos Teerã.
Franklin Delano Roosevelt sorri, emocionado, e continua seu trajeto. Josef Stálin se afasta no sentido oposto, tirando um cachimbo do bolso e colocando-o na boca, pensativo.

Dois meses depois do encontro, Roosevelt falece nos Estados Unidos. Stálin o acompanharia em 1953, aos 74 anos. Em 2 de setembro de 1945, sete meses após Yalta, a Segunda Guerra Mundial terminava na Europa.


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- Evaristo.
- Hrmrm.
- Acorda. Tem uma aranha no banheiro.
- Hrhrmata.
- Vai lá no banheiro, Evaristo. A aranha é enorme.
- Hrmrmpega a chinela, amor. Mata.


- Você não entendeu. Ela quer falar com você.



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Meu computador: seu disco USB não pode ser ejetado. Feche os aplicativos que estão utilizando-o e tente novamente.
Eu: já fechei tudo.
Meu computador: seu disco USB não pode ser ejetado.
Eu: só falta fechar o sistema operacional, seu idiota! Fechei tudo! Ejete!
Meu computador: seu disco USB não pode ser ejetado.
Eu: NÃO TEM NADA USANDO O USB
Meu computador: seu disco USB não pode ser ejetado.
Eu: OU VC EJETA OU EU ARRANCO SEU FILHO DUMA P
Meu computador: seu disco USB não pode ser ejetado.
(arranco o disco USB)
Meu computador: seu disco USB não pode ser ejetado.
Eu: já tirei, cretino.
Meu computador: Feche os aplicativos que estão utilizando-o e tente novamente.
Eu: Tirei faz um ano.
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- Vamos almoçar amanhã?
- Se importa de eu levar um amigo?
- Claro que não.
Quando Sandra chegou à lanchonete, Marcos já estava lá com seu amigo, um tipo de cabelo brilhante de vaselina, terno azul brilhante e dentes brilhantes. O sujeito brilhante se levantou para cumprimentá-la com um sorriso que quase a cegou:
- George Lucro, muito prazer!!
Sandra se surpreendeu com a animação da conversa. Normalmente, Marcos era tímido e não se soltava.
- O que vamos pedir? - perguntou Marcos, lendo o cardápio.
- Acho que vou de prato do dia. - disse Sandra.
George apontou o dedo para a cara de Marcos.
- Você merece uma lagosta ao Termidor! Não acha? - disse, buscando a aprovação de Sandra.
- Mas é tão caro...
- Caro? Caro relativo ao quê? Se for pela relação custo-benefício, vale demais a pena! E uma garrafa de vinho francês! Você merece, Marcos, trabalha tanto...
- Pode ser. - este disse, um pouco preocupado - Tem que aproveitar a vida, né.
- Tá podendo, hein, Marcos? – provocou Sandra.
George gesticulava sem parar.
- Ele agora pode tudo! Marcos descobriu o segredo da felicidade: saber que as melhores coisas do mundo não tem preço! O mundo conspira ao seu favor! A vida é curta e não se pode desperdiçá-la! Veja, Sandra!
E o homem brilhante apontou um carrão Audi novinho no estacionamento da lanchonete.
- Não vai dar parabéns pro seu amigo?
- Marcos, aquele carro é seu? – perguntou Sandra, séria. Marcos concordou com a cabeça, envergonhado. – Como você pagou?! Você tem salário de auxiliar de contabilidade, pelo amor de Deus...
- Salário! Dinheiro! – bradava George como um pastor da Universal – Marcos se libertou desses conceitos mundanos, Sandra! Ele teve a ousadia de acreditar em seus sonhos e foi em frente!
- Paguei em 15 mil parcelas no cheque especial. – murmurou Marcos, quase chorando.
- E mês que vem ele vai embarcar numa viagem ao redor do mundo! – continuou o “pastor” – Primeira classe!
Marcos se levantou e saiu correndo para o banheiro, aos prantos.
Sandra fuzilou George com o olhar.
- Você é o gerente de banco dele, né? – perguntou, furiosa.
- Prefiro que me chamem de “facilitador”. – George respondeu – Nós facilitamos o sonho de muita gente.
- Pois facilite você sair daqui. Agora. – ela ordenou.
Sem desfazer o sorriso, George se levantou.
- Você não estaria interessada em fazer uma conta PremiumVipPlusUltra em nosso banco? Juros baixinhos...
- Fora!


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Chego do trabalho, exausto mas feliz. Vou ligar a Netflix e ficar seis horas seguidas assistindo toda porcaria que puder encontrar. Quero derreter meus olhos em imagens inúteis e diálogos chinfrins, meu corpo virará uma massa disforme de preguiça, nada mais importa.

Estou esquentando a pipoca no microondas quando minha esposa sai maquiada do banheiro.

- Não vai se arrumar?
- Hã? - pergunto, com medo da resposta.
- Nosso jantar com o Peter e a Rosaura. Esqueceu?

O jantar! Reserva no restaurante marcada com um mês de antecedência! Gravata! Conversas inúteis! Não! Não! Odeio ser adulto!

Subitamente, tenho uma idéia. Mantenho a calma. É claro, tão óbvio.

- Vou matá-los.
- Quem?
- Peter e Rosaura, lógico.
Ela me olha com cara de nojo.
- Pelo amor. Se tiver que cancelar, liga pra eles, inventa uma desculpa.
- Você não quer que eu ligue cinco minutos antes da reserva cancelando o jantar, né? Imagine a vergonha. Não, melhor matar. É o único jeito.
- Às vezes não sei quando você está brincando ou falando sério.
- E você quer que eu minta? Meio sacana, né?


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TÓXICO
Este estado de atenção constante, detectando a proximidade de mulheres, analisando-as, medindo-as como um peixe que se escolhe na feira; estes cenários que se criam automaticamente (está é a palavra-chave, o AUTOMATISMO das reações, quase sempre idênticas em todas as situações, como um cão pavloviano); esta instrumentalização da carne, como se diante de você não estivesse um ser humano mas um jogo de tabuleiro, um receptáculo, uma ferramenta, a peça perdida de um quebra-cabeças. A masculinidade tóxica, enfim, em seu afã apressado e automático, sua seletividade no trato social, suas respostas rápidas e fáceis e odiosas.
Esta é uma escola na qual os meninos nos formamos durante muitos anos. Nossos professores: pais, tios, amigos e irmãos mais velhos. Filmes, desenhos, anúncios publicitários. Bancas de revistas, tais como fotos em peixarias, oferecendo amostras coloridas de nossos desejos, ou do que achamos que sejam nossos desejos. Nossas salas de aula: pátios de colégios, programas de chat, redes sociais, festas, sites pornográficos. Nosso conteúdo programático: redução, mistificação, subjugação. Replicação. A transformação de um gênero inteiro em nosso parque de diversões particular, à disposição 24 horas, todos os dias, se não em corpo em mente, sempre na mente, o primeiro cárcere.
Sozinho, o homem é capaz de certa autorreflexão, de pensar sobre a consequência de seus atos. Em grupo, porém, é um desastre. As aulas se multiplicam. A toxicidade de um alimenta a toxicidade do outro. Isso fica mais explícito quando passa uma mulher, transformada psiquicamente no objeto de seus sonhos. A comparação com um bando de macacos em época de acasalamento não seria despropositada. Subitamente, instintivamente, cada um busca a validação coletiva fazendo piadinhas sobre ela, sobre os recuos e protuberâncias de seu corpo, como se falássemos de um boi no açougue. Testamos a ousadia de uns com os outros; mas ninguém toma um passo além das bravatas e insinuações. Isto faz parte do jogo social a que nos impomos (pois tudo isto é um jogo de adultos fingindo serem crianças, com terríveis consequências). A covardia é parte essencial do jogo. E, nesses casos, um suposto ato de coragem é a pior covardia.
E quando a mulher parte, insultada, ferida, lavamos as mãos. Fizemos nossa parte – vingamos nosso gênero, perpetuamos esse domínio repulsivo que Adão exerce sobre a Terra. É mais forte que nós, repetimos sem remorso; é inofensivo. Ninguém foi realmente ferido, defende-se o agressor com empáfia. Os que ousam criticar esses princípios são logo tachados de desviados e desnaturais. Pois o domínio de um homem sobre uma mulher deve ser visto como algo natural, um passatempo necessário em prol da estabilidade de um mundo perfeito. E este é um mundo perfeito. Não é?



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- Precisamos conversar.

Ela não quer falar no telefone, pede que eu vá à quitinete às cinco, desliga mas sua voz continua a conversa na minha cabeça como se fosse uma namorada fantasma, estou grávida, me diz, ouço sem acreditar, tenho que esperar o final da tarde para ter certeza mas minha cabeça já tem certeza, estou grávida, com o receio em sua voz e a necessidade de falar em pessoa não há outra alternativa, está grávida, estamos grávidos, daí a cinco segundos eu saio do banco onde fui pagar uma conta, o bebê já está nascendo, menino, menina, que binariedade, quando entro no carro já discutimos qual escola ele vai, tradicional ou liberal, a influência de meus pais, a cor do papel de parede do quarto, a hora de voltar pra casa depois de brincar, os livros apropriados, a formatura do ensino médio, o primeiro porre, é muito nova pra namorar, o primeiro emprego, quando saio do estacionamento do banco já estou pagando a primeira prestação do carro da minha filha.

Mas há coisas pra cuidar antes disso. Fui no banco justamente pra negociar o aumento do limite do cheque especial. Estou quebrado. Acham que é só um filho nascer pro dinheiro brotar aos borbotões, abiogênese de dinheiro? Tenho que arranjar um emprego. Qual? Não importa. Qualquer um basta. A vida não é só amor mas também crédito. Fraldas. Berço. Roupas. Ela também não tem emprego, mas o importante é que fique com o bebê o maior tempo possível. Ou não. Eu também. Amamentando e trabalhando. Podemos abrir uma creche. Mata dois coelhos.

Mas... e se ela não quiser? E se eu não quiser? Agora eu quero. Amanhã, não sei. Vamos conversar. Ainda há tempo. Aceitarei o que você decidir. Mas também quero que me ouça. A decisão é sua, mas estamos nessa juntos. Não farei o que seu pai e meu avô fizeram. Vamos conversar. Vamos beber um gole de cerveja (você pode? tem problema?) e conversar. Estamos há pouco tempo juntos, eu sei. Não botava futuro na gente. Não esperava isso. Acho que você também não. O importante é manter a cabeça no lugar, mas como fazer isso quando você já perdeu a cabeça faz tempo?

Cinco horas. Estaciono no condomínio dela, da nossa filha, não, da minha namorada, não, da maternidade, da escola, do trabalho, do cemitério. Tudo tem que ser ao mesmo tempo agora. Lendo, até parece que faz alguma lógica mas não tem lógica nenhuma, é tudo ao mesmo tempo em todos os lugares, intenso, despudorado, a vida é sem-vergonha e esmurro a porta como se fosse um enfermeiro atendendo uma emergência, talvez eu seja.

Ela abre a porta, disfarço minha cara de pai, pálida e suada, pergunto o que ela queria falar, ela senta no sofá e levanta a camisa, olha, botei piercing no umbigo.

Ela se assusta com a risada, rio até as lágrimas e meu filho escorre pelas minhas lágrimas.


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Eis a medida:
a ação definitiva
que ninguém esperava
e ninguém exigia.
Vide: a canetada
viril, acertada,
que esmaga vilanias
e corrige injustiças.
A heroica, inesperada, imprevista, viril, esmagadora, justiceira e desnecessária canetada.
Do abismo
ressurge a esperança.
Ergue-se o mito.
Extingue-se a tirania.
Gigantes benignos
brotam da terra
e castigam os ímpios.
Tudo está bem,
maravilhosamente bem,
a canetada
resgatando
a idílica era que nunca existiu.


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O algoritmo do facebook sempre dá sugestões de novos amigos baseadas no número de amigos mútuos. Alguns eu conheço mas preferia não conhecer. Outros são totais desconhecidos, apesar de termos muita gente em comum.
Ontem, o algoritmo sugeriu um amigo pra mim: "Satã". Seiscentos e sessenta e seis amigos em comum. Cara vermelha, com chifres. Achei que fosse uma foto do Vingador, do Caverna do Dragão. Mandei um request de amizade. Ele aceitou. Recebi uma mensagem automática de Satã: "dê oi ao seu novo amigo".
- Oi. - escrevi.
Ele respondeu minutos depois:
- Oi.
Fiquei calado. Ele escreveu em seguida:
- Tudo bem?
- Tudo.
- Quer vender sua alma?
- Não.
Silêncio. Achei que fosse um daqueles que só usam o facebook como instrumento de trabalho. Mas ele respondeu logo:
- Sou o Príncipe das Trevas.
- Muita responsabilidade, hein?
- Sim. Você sempre pode contar com a maldade das pessoas.
- Imagino.
- A maldade vem mais naturalmente do que a generosidade.
Mandei um gif de um gato lambendo um cachorro.
- Eu estava lá, no momento da Criação. - ele respondeu - Não havia essa de gatinho lambendo cachorro. O Universo é indiferente. A natureza é amoral, antiética, um poço escuro de dor e injustiça. Eu sei. Fui eu que a inventei.
Dei unfollow.


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Crise. Profunda.
Destravei o celular e, pela primeira vez na vida, não havia NADA.
Nenhum SMS de promoções vagabundas. Nenhuma notificação de Feisbuc, Tuíti, Estragam. Nenhuma mensagem de zap. Nenhum aviso do Google Tudo dizendo que vai chover, que vou pegar mais trânsito. Nenhuma ligação perdida da Claro querendo me vender um pacote ou do Santander me oferecendo preu abrir uma conta. Absolutamente nada.
O celular estava limpo, imaculado, nada havia ocorrido.Entrou em modo zen.
Às vezes as coisas não acontecem, e isso pode ser aterrorizante hoje em dia.
UPDATE: eu tinha desligado o wi-fi, só isso. As notificações voltaram jorrando, para meu alívio e desespero.

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ganhe dez mil reais DORMINDO
VOCÊ LEU CORRETAMENTE
ganhe dez mil DORMINDO TODA NOITE
as trinta fotos mais comprometedoras da histórias
VOCÊ NUNCA VAI ADIVINHAR a número seis
professores de inglês querem matar esta moça
POR TER INVENTADO UM MÉTODO revolucionário
PARA SER FELIZ
como você ficou feliz?
eu fiz o curso de mecânica elétrica no INSTITUTO UNIVERSAL BRASILEIRO
é claro
conheça o jogo sexual de 2019
tente ficar quarenta segundos sem
tente ficar
Feliz
por quarenta segundos


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- Onde estamos, Marisa?
- Não se preocupe, menina. Você vai gostar. É super tendência.
Você poderia dizer que o "Al Alfas" era o restaurante mais badalado do mundo. Botava "El Bulli" e o D.O.M. no chinelo. Primeiro restaurante com quatro estrelas no Guia Chinelin. Quem conhecia as últimas tendências no mundo gastronômico TINHA que comer no "Al Alfas", e a Marisa, minha amiga supercrítica gastronômica, me levou lá.
- O Pierrô Jacques é o chef mais incrível do mundo. Amigo meu. Super tendência. - disse Marisa, enquanto entrávamos no restaurante. O Al Alfas fica no meio do deserto do Marrocos, só dá pra chegar de camelo. É um estilo bem roots, bem vintage, falava Marisa enquanto entrávamos numa tenda toda rasgada, em pleno calor de 55 graus Celsius.
Logo apareceu Jacques, um francês vermelho de tão bronzeado, com um sorriso amarelo e olhos azuis que pareciam fuzilar a gente. Ele e Marisa se beijaram na virilha ("super tendência", disse minha amiga), e nos sentamos na areia para provar do menu "especial" que o chef tinha preparado para a gente.
- Uso um ingrediente especial, de sabor bem terroso, cultivado super-organicamente, em todos os meus pratos. - explicou Pierrô Jacques.
Ele bateu palmas e dois meninos (trabalho infantil? seria isto tendência?) nos trouxeram tigelas com o que parecia ser um suflê de chocolate, de forte aroma amadeirado (madeira defumada, parecia). Era cremoso. Muito cremoso. De sabor muito forte.
- O Jacques foi pioneiro no uso de elementos orgânicos na cozinha. - explicava Marisa, enquanto comíamos o suflê. Não gostei muito.
- Que tipo de "elementos"?
- Insetos, algumas plantas silvestres. Até colônias de protozoários. Ele diz que "a melhor cozinheira é a mãe natureza". Legal, né?
Depois do suflê, os meninos trouxeram o prato principal: um "consomé" de bolotas feitas de alguma coisa densa, marrom-escura, cremosa (algum tipo de carne moída?), com um molho escuro que parecia vinagre balsâmico. Tinha o cheiro forte, de fazenda.
- Ano passado, ele começou a investir na cozinha super-orgânica. - disse Marisa.
- E o que é isso?
- Ingredientes que vem do corpo humano. Por exemplo, ele desenvolveu um queijo feito de um fungo cultivado na vagina.
- Meu Deus do céu, Marisa, que nojento! - exclamei, soltando a colher.
- Que besteira, amiga. Você tem nojo do próprio corpo, por acaso?
Estava prestes a responder quando vi, por um rasgão na tenda, um dos meninos saindo de uma cabine fora do restaurante. A cabine deveria ser um banheiro improvisado. Ele saía com um balde cheio de alguma coisa, e eu podia ouvir milhões de moscas zumbindo em torno do balde.
Ele entrou com o balde na cozinha.
Olhei para meu prato.
Levantei tropeçando, caí sobre a barraca, que se desmontou toda.
- MEU DEUS DO CÉU, MARISA.
Enquanto eu saía correndo pelo deserto, atrás do camelo, ouvi a voz de Marisa à distância, "é tendência sua ignorante, é super-tendência"...


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Seu Aristarco, numa galeria de arte? Sim, você leu direito. A autora do feito foi Cláudia, seu filha mais nova, que, num domingo, conseguiu tirar o velho da frente do computador e arrastá-lo para uma exposição que tinha acabado de ser inaugurada perto de onde os dois viviam.
A verdade é que a exposição não era muito boa. O artista, um jovem desconhecido, apresentava ali sua primeira exibição solo - antes, só tinha participado de algumas mostras coletivas -, e os quadros mostravam várias etapas de sua formação. Um abstrato ali, um expressionista acolá, um nu feminino gigante pintado com cores neon berrantes e algumas colagens que traziam uma vaga crítica social, exibindo manchetes de jornal e fotografias policiais em meio a tampinhas de Fanta. Metade dos visitantes era composta de família e amigos do pintor e a outra, de curiosos que encaravam exposições artísticas não com prazer, mas como uma tarefa necessária apenas para ter assunto em conversas futuras.
De braço dado com a filha, o velho passeava o olhar pelas obras com uma expressão de nojo, torcendo a boca à medida que lia os preços rabiscados nas etiquetas coladas nas molduras. Por várias vezes, Aristarco reclamou da Lei Rouanet e dos “artistas vagabundos que mamavam nas tetas do governo”, ainda que não soubesse muito bem o que era a Lei Rouanet e sem esclarecer que tipo de arte lhe agradava mais.
Paciente, Cláudia ouvia ao desfile de rabugices do pai, apenas feliz em ter conseguido fazê-lo mudar um pouco de ares. Os últimos meses não haviam sido fáceis para ela, que havia se divorciado e voltado a morar com o pai, agora viúvo. A cada dia que passava, Aristarco se tornava mais irascível. Os dois não conseguiam conversar sobre qualquer assunto - política, economia, a qualidade do pão feito na padaria da esquina, a necessidade de consertar a infiltração no teto da cozinha - sem que a conversa descambasse para uma briga venenosa. Evitavam-se. No máximo, ela tentava resgatar histórias de família, repisadas tantas vezes que conhecia as exatas palavras do velho ao contá-las. O passado era o único território consensual entre os dois. Fora isso, porém, cada um normalmente se mantinha aos seus afazeres, Cláudia com seu emprego numa loja e o pai lendo notícias e escrevendo comentários furiosos na Internet.
Percebia, triste, que Aristarco não encontrava mais estímulo que o impelisse a viver. Para ele, os dias se repetiam indefinidamente, como uma grande massa amorfa de tempo.
Perdida em divagações, Cláudia só percebeu depois de algum tempo que tinha perdido o pai de vista. Procurou-o num pequeno grupo que tirava selfies diante de um retrato de Lady Gaga feito a carvão. Passou por uma escultura de um tronco de árvore, investigou os quatro cantos da galeria, cada vez mais nervosa. Finalmente, quando começava a se desesperar e procurava um guarda para pedir ajuda, encontrou Aristarco num canto escondido, examinando um quadro. Estava prestes a repreendê-lo pelo sumiço, mas permaneceu calada. Admirou-se pela compenetração do velho, que até aquele momento não havia parado de reclamar do que via na galeria mas que agora parecia tranquilo, até plácido, enquanto estudava minuciosamente o quadro diante de si.
Era uma tela de cerca de um metro e meio de comprimento por um de largura. Duas folhas de madeira de uma janela se abriam para uma campina verde, com árvores espalhadas pela grama e, ao fundo, o risco azul escuro do mar se encontrava no horizonte com o céu anil, pontuado por nuvens pintadas delicadamente, quase transparentes. Era uma obra simples, mas bela em sua simplicidade.
Cláudia continuou onde estava, admirada pela concentração de Aristarco. Ele, por sua vez, não arredou o pé, imóvel, com as mãos cruzadas nas costas, mergulhado no quadro. Apenas depois de vários minutos, voltou-se e caminhou silenciosamente em direção à filha. Esta percebeu, chocada, que havia lágrimas nos olhos do velho, e se pegou tentando lembrar qual fora a última vez que o vira chorar.
Aristarco se manteve taciturno pelo resto do dia. Até evitou o computador. Cláudia pensou em perguntar o que ele havia visto naquele quadro mas desistiu de fazê-lo, temendo provocar uma nova discussão.
Depois do almoço, surpreendeu-o revirando uma caixa de velhas fotografias. Mais uma vez, espreitou à distância, observando o pai apanhar cada uma das fotos monocromáticas, impressas em papel grosso e rugoso com as bordas recortadas como cartões de aniversário, e examiná-las como se lesse um livro. Algo havia acontecido com ele naquele dia, pensou Cláudia; algo especial e raro, que ela não conseguia definir mas que acalmava seu coração como se orasse numa igreja silenciosa.
No final da tarde, ela anunciou ao pai que tiraria um cochilo. Aristarco, sorrindo, lhe desejou um bom sono. Esperou alguns minutos para ter certeza de que a filha não sairia do quarto e, em seguida, se vestiu e saiu de casa. Tomou um táxi e voltou à galeria.
Era quase o horário de fechar. Àquela altura, o salão estava vazio. Após implorar ao guarda, Aristarco conseguiu entrar, insistindo que desejava ver uma única obra específica e que seria rápido.
Seguiu diretamente ao quadro. Na penumbra da galeria, o campo que se estendia entre a janela de madeira e o mar parecia brilhar com luz própria, uma cena bucólica que lhe inspirava recordações e sonhos antigos.
Aristarco a contemplou por um momento. Em seguida, arrastou com dificuldade uma cadeira do canto do salão para diante do quadro. Lentamente, apoiou uma perna sobre a cadeira, depois a outra, equilibrando-se de pé sobre a cadeira. Sua mão avançou indecisa em direção à tela e, sem encontrar resistência, atravessou o quadro. Segurando no parapeito da janela, inclinou o corpo para dentro da tela, passando uma perna pela moldura, depois a outra.
Ouviu-se um farfalhar de grama, como se um peso tivesse sido amortecido por uma pilha de folhas, e mais nada. A galeria vazia mergulhou no silêncio.

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- Pssst.
Uma velha sentada na calçada me chamou. Cheguei perto.
- O rapaz me dá dois real e eu digo ao rapaz a verdade mais verdadera que tem.
Sorri e concordei.
- Rapaz pensa que camisa fina é mais fresca que camisa de tecido grosso. Mas camisa de tecido grosso enxuga melhor o suor e controla mais a temperatura do corpo. Camisa grossa não empapa e é mais fresquinha que tecido leve.
- É verdade isso?
- A mais pura verdade.
Dei os dois reais.


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- Me dá um trocado?
- Como você é lindo… vocês são lindos. O sal da terra. Vocês são o chão que nós pisamos.
- Brigado. O senhor paga um almoço?
- Não, meu querido, infelizmente não posso. Mas vamos cantar vocês até o fim dos tempos. Vamos compor músicas, fazer filmes sobre o enorme sacrifício de vocês e depois vender pra Netflix. Vamos postar vídeos com muitos likes. Milhões saberão de seu sacrifício. Sal da terra. O refugo do mercado. Sobreviverão com toda a sua miséria em nossos corações. Que lindos…
- O senhor compra uma marmita pro meu filho?
- Também estou com fome. Daqui a pouco vou comer um sanduíche ali. E depois vou escrever sobre você. Sempre, em algum lugar, alguém estará pensando em você. De maneira abstrata, claro. Ninguém sabe seu nome.
- Eu me chamo…
- Não! Não diga! Não mate o efeito. Vocês são eternos. As coisas eternas não tem nome. Você é uma singularidade. É lindo. O tempo vai devorar vocês, nossos pés vão esmigalhar seu corpo e transformá-lo no asfalto onde vamos construir nossas casas, mas vocês serão eternos como as serras, enquanto nós, que temos nome, vamos ser esquecidos mesmo antes de apodrecermos. Os vermes vão demorar mais conosco, porque temos mais gordura, mas vocês vão ser enterrados já mumificados. Nós somos felizes porém patéticos, vocês são tristes mas sublimes. Sentimos tanta inveja que vocês não imaginam. Remoemos de inveja da eternidade de vocês.
- O senhor me dá um…
- Tenho que ir. Mas olha: inveja, tá? Muita. Vou rezar por você. E farei filmes.
- Minha famí…
- Toma um chiclete. Não alimenta nada, mas engana o estômago.
- Brigado…
- Nós nos enganamos o tempo todo. Mas vocês, vocês são a verdade.
- O senhor…
- Meu coração pula de alegria dentro do meu celular.




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- Vem ver o bebedor de pássaros que instalei.
- Jura? Que legal, cadê?
- Tá ali, naquele galho perto da janela.
- Achei que você não gostasse de pássaros. É tão bonito ver alguém que ainda se preocupa com o meio ambiente, hoje em dia.
- Sssssh. Olha.
Um beija-flor se aproximava.
- Que lindo...
Na mesma hora em que o passarinho passou perto do bebedor, uma lâmina saiu do aparelho e cortou o beija-flor em dois.
- Eu disse "bebedor"? Desculpe, me enganei.



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Cheguei em casa do trabalho. Estranho, a chave não entrava na fechadura. Apertei a campainha.

Ouvi a voz de Lili lá de dentro.

- Quem é?

- Filha, é mamãe. Abre a porta, por favor.
- Mamãe tá aqui. Quem é?
Não dei bola. Lili tem 6 anos e uma imaginação fértil. Mas eu estava cansada e aborrecida.
- Filha, abre logo a porta.
Passos. A voz de meu marido. Destranca a porta.
- Pois não?
- Oi, amor.
Inclino-me para beijá-lo, mas ele dá um passo atrás, me olhando com a testa franzida. Lili, assustada, está agarrada à perna dele. Que porra era aquela?
- Cacete, Antônio, sou eu! Marlene! Sua mulher!
Antônio me olha de cima abaixo.
- Não sei quem é a senhora, mas minha mulher está jantando comigo e com minhas filhas.
Oi? Ele escancarou a porta. Na mesa de jantar, pude ver Fabi, nossa filha mais velha, e uma mulher que não reconheci. Ela se levantou e caminhou em direção à porta.
- Amor, você conhece essa mulher? - disse Antônio.
- Deixa que eu falo com ela. - ela respondeu. Antônio assentiu, levando Lili debaixo do braço.
Eu estava de queixo caído, sentindo o rosto gelado. Afinal, que PORRA era aquela??! Antônio tinha bebido, pra deixar uma mulher estranha dentro de casa?! E porque as meninas não falavam nada? A mulher nem se parecia comigo!
- Calma. - disse a impostora - Não precisa ficar nervosa. Eu explico.
- Deixa eu entrar na minha casa! - tentei passar, mas ela me segurou pelo braço.
- Escuta. Já era. Perdeu. Quem tá aqui agora sou eu. Vai procurar outra família.
- Você tá maluca?! - eu já estava gritando - Aquele é meu marido, aquelas são minhas filhas! Esta é minha casa!
- Era. - ela disse, calma e sorrindo - Você ficou muito tempo sem dar as caras. Saía cedo. Voltava tarde. Só ficava mandando mensagem no Whatsapp. Quando estava em casa, ficava trancada no quarto. Chega uma hora, as pessoas se esquecem do rosto. Da voz. Chega uma hora, qualquer um chega aqui dizendo que é você e as pessoas acreditam.
Eu podia sentir as lágrimas deixando sulcos mornos no meu rosto. Minha substituta me olhava, impassível.
- Quem é você? - perguntei baixinho, soluçando.
Ela se inclinou e murmurou no meu ouvido:
- Eu sou o hacker.


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O assessor bateu na porta de Luís Coelho, um dos sócios da Coelho, Coelho & Coelho, a maior firma de advogados de São Paulo.

- Com licença, doutor. O cara que marcou a reunião das duas já chegou.

- Obrigado, Vanderlei. Por quê essa cara?
- O doutor não vai acreditar. O cara é um cachorro.

Vanderlei saiu. Tenho que dar férias pra esse rapaz, pensou Luís.

Cinco minutos depois, Luís, Lúcia e Lindolfo Coelho, os três sócios da firma, entraram na sala de reuniões. No outro lado da mesa, estava sentado placidamente um fox terrier, de pêlo preto e sedoso.

- Deve ser uma piada! - exclamou Lúcia, irritada.

- Piada nenhuma, doutora. - disse o terrier calmamente, com uma voz marcante que lembrava Francisco Milani. - Sentem-se, por obséquio.

Assombrados, os três se sentaram. Lindolfo olhou debaixo da mesa para ver se havia algum microfone ou um ventríloquo escondido.

- Doutor, posso lhe assegurar que a voz é minha. - disse o cachorrinho. - Sei que o tempo dos senhores é precioso, então serei breve. Meu nome é Fifonho. Queremos contratar vossa firma.

- "Q-queremos"? - gaguejou Luís, depois de conseguir sair do susto. - Você e mais quem?

- Nós os animais domésticos, ora essa.

- Eles falam... como você?

- Óbvio. Sempre conseguimos falar. Não somos burros, sabe. Vocês que nunca perceberam.

Os três sócios se entreolharam. Lúcia tomou a palavra.

- E p-por quê precisam de nossos... serviços?

- Trata-se de um caso de violação massiva de direitos autorais. Valerá uma fortuna. Achamos que, pelo nome da firma, os senhores seriam nossa primeira opção.

- Mas "Coelho" é só um sobreno...

- Há mais de uma década - interrompeu Fifonho -, nossos donos nos filmam sem pedir permissão e publicam os vídeos na Internet. Cães. Gatos. Coelhos. Peixes. Nas mais constrangedoras situações. Milhares de vídeos. Não, milhões. Eles nos vestem com fantasias ridículas, filmam nossas reações diante de monstros de brinquedo, nos filmam comendo, dormindo e copulando. É uma desgraça.

- Sim, adoro vídeos de bichinhos. - riu Lindolfo, mas um olhar de Fifonho o fez se calar imediatamente.

- Nosso objetivo é processar nossos donos e cobrar indenização por danos morais e direitos autorais por esses vídeos. Cansamos de ser mão-de-obra escrava. Aceitam o caso?

Os sócios se entreolharam novamente. Luís se levantou.

- Sr., hã, Fifonho, o senhor tem que compreender que não há precedente que um animal seja parte num caso... não podemos aceitar... a ética da magistratura proíbe...

- Calculamos que o valor do processo pode chegar a vinte trilhões de dólares.

- Toca aqui! - disse Luís, agarrando a pata de Fifonho e sacundindo-a. - Vocês acabaram de contratar os melhores advogados do País! Vanderlei, traz uma garrafa de champanhe!

Os três se abraçaram e jogaram Fifonho no ar. O champanhe veio e todos brindaram pelo sucesso do caso.

Quando o terrier se despediu, Lindolfo se aproximou de Lúcia, o celular na mão.

- O que me lembra, tem esse vídeo incrível do gatinho que encontra o passarinho e...

Ela tomou o telefone de suas mãos.

- Ética, Lindolfo, por favor. Ética.


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Quando o último pássaro
tiver voado
e já não tivermos nossos infernos particulares
para cultivar,
quando a época de desecrar
tiver passado,
sentaremos na varanda e conversaremos.
Apenas nós,
tu, mítico e simbólico ser
e eu, muito de carne e sonho.
Não precisamos de mais ninguém, os outros fazem muito ruído.

Juntos, concluiremos nosso acordo.
Depois das cinzas e ofensas,
o acordo.
Apertaremos as mãos
e partiremos,
sem esquecer o acordo.
Atingiremos uma nova forma de ser
e uma nova forma de conviver,
se já não for tarde.

Além de toda a gritaria,
todas as farpas,
as cizânias e as brigas,
precisamos de um novo acordo.
Você sabe disso e eu também.

É necessário preservar o que possuímos,
Consertar o que se quebrou e prosseguirmos,
pois éramos muitos e já não somos ninguém.

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O chão que agora piso
não passa de prolongamento
daqueles primeiros passos num piso de taco,
e as nuvens que agora vejo
não passam de uma repetição do céu
daquele dia,
tão antigo,
ancestral.

E os beijos
são replicantes daquele primeiro beijo
que dei.
Você sabe qual é.
E aquele carro, essa cidade,
essa pasta de dentes
nada mais são que pálidos reflexos
de arcanos perfeitos.
Pesadelo platônico na metrópole sul-americana.
Amor de Heisenberg.
Quando alguém o define, ele se perde.
Quando você o busca, ele foge.
Quando o tenho na mão, desaparece.
Devaneio fugidio na caverna.
Desde meus primeiros passos incertos no chão de taco
eu já caminhava sobre o ombro de gigantes e ladrilhos de eternidade.


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- Acorda, filhão! Bom dia! Feliz aniversário!

- Hm.

- Pode escolher o presente que quiser. Outro Mercedes, talvez?

- Não. Enjoei de carro.

- Um jatinho, igual ao da sua irmã? Quer que eu compre um fuzil pra você? Ou quer ir pra Bali? Passar um ano em Paris? Pro meu filhão, tudo!

- Tem um negócio irado que meus amigos tão fazendo. Eu quero.

- Pode dizer. Tatuagem de corpo inteiro? Piercing no cérebro?

- Não. É tortura.

- Tort... oi?

- Tortura, porra. Você fica numa sala com o espécime amarrado e faz o que quiser com ele. Parece que tem umas salas especializadas que fazem isso. É sinistro.

- “Espécime”, tipo animal, cachorro, porco?

- Pô, pai, não né. Gente mesmo. Mendigo, eu acho.

- Mas filho... isso não é ilegal?

- Dã, pai, claro que é.

Silêncio.

- E daí que é ilegal? A gente não tem dinheiro?

- Tem, mas...

- Você e mamãe não vivem subornando gente? Não subornaram aquele policial quando atropelei aquela vendedora de balão?

- Foi diferente, filhão...

- Quero torturar. Você perguntou o que eu quero. Eu disse.

- Bem, se você quer tanto assim...

- Eba! Com o pacote “plus”, você pode torturar o pai na frente da família. Paga o pacote “plus” de tortura pra mim?

- Pago, filho.

- E quero uma bazuca.

- Aí é mais fácil.


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Entrei numa loja de roupas. Subitamente, perdi o fôlego. No sentido literal mesmo. Senti me engasgando.
- Bem vindo à nossa loja, senhor.
Sufocando, olhei para a atendente. Ela usava um capacete de astronauta e sorria para mim.
- Não... consigo... respirar... - murmurei, tossindo.
- O ar é cortesia só para clientes, senhor. O senhor pretende comprar algum artigo?
- Eu... não... sei... aaarrgggh...
- Temos promoção de gravatas hoje.
Quase apagando, tentei chegar à porta da loja para escapar, mas minhas forças me abandonavam. Caí tossindo no chão.
- Também chegou a nossa nova linha de T-shirts.
- Urgh. Urrrrgggh...
- Com quinhentos reais em compras, o senhor ganha inteiramente grátis um centímetro cúbico de ar.


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Talvez você não devesse estar aqui.
Pense. Todas as suas ligações débeis com a realidade... os lampejos de paz que só tornam as trevas mais dolorosas... o simulacro de relações humanas que te cerca. Relações tingidas em mentiras sórdidas. Referências regurgitadas de sombras digitais... nada que permaneça. Nada te move de verdade, não é?
É o que estou tentando dizer. Creio que você NÃO DEVERIA estar aqui. Por algum erro da Criação, você nasceu por engano. Deslocado desde o início, com "design" defeituoso, a data de validade expirada antes da data de fabricação. Em dado momento, a máquina de almas engasgou e você foi o resultado. Distraídos, os fiscais de qualidade te deixaram passar e você foi lançado à Terra.
Daí seu sentimento de culpa, sua constante inadequação. Não se culpe, porém. Foi um erro Dele, não seu. Estou aqui para consertá-lo.
Vim para levá-lo de volta.


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Andros Maxximus, nosso heróico Homem de Titânio, aproxima-se da Torre do Terror, covil do maléfico Prof. Insanus, a fim de derrotar seus Cyber-Gigantes que ameaçam destruir o mundo!
- Nada do que faço tem sentido… Minha super-força é capaz de derrubar paredes e entortar aço mas não é capaz de dar respostas às perguntas que faço em meu íntimo. Qual o sentido da vida?
Oh, não! Nosso herói sofre uma ameaça ainda mais perigosa do que os Cyber-Gigantes: uma crise existencial! 
Maxximus, reaja! A Terra precisa de você!
- Só porque você está pedindo, Diogo… se fosse por mim, estaria em casa chorando no travesseiro.
Suspirando de melancolia, o Homem de Titânio irrompe na sala de controle da Torre do Terror. O Prof. Insanus o observa com surpresa e raiva, agitando seu punho no ar:
- Maldito Andros Maxximus! - grita o cientista enlouquecido - Chegou tarde demais para impedir a explosão de minha Caos-Bomba! Apenas eu, Insanus, seria capaz de construir uma obra tão genial e destrutiva! O mundo pagará por ter me rejeitado! A vingança será minha! Cyber-Gigantes, destruam esse verme!
“Insanus é a personificação do superego. Apesar de inteligente, no fundo é inseguro e tímido. Alguém deve ter rido do projeto de feira de ciências dele quando era pequeno. Coitado.”, pensa Maxximus, enquanto se desvia dos raios de ácido sulfúrico lançados dos olhos dos Cyber-Gigantes.
- Sinto que sou uma engrenagem minúscula, emperrada no engenho do destino. - murmura nosso herói, enquanto foge pela Torre do Terror em busca da Caos-Bomba para desarmá-la.
Andros, você não está colaborando.
- Desculpe, Diogo. Mas sinto que este não é meu papel.
A Terra precisa de você!
- A Terra vai sobreviver. Ela existe há cinco bilhões de anos, nós somos apenas um piscar de olhos na existência do planeta. Nós superestimamos nossa atuação. Não passamos de mosquitos…
Que saco, viu. Ah, veja Andros, é Valerya, a filha rebelde do Prof. Insanus! Ela é apaixonada por você e vai ajudá-lo a desativar a Caos-Bomba!
- Gosto da Valerya, mas vamos combinar, o personagem é muito fraco. Ela não tem motivação além de ficar andando seminua pela Torre de Terror, dizendo que me ama.
Agora não é hora para psicologizar personagens, Andros! Rápido, entre na Mega-Câmara!
- Essas heroínas tipo Barbarella e Druuna não passam de fetichização dos instintos sexuais mais baixos de leitores adolescentes. Por quê você não torna ela uma cientista como o pai, voltada para o bem? Ou a transforma numa mercenária? E por quê diabos ela está vestindo um BIQUÍNI??
Agora não é hora para explicações, Homem de Titânio! Veja, logo em frente: é a Caos-Bomba!
- Acho que a hora é perfeita para explicações. Não estamos mais nos anos sessenta, agora é a época da representatividade das minorias. Por exemplo, a história não tem personagens negros nem gays… 
Oh não! Nosso herói se recusa a avançar até que a história se adeque aos princípios de representatividade das narrativas excluídas da contemporaneidade!
- Nada mais justo.
- Eu também acho absurdo ficar andando de biquíni. - diz Valerya. - Faz um frio danado aqui na Torre do Terror.
Os Cyber-Gigantes chegaram! Rápido, Maxximus e Valerya, vocês devem destruir a Caos-Bomba!
- Suas frases com ponto de exclamação só servem para tentar ativar um modo de ação e ansiedade contínua, impedindo a reflexão sobre nossa própria condição. - diz Maxximus, com um muxoxo.
- E fazem você parecer um vendedor de TVs gritando num microfone. - arremata Valerya.
Desculpem. Faço o melhor que posso.
- Você tem que atualizar essas narrativas.
Sério que vocês não ligam que os Cyber-Gigantes vão chegar a qualquer momento? Ou que o Prof. Insanus está prestes a detonar a Caos-Bomba?
- Essa história absurda é só uma distração para os problemas reais do mundo: a pobreza, a violência doméstica, o analfabetismo…
Mas a arte é importante. O entretenimento é importante.
- Não a ponto de alienar as pessoas. - diz Valerya.
Subitamente, os Cyber-Gigantes se congelam onde estão. O Prof. Insanus fica petrificado, com o dedo em riste sobre o botão prestes a ativar a Caos-Bomba.
- Por quê você não escreve algo mais sério? - pergunta Maxximus - Algo com mais consistência. Um quadrinho autobiográfico, ou um romance em que a personagem viaja a um país exótico para reencontrar sua essência.
Isso seria mais clichê do que o cientista maluco querendo destruir o mundo, Andros.
- Seria melhor do que essas histórias fabricadas em escala industrial. - murmura Valerya, caminhando até onde está o pai e retirando o controle da bomba de suas mãos.
Não sei. Já tentei escrever coisas mais sérias. Não deu certo.
- Então escreva coisas engraçadas. Todo mundo gosta de rir.
- Mas que seja engraçado e filosófico. - diz Maxximus.
E que divirta as pessoas.
- Mas que também pondere sobre as grandes questões da humanidade.
- E que não resvale em estereótipos.
Vocês estão querendo demais. Já seria um grande feito tirar a cara das pessoas de seus celulares.
- De qualquer maneira, é importante tentar fazer algo novo. - diz Valerya.
Antes que eu possa fazer alguma coisa, ela aperta o botão do controle. A Caos-Bomba explode, fazendo a realidade em pedaços.


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Detran. Horário de pico.

- Oi. Eu queria fazer minha habilitaç...

- Nome.

- Valerya Insanus. Com ípsilon.

- Como é, minha filha?

- V-A-L-E-R-Y-A. E “Insanus” é com “u”.

- A senhora é estrangeira? Vou precisar do certificado de residência.

- Não, eu nasci e moro na Torre do Terror, aqui perto.

- Endereço.

- Torre do Terror, sem número.

- Ocupação.

- Sou filha de cientista maluco.

- Não posso botar isso, meu amor.

- Mas não posso fazer nada. Meu criador não me deu nada pra fazer. Na verdade, sou uma fantasia adolescente de ficção científica.

- Você estuda, filha?

- Sim. Antes, eu estudava formas de torturar os prisioneiros do meu pai. Mas desde que me aliei a Andros Maxximus, o Homem de Titânio, tento me redimir de minha vida de maldades.

- Vou botar aqui, “estudante”. Data de nascimento?

- 14 de agosto de 20.419.

- Tem algo de errado nesse ano aí.

- Eu e meu pai somos do ano 20.419. Entramos por uma fenda interdimensional causada por um curto-circuito num Cyber-Gigante e viemos parar nesta época.

- Só tem quatro espaços no campo do ano, meu anjo. - Olha - ela bateu com o dedo no teclado -, nem vai pra frente. Vou ter que chamar minha supervisora.

- Olha... quer saber? Mudei de ideia, não quero mais tirar carteira de motorista não. Obrigada.

- Tem certeza? A gente tira a carteira, é rapidinho...

- Tenho. Além do mais, o nosso criador vai acabar essa história daqui a quatro linhas. A senhora vai desaparecer para sempre.

- Nossa, tão moça e já doida, coitada. Usando o nome de Deus em vão.

- O problema é que sou autoconsciente. Nosso criador nos vê apenas como personagens numa historinha. Talvez eu volte, mas a senhora vai sumir agora. Assim como todo esse posto do Detran.

- Isso é blasfêmia, filha.

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- Obrigado por ter vindo. Meu filho gosta muito de você. Mas entre… quer café? Acabei de passar. Tome. Vai tudo bem, só muito cansada. Você não sabe o trabalho, cuidar de filho sozinha. Dizem que ser mãe é padecer no paraíso, né? Eu concordo. Sou capaz de tudo por ele, mas às vezes… às vezes… penso em ir embora. Horrível dizer isso, né? Você me acha uma mãe ruim por dizer isso? Eu que sei. Noites em claro, pensando. Talvez você não saiba, mas ele sofre de uma doença rara. É… desculpa, prometi a mim mesma que não ia chorar. Já, já levei a vários médicos. Ninguém conseguia diagnosticar. Tudo o que ele comia, vomitava. Tentei dar de tudo. Sopa, fruta, soja, ervas. Nada adiantava. Chegou a ficar bem, bem fraquinho. Quase morreu. Não, fica, toma mais um café. Dei de tudo, coisas que você não imagina. Estava desesperada. O médico já tinha desenganado. Um dia, eu tava passando a mão no cabelo dele. Quando ele se vira e morde meu dedo. Forte. Saiu sangue. Gritei, limpei a ferida. Você acredita que ele ficou mais calmo? Tive uma idéia. Às vezes, a gente desenvolve algo estranho no corpo. Algo que toma conta da gente, como um verme, um parasita. E se um parasita tivesse tomado conta do meu filho? Tirei a prova. Dei meu dedo pra ele morder. Ele abocanhou na mesma hora. Mastigou. Engoliu. Dei o que pude. Veja, aqui na minha barriga. Na perna também. O que pude. Ele melhorou por um tempo, mas a fome logo voltava. É, eu sei, o café tá fraco. Dá sono. Mas então. Eu não podia dar tudo, por mais que quisesse. Se eu desse, ele ia ficar sozinho no mundo. Ninguém ia entendê-lo. A fome dele. Só mãe pra entender essas coisas. É a minha sina. Mas então. Eu peço pra todo mundo que vem nos visitar. Pra que vocês ajudem meu filho. Tá cansado? Dorme um pouquinho. Filho? Vem cá. Me ajuda aqui com o tio. Deita ele no chão. Em cima do plástico. Assim. Pode comer.


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- Meu filho, eu queria tanto um neto.

- Eu sei, mamãe, a senhora já falou isso várias vezes.

- É porque não entendo como um homem da sua idade, casado, com segurança na vida, não queira um filho. Criança é a coisa mais bonita do mundo.

- Simplesmente não quero, mamãe. Não vejo necessidade. Pra mim, uma tarde lendo um bom livro ou viajando não se compara a cuidar de um filho.
- Mas é a ordem natural das coisas. "Crescei e multiplicai-vos".
- Não sou religioso, a senhora sabe.
- Criança faz a gente entender a vida melhor. É companhia na velhice.
- Já me resignei a entender o mundo nunca, mãe. E não quero pensar na velhice agora.
- Vocês vão mudar de ideia, vão ver... o destino do homem é perpetuar o sangue. Quem não procria, perde a linhagem.
- Cruzes, parece coisa do Zé do Caixão! Eu lá quero saber da "minha linhagem"... não sou barão de novela do século dezesseis, mamãe. Ter um bebê deve ser bonito, reconheço, mas essa coisa de preservar a família... no cálculo cósmico das coisas, não faz a menor diferença. Sei não. Cada um sabe de si.
- Você me faria tão feliz.
- Eu tenho que ser feliz antes de te fazer feliz, mãe.
- E filho ajuda a deduzir mais no Imposto de Renda.
- Mamãe!
- Brincadeirinha.


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- Não gostei desse filme.
- É (risinho), apenas pessoas inteligentes podem apreciar esse filme. Compreender todas as nuanças do roteiro, a profundidade dos personagens, os dilemas dos conflitos humanos.
- Não compreendi mesmo. Só achei chato.
- "Chato". O último refúgio do medíocre. Uma palavra que nada diz. Achou o filme monótono? As longas cenas reflexivas do protagonista boiando no mar, dirigindo um caminhão pelo sertão sem diálogos, sem cortes, sem movimento de câmera, suscitam a auto-reflexão sobre a condição do homem diante do abismo da falta de sentido da morte e da destruição dos valores sócio-culturais de sua realidade. Mas não. Diante dessa rica tapeçaria de sentimentos...
- (bocejo)
- ... você acha o filme "chato". Pérolas aos porcos. O público não está à altura da verdadeira arte. Vai ver comédia do Leandro Hassum, vai. Exposição do Romero Britto.
- Você dirigiu o filme, né.
- Evidentemente.



¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡¡????????????????????????????


Não, eu não leio mais. Quer dizer... todo mundo lê, né? Jornal, quase todo dia. As manchetes. Mas livro, muito pouco. Li um ano passado. Chamava-se... er... eu lia muito quando tava na faculdade. Meus pais gostavam de ler. A casa era abarrotada de livro. Hoje, não tenho tempo. Outro dia, tava conversando sobre isso com um amigo. Ele tava tentando me convencer que "sempre há tempo para ler". Arrogância, né? Tentei explicar que, comigo, não dá mesmo. Chego esgotado do trabalho, preciso de alguma coisa pra distrair, desligar a cabeça. Uma revista, um artigo de jornal no máximo. Normalmente, ligo a TV e vejo uma série. Acompanho várias. Mas livro, isso de sentar numa cadeira e pegar um pra ler... eu até compro. Biografias. Um de auto-ajuda. Uma coleção de contos. De quem? Não sei, vou ver e te falo. Tinha época que eu gostava de livro policial. Literatura brasileira. Mas hoje, sinto que não tem necessidade, certo? Já tem Internet, celular, as pessoas tem outras formas de se informar. E se divertir. Gosto de sair com os amigos, beber, conversar. Sobre o quê? Várias coisas, potoca, mulher, futebol... são gente boa, simples. Também não leem, acho que não. E nenhum problema com isso, né? Quem lê muito fica meio... esquisito. Intelectual. A vida já é difícil sem trazer mais um monte de neura dos livros. Quem lê parece que fica bitolado, pensando muito em coisa sem consequência. Tipo solidão. Depressão. Quem lê muito fica meio depressivo, já notou? Mas eu não. Gosto da vida simples. Sem pensar muito. Importante é a vida. Trabalho, casa, série, namorada e cervejinha com os amigos no fim de semana, férias na praia no fim do ano. Quero mais? Quero sim, um carro, que pegar quatro ônibus por dia é dose. E saúde pra minha mãe. Fora isso... livro não vai me dar isso. Antigamente, era importante ler. Hoje, a gente não precisa. E, um dia, se me der na telha, tem um monte de livraria por aí, entro numa e compro um livro. Quando não tiver nada melhor pra fazer.


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Já ouvi falar de gente que vai a funerais pra entrosar. Não sou desses. Em especial, não faria isso no funeral de mamãe. Por isso, fiquei a maior parte do tempo sentado sozinho no sofá, de copo na mão, olhando todas aquelas pessoas uniformizadas como árbitros de futebol e circulando de um lado para o outro.
Pensava sobre os rituais da morte e a inutilidade de tudo aquilo.
Do nada, um homem interrompeu minha meditação. Era grande, gordo, meio velho e o único que vestia roupa de outra cor que não o preto: um blazer caramelo, puído, com calça jeans apertada. Tinha uma barba meio ruiva e olhos simpáticos. Sentou-se ao meu lado.
- Você é o filho da Rosângela, né? Mateus?
- Matias.
- Evaldo. Prazer. – ele disse, apertando minha mão. – Sinto muito, viu.
- Obrigado. O senhor é da família...?
- Não, não. Amigo.
- Ah.
Ele tirou uma carteira de cigarros do bolso e me ofereceu. Ninguém pensaria em fumar ali, mas não me importei. Ele acendeu um cigarro e aspirou uma longa baforada.
- Sua mãe era incrível. Coisa fina, sabe.
- Obrigado.
- Um rabão espetacular.
Tia Ju estava sentada logo atrás do sofá e virou a cabeça, enojada. Eu mesmo levei um choque, não sabia como responder. Evaldo percebeu e tirou o cigarro da boca.
- Desculpa, te ofendi?
- Hã... não... – murmurei, confuso.
- Peço desculpas. De verdade. Falei sem pensar. Explico: era assim que a gente se tratava. Eu e Rosângela. Sua mãe não tinha papas na língua. – disse Evaldo e sorriu, seu olhar perdido como se estivesse admirando algum lugar esquecido no tempo – Eu dizia, “que rabão gostoso, hein Rosa”, aí ela secava minha bunda e largava, “e tua bunda mole, Vado, é caída mas eu gosto”. – ele deu uma gargalhada. – Mas era só brincadeira, Matias.
- Sei.
Agora Tia Ju tinha se levantado e ido cochichar com Tia Lúcia. Eu podia sentir alguns olhos se voltando para nós enquanto ouvia incrédulo as histórias de Evaldo.
- Quando a gente foi com a turma pra Paris...
Engasguei:
- Paris?! O senhor deve ter se enganado, minha mãe nunca saiu do Brasil.
- Claro que saiu! – ele exclamou, acendendo outro cigarro e batendo em meu joelho como se fôssemos velhos conhecidos – Ela nunca te contou? Fomos em 87. Estávamos em cinco amigos. Ninguém tinha um puto, mas juntamos uma grana e pegamos uma promoção da Varig. Meu querido, que fuzarca! A gente tocou o terror! Chegou uma hora lá pelas cinco da matina, tava todo mundo trêbado num boteco no Quartier Latin e tua mãe vestida com um collant com estampa de leopardo, cantando “La vie en rose” aos berros! O bar todo acompanhando!
A risada de Evaldo ecoava pela sala, e agora TODOS os enlutados nos encaravam. Eu não sabia onde enfiar a cabeça.
- O senhor só pode estar enganado... deve ser outra pessoa. Mamãe era recatada, caseira, não bebia...
- SUA MÃE?! NÃO BEBIA?? Quá, quá, quá, quá!! – gargalhava Evaldo com gosto – Menino, ninguém bebia mais do que ela! Rosângela foi a mulher mais doida que já conheci! Da pá virada! Do balacobaco! Nunca vi ninguém pensar em tanta putaria! Se eu te contasse metade das histórias!
De repente, meu pai estava diante de nós. Terno negro, o rosto distorcido de fúria.
- Sai daqui, Evaldo. – murmurou, entre dentes.
- O menino tem o direito de saber, Emílio! Você escondeu isso dele o tempo todo?
O velho voltou-se para mim.
- Matias, teu pai escondeu tua mãe de você! Mas eu te digo: tua mãe era formidável! Da pá virada! Uma locomotiva! Traçava qualquer um que passasse pela frente! Fazia o que desse na telha!
- Chega! Saia da minha casa!
Papai o agarrou pelo braço junto com Tio Ronaldo e outros. Com dificuldade, foram arrastando Evaldo, que tentava se segurar nos móveis enquanto gritava para mim:
- Você não faz idéia, Matias! Tua mãe! Muitas vezes! Com todo mundo! Homens e mulheres! Rolava de tudo, Matias! De tudo! Quantos anos você tem, Matias? Eu faço as contas! Você tem o direito de saber! Tua mãe era livre, Matias! Livre!


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- Oi, é aqui o Sindicato de Capangas do Professor Insanus?

- Não, aqui é o 14º. Cartório de Imóveis da Cidadela do Caos. O sindicato fica na Rua do Desespero.

- No outro lado da cidade?! Putz, me deram o endereço errado.

- Você é capanga do Insanus, lá na Torre do Terror? Começou quando?

- Ontem.

- Eu fui capanga por 19 anos. Até que os recursos humanos fizeram um programa de demissão voluntária e me inscrevi. Mas não valeu a pena não, viu. Investi tudo numa loja de aparelhos de tortura, mas fali em dois anos. Não conhecia o ramo, né...

- Que pena. Porque deixou a capangagem?

- Ah, era perigoso, né? O que tinha de herói vagabundo invadindo a Torre do Terror, querendo matar o Professor. Nunca conseguiam, mas a cada invasão dessa eram uns 30 ou 40 capangas que morriam. E o seguro de vida não cobre morte por invasão de herói. Resultado, a família ficava no olho da rua. Resolvi que não valia a pena.

- Mas paga bem.

- Antes pagava melhor. A Torre do Terror era um colosso, os planos do Professor sempre funcionavam. Mas agora tem muita concorrência. O Edifício do Extermínio. A Morada da Morte. O Prédio do Pânico. Cada um com seu supervilão. Aí já viu, os lucros começaram a cair, tiveram que demitir um monte de capanga. Você assinou contrato terceirizado? Jornada de trabalho intermitente?

- Sim, me pagam por empreitada. Só me chamam quando o Andros Maxximus tenta invadir a Torre do Terror.

- Complicado, né. Só ganha por uma, duas horas de trabalho por dia.

- Quatro, no máximo. E esse Cyber-Gigantes que o Insanus inventou, estão pegando todos os postos de trabalho.

- No meu tempo não tinha robô no chão da fábrica, não. Era maldade como antigamente, trabalho de capanga na vera, sabe como é. Agora, usam Cyber-Gigante até pra limpeza.

- É por isso que eu queria ir no Sindicato. Disseram que tem um programa de treinamento de operador de Cyber-Gigante.

- O negócio é se especializar, mesmo. Qualificação. Qualquer problema, te contratam no Edifício do Extermínio.

- Não te dá vontade de voltar a ser capanga, não?

- Tá maluco? Consegui ser nomeado notário de cartório. Quer profissão mais maligna e melhor remunerada que essa? Tô bem, graças a Deus.

- Deus?

- Maneira de falar.


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O apartamento era minúsculo, mas ao menos tinha janela. Janela e um gato, uma mesa de centro com máscara africana falsa, um aquário com um peixe dourado e ele, sentado numa escrivaninha com a cabeça apoiada nas mãos. Os dedos se afundavam no cabelo. O peixe nadava tranquilamente na água turva. O gato havia desaparecido durante a noite.
À sua frente, o caderno sem pauta e a caneta alinhada em ângulo reto, como um soldado esperando o sinal para entrar em ação. Estava pronto. Mas nada havia. Uma idéia, um impulso. Sentia-se preenchido por terra seca, estéril. Pensou em ler o jornal, a ver se lhe ocorria algo, ou fazer algum exercício de criatividade, escrever um parágrafo simples sobre qualquer assunto. Mas sequer sentia vontade disso. Tinha medo de empunhar a caneta e vê-la dissolver em sua mão. Qualquer palavra que escrevesse sairia mais fajuta que a máscara de plástico sobre a mesa de centro. Nada havia, absolutamente, e o vácuo lhe doía mais que uma doença.
Distante da concentração necessária pra a escrita, qualquer fato externo o irritava. Pensou que deveria comprar um caderno pautado: a folha em branco o paralisava, oferecendo possibilidades em demasia. A barriga roncava, mas sabia que era incapaz de trabalhar depois de comer. Preocupava-se com o sumiço do gato, mas também sabia que o bicho o importunaria se estivesse ali.
Buscou fatos, memórias, sonhos que pudessem inspirá-lo, mas nada lhe parecia digno de ser descrito. Começou a se desesperar, enfiando cada vez mais os dedos nos cabelos.
Indiferente a tudo, o dourado flutuava em seu aquário sujo. Subitamente, levado por algum impulso desconhecido mas irresistível, empinou o nariz para cima e passou a bater as nadadeiras. Não interrompeu o esforço nem quando chegou à linha da superfície, que atravessou como se não existisse linha alguma, como se o ar fosse o mesmo elemento da água, apenas um pouco menos denso. Não pareceu estranhar a mudança. Continuou a nadar, agora passando a poucos centímetros das costas do escritor, ainda com a cabeça enterrada nas mãos. Em plena sala, a meio caminho entre o chão e o teto, o peixinho seguia silenciosamente, sempre em linha reta, como se o apartamento tivesse se tornado um imenso aquário.
Atraído pela luz, o dourado flutuou em direção à janela. Logo saía do apartamento, ouvindo à distância os sons do trânsito de carros e pessoas. Como seus horizontes haviam se ampliado muito além dos limites estreitos do aquário, não conseguia se decidir se nadaria na direção do topo dos prédios ou do asfalto lá embaixo. Ou se permaneceria onde estava, flutuando no espaço. A súbita liberdade não o animava, ao contrário, apresentava novos problemas que seu diminuto cérebro parecia incapaz de equacionar.


Uma garra o poupou desse dilema. Equilibrado no parapeito de uma janela vizinha, o gato acertou o dourado em pleno voo com uma pata, enfiando-o de uma só vez na boca. Enquanto rasgava o peixe com dentinhos afiados, o gato espiou dentro de seu apartamento. Seu humano continuava sentado na escrivaninha, mas havia mudado de postura e agora escrevia furiosamente no caderno que tinha diante de si.


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- Oi, Rui! Tá bem? Quer mé?
- Não Jô, obg.
- Quer pão? Cá tem.
- Não.
- Quer fuk?
Silêncio.
- Pra já não, Jô.
- Fuk bom. Eu e tu.
- Vou ali no WC. Aí se vê.
- Tá.
Mas não fui ao banheiro. Entrei no quarto e tranquei a porta. Peguei o caderno escondido no fundo do armário - um caderno antigo, de capa vermelha e folhas amareladas - e o lápis, do qual só restava o cotoco. Deitei na cama e escrevi no diário:
“Segunda semana depois da Festa do Boi. Ou terceira. Não é possível saber com certeza depois do Governo ter decretado o fim do calendário. Admito que isso não me afetou muito. Sempre confundia a terça com a quarta-feira, por exemplo, vivia furando compromissos. O pior, sem dúvida, foi a lei que obriga todos a falarem em monossílabos.”
Murros na porta.
- Rui? Fuk já?
- Já não! - respondi, irritado - Vai pg pão e mé?
- Tá. Tchau.
Passos em direção à porta da frente. Jô ainda bateu o joelho em algum móvel, gritando “ai!” antes de sair do apartamento.
“Pra falar a verdade, a decisão de proibir palavras com mais de uma sílaba não foi tomada da noite para o dia. As pessoas já estavam parando de usá-las. Diziam que era para facilitar a comunicação, mas o que vi foi o nosso empobrecimento gradual. Primeiro, as pessoas pararam de ler, até que os livros se tornaram supérfluos e sumiram. Depois, as páginas da Internet foram sendo resumidas a posts de duas ou três linhas, cheias de abreviações. Finalmente, desapareceram os sinônimos. Disseram que, quanto mais palavras existem para dizer a mesma coisa, mais difícil e ambígua fica a comunicação. E o povo já quase não ia à escola, à universidade, quase não se lia, não se debatia nada. Comunicar pra quê? Era necessário simplificar as coisas cada vez mais. O Governo incentivou esse processo. Argumentaram que era a vontade do povo, e a voz do povo é a voz de Deus. Daí que, quando chegou a lei dos monossílabos, pouca gente achou ruim. Como eu.”
Um estrondo na sala. Jô chegava do mercado, batendo a porta e jogando sacos na mesa.
- Rui! Vi Ari na rua! Ele quer te ver! Me deu LSD. Vai LSD e fuk?
- Já já, mô!
“É terrível me sentir assim. Deslocado. Gostaria de poder aceitar as coisas tranquilamente, como Jô, Ari e os outros. Achar graça, como eles, em coisas simples como a Festa do Boi, beber no final do expediente, dar tiro nas vacas que pastam no meio da rua. Mas eu preciso de mais. Ler o jornal no domingo de manhã, por exemplo. Agora os jornais se reduziram a memes: a notícia é a foto de alguma autoridade com uma frase engraçadinha de três ou quatro palavras (monossílabos, claro). Antes, o mundo não era perfeito. Mas acho que não era tão bobo quanto agora.”
“Tenho saudade das proparoxítonas. Parâmetro. Polígono. Sândalo. Também das paroxítonas. E de jornais, livros, revistas, de conversas que duravam mais de dois minutos. De cartas escritas à mão, de e-mails. Agora, temos apenas botões de ´sim´ e ´não´ nos celulares. E todos parecem felizes com isso. Como a Jô, que só fala em comer, beber, sair com os amigos pra Festa do Boi e ´fuk´. E rezar. Ela reza muito. Como ´Deus´ tem apenas uma sílaba, não há problema. Mas eu sempre pensei que Deus era dissílabo. Não entendo bem coisas que são uma só.”


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Todos os dias, Rosana almoça numa lanchonete na Praça do Sebo. Costuma se sentar numa mesa na calçada, de costas para a Praça e diante de uma parede de granito negro. Se alguém está ocupando a mesa, ela espera que a pessoa se retire. Se demorar muito, ela parte em busca de outro restaurante, frustrada pois tem que voltar ao trabalho e não pode ficar ali em pé a tarde toda.
Quando senta, ela pede um prato executivo ao garçom (arroz, feijão, salada e peito de frango grelhado) e uma coca. Quando trazem a refeição, ela come lentamente, desfrutando da visão do granito diante de si. Em determinada hora, o sol bate em cheio na pedra lisa, refletindo, com razoável nitidez, o que ocorre na Praça do Sebo. Após algum tempo, o sol avança e o reflexo desaparece.
Rosana tem quase quarenta anos. Para ela, essa é a idade em que alguém olha para a metade da vida que passou e se pergunta se vale a pena viver a outra metade. Em seu caso, ela tem certeza que não. Tudo o que já fez e experimentou lhe parece insignificante. As relações pessoais que cultivou lhe parecem descartáveis, até intercambiáveis, de modo que ela não crê que alguém se importaria se ela sumisse naquele instante. Qualquer que tenha sido o amor que algum dia queimou em seu peito já se apagou.
Ela se vê pensando frequentemente na morte. A única hora do dia em que consegue esquecê-la é quando almoça diante da parede de granito negro e observa cada um dos frequentadores da Praça do Sebo.
Ninguém sabe que ela vê o menino que corre pela areia do cercado das crianças, que tropeça e cai de cara no chão. Ou o casal de namorados deitado no banco, a cabeça de um no colo do outro. O mendigo que conta o dinheiro num pote vazio de margarina. A moça de terninho que passa apressada todos os dias àquela hora, que, por sua vez, não vê a outra moça sentada num banco que a observa languidamente.
É claro que ela poderia sentar do outro lado da mesa e enxergar a Praça com seus próprios olhos. Mas ela se sente mais confortável vendo o reflexo, ainda que este seja fosco e monocromático. Ela não sabe porque prefere assim. Talvez pense que, de alguma forma estranha, ela não mereça presenciar aquelas idas e vindas sem intermediários. Talvez a realidade alheia seja mais do que mais do que pode suportar. Como Perseu, que apenas podia ver a Medusa através do reflexo em seu escudo de prata. Rosana nunca ouviu falar de Perseu mas talvez seja assim que se sinta.
Durante meia hora, enquanto Rosana mastiga o frango insosso e o arroz cru, sua mente divaga construindo histórias para cada uma daquelas pessoas. Caso as encarasse de frente, provavelmente não teria coragem de invadir suas vidas perfeitas, suas existências repletas de sentido. Porém, vistas assim, incompletas na penumbra do granito, elas parecem criaturas em busca de uma alma, personagens em busca de uma história. Rosana está ali para fornecer isso a elas. Uma história e um nome para afastar as sombras.



Uma hora depois, ela paga e deixa a mesa. Volta ao trabalho, onde todos tem nome, menos ela.


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- Jorge, não estou vendo nada de especial neste bar. A cerveja é morna, o pastel veio cru…
- A vista é o mais importante, Catarina.
- O que tem de mais? Uma rua, um cruzamento normal. Não entendo porque todo mundo tá olhando pra fora.
- Espere e verá.
Logo, Catarina ouviu o motor de um carro que se aproximava rapidamente. Mas outro carro vinha pelo cruzamento. O choque parecia inevitável. Quando os motoristas se viram já era tarde, o guincho do freio ecoou pelo ar e os pneus deslizaram pela pista, amortecendo mas não impedindo a batida, um estrondo que pareceu se prolongar no tempo. 
Os clientes do bar riram e aplaudiram, como se estivessem num teatro.
- Meu Deus! Alguém chame uma ambulância!
- Calma, Catarina, o pessoal do bar vai chamar. Isso sempre acontece.
- Como assim, “isso sempre acontece”? E como essas pessoas podem aplaudir isso, que coisa grotesca.
- Esse é o atrativo do bar, amor. Tem alguma coisa errada com esse cruzamento que um carro não consegue ver se tem outro vindo. Tem acidente todo dia. Semana passada foi um caminhão que passou por cima de uma bicicleta, deixou ela destroçada. A sorte é que eu já estava aqui e vi.
Um dos motoristas, com sangue no rosto, tentava sair do carro pela janela quebrada. Fumaça escapava por debaixo do capô. Enquanto isso, os clientes conversavam animadamente sobre o episódio, filmando a batida com seus celulares. “Por um segundo achei que o branco fosse desviar, mas não deu outra, empinou pra esquerda e pimba!”, dizia um, imitando com as mãos o movimento dos carros e fazendo os amigos rirem.
- Catarina, aonde você vai?
- Embora, Jorge! Me recuso a participar dessa loucura!
- Mas não é culpa nossa, amor! A gente não faz nada, só fica aqui olhando. É diversão inofensiva! Quem tem culpa é o governo, que não conserta a rua. Amor! Amor, volta aqui!




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A única vez que vi beleza, eu tinha 12 anos. Foi quando meu irmão mais velho me levou para a zona e eu a vi lá, junto com outras putas. Naquela noite, senti-me como se eu fosse um rei exilado que havia retornado em segredo ao seu reino natal. E minha rainha estava diante de mim, no outro lado da rua. Cabelo preto joãozinho, batom muito vermelho emoldurando a boca, o pescoço delgado sobre a blusinha preta de vinil, colar de bijuteria. Ela virou o rosto e sorriu para mim. Não foi nada sexual, mais como um jogo, uma piada íntima e inexplicável, refletida em lábios sorridentes, inocentes, livres.
Prendi o fôlego, febril. Não sabia se sorria de volta, aproximava-me ou ia embora. Antes que eu reagisse, ouvi gritos à distância. De repente, a beleza desmontou na calçada, engolida por um aríete. Em meio ao movimento das rodas, vi sua pele misturada ao preto do cabelo e o vermelho da boca, mesclados num borrão, e seu sorriso no centro do borrão. O choque havia sido tão violento que seu sorriso ainda não havia se apagado. Ela girava presa na roda, gritavam meu irmão, as putas e os demais que haviam se espalhado na rua, ela ainda estava presa sob o carro quando este freou alguns metros à frente, os pneus guinchando horrivelmente.


O escarlate cintilava no asfalto sob a luz dos postes. Um rastro demoníaco se arrastava por meio quarteirão, denunciando o carro. Passado o susto imediato, todos passaram a se aproximar do monstro, ameaçadores, prometendo agarrar o motorista. Subitamente, um berro desesperado ecoou do carro, uma catarse depois do holocausto. O carro partiu em seguida, em meio a uma névoa acre de borracha queimada. Deixou para trás uma diminuta massa de carne, dobrada sobre si mesma, mastigada, de membros retorcidos sobre ângulos agudos, uma nova criatura que contemplávamos com horror. No meio da carne e do sangue, o sorriso de dentes quebrados e olhos revirados anunciando uma aurora doentia.


Tudo o que fiz a partir daí se liga a esse instante, em que conheci a beleza e ela foi arrancada do mundo. Naquela noite, em lágrimas, jurei que encontraria o assassino da moça. Foi um juramento quase infantil, feito por um menino aterrorizado, mas que perdurou ao longo dos anos. Tornei-me obcecado por tudo o que se relacionava ao episódio: visitei muitas vezes o local do crime, entrevistei as testemunhas, pesquisei nos arquivos do departamento de trânsito em busca de pistas que me levassem ao carro do assassino. Cresci sob a sombra do crime, a ponto de perceber que eu não conhecia outra vida que não a do perseguidor incansável do homem sem face, que havia destruído, juntamente com a moça, qualquer semblante de uma vida tranquila a que eu poderia almejar. 


Enquanto os jovens da minha idade cresciam, acatando seus impulsos e fazendo a roda girar, eu permanecia imóvel no centro do círculo, buscando apenas a consumação de minha ideia fixa para descansar.

As poucas pessoas que cruzavam meu caminho, longe de me fazerem esquecer minha obsessão, logo adquiriam as feições da moça de cabelos curtos, seu sorriso vermelho me desafiando a solucionar o mistério. Talvez, quando eu o fizesse, ela desapareceria de mim. Mas, se assim fosse, o que me restaria?


Certo dia, recebi uma dica anônima. O carro teria sido avistado numa parte afastada da cidade. Agradeci a Deus, pois apenas um ato divino poderia ter me colocado no caminho certo, e fui ao endereço indicado. Era um prédio pequeno, na esquina de uma rua escura. Pulei o portão da garagem e, com uma lanterna, examinei cada um dos carros estacionados. Meu coração dançava no peito, senti vertigem e o gosto de sangue na boca quando, diante de meus olhos, saltaram as letras e os números da placa que eu conhecia tão bem. Depois de todos aqueles anos, o assassino sequer tinha tido o cuidado de mudar a cor ou a placa do carro! Parecia novo, nas mesmas condições em que todos havíamos visto, como se tivesse saído da fábrica naquele mesmo dia.


O som de passos interrompeu minha investigação. Alguém dentro do prédio se aproximava da garagem. Não havia tempo para pular o muro e voltar à rua. Por instinto, tentei o trinco do carro, que cedeu. Ainda desnorteado, entrei no carro, fechando a porta com cuidado. Encolhido no banco do motorista, pressenti um vulto entrar na garagem. Prendi a respiração. Os passos se dirigiram ao carro, sem hesitação. Não havia saída. O pavor tomou conta de mim, mas também certo alívio por finalmente conhecer meu algoz. Por um instante, também senti curiosidade ao ver a chave do carro pendurada na ignição.


O vulto estava sobre mim. Era necessário agir, e o fiz girando a chave no contato. Imediatamente, o motor ecoou com um rugido, as portas do carro se trancaram. Os faróis iluminaram a garagem, cegando-me temporariamente. O vulto agora esmurrava a janela, tentando abrir o trinco da porta do motorista, gritando ameaças que eu não conseguia ouvir. Gritei de volta, chamei-o de assassino, eu o entregaria à polícia ou o mataria com minhas próprias mãos. Mais uma vez, o instinto (ou Deus?) impeliu-me a agir. Destravei o freio de mão e engatei a primeira.


O portão devia ter sido mal instalado, pois desabou na primeira tentativa. Quando vi que estava livre, castiguei o acelerador, disparando para fora da garagem, ganhando a rua. No retrovisor, vi o assassino correndo atrás de mim, ficando para trás quando cruzei a esquina. Ardendo em febre, eu repetia que tinha que levar o carro à polícia, eles prenderiam o assassino da moça, a busca de tantos anos havia terminado, eu sorria enquanto conduzia o carro derrapando nas curvas, sentia-me de volta aos meus doze anos, livre da culpa que carregava no peito.


Numa curva mais fechada, acabei entrando aberto demais e subi a calçada. De relance, vi rostos de mulheres assustadas. Um solavanco fortíssimo me fez bater a cabeça no teto. Castiguei o freio, as rodas engataram, derrapando pelo asfalto. Finalmente, o carro se deteve. Olhei pelo retrovisor, sem fôlego. Pessoas vermelhas, iluminadas pela luz do freio, agitavam os punhos, gritando e apontando para debaixo do carro. No chão, um rastro cintilante de sangue. Custei a compreender onde estava. Só entendi quando virei o rosto e vi, no outro lado da rua, um rapaz de olhos arregalados, tentando fazer sentido do massacre que presenciava. E a mim, desolado, só me restava esgotar o ar de meus pulmões num grito alucinado, enquanto apertava o pedal do acelerador, levando-me para longe dali.



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Um dia, meu colega Ricardo me convidou pra almoçar na casa dele. Quase não acreditei quando entramos no apartamento, era o maior que eu já tinha visto na vida, com mármore no chão e uma mesa que parecia não ter fim. Os pais dele eram simpáticos e me abraçaram, me incentivavam a comer comidas maravilhosas, carne com molho branco, arroz com brócolis e pudim de leite de sobremesa, me perguntavam como eu vivia e tive vergonha de falar da cama que eu dividia com meus três irmãos e dos ratos que encontrava no quarto, do feijão com arroz sem sal que minha mãe fazia (tudo no almoço dos pais do Ricardo tinha tanto sal, açúcar e tempero que a comida parecia descer pelo estômago dando beijinhos). O pai do Ricardo perguntou do meu pai, menti que ele trabalhava no comércio mas, na verdade, eu e meus irmãos vivíamos mesmo só com minha mãe, que trabalhava de empregada doméstica. Depois de comer, Ricardo me chamou pra jogar videogame e eu fiquei maravilhado com ele, mal conseguia apertar os botões, me sentia quase doente, era uma enxurrada de emoções pra mim estar ali, com tudo brilhando e cheiroso e gostoso e o guerreiro do videogame parecendo me dizer, você está em casa, em casa.
Ricardo me convidou pra almoçar mais algumas vezes. Eu ia feliz, conversava alegre com os pais dele, com a empregada Maria, comia a rodo e depois ia jogar videogame e ler as revistas da Mônica que ele tinha. Mentia cada vez mais: dizia que meu pai era dono de não sei quantas lojas, que mamãe era advogada, que meu sonho era ser médico, e a cada vez que eu dizia essas palavras, elas pareciam mais naturais pra mim, afinal, eu não sabia quem era meu pai, ele bem podia ser dono de loja. E eu nunca tinha pensado em ser médico, mas na hora que falei aquilo me soou bonito, o pai do Ricardo era médico, um dia vi o jaleco dele pendurado na porta, me imaginei com aquele jaleco branco, todo elegante e curando as pessoas.
Quando eu entrava nessas viagens, não percebia os olhares que os pais de Ricardo trocavam entre si, nem o aborrecimento do meu colega, que aos poucos falava comigo com menos interesse, parecia até chateado com alguma coisa. Um dia, Ricardo parou de falar comigo. Quando eu me aproximava no recreio, ele se afastava. Os convites pra almoçar acabaram. Eu voltava da escola de ônibus, vendo pela janela o carro preto dos pais do Ricardo pegando ele na saída, e eu pensava que em poucos minutos ele estaria sentado naquela mesa gigante com os pais, com tudo gostoso e cheiroso e brilhante, jogando videogame de corrida, correndo a toda velocidade enquanto meu ônibus voltava devagar no engarrafamento.
Algum tempo depois, fui falar com ele. Disse que sentia falta de conversar com ele, que ele era meu melhor amigo e que tinha saudade dos pais dele. Que, se fosse possível, eu ia amar almoçar com eles uma vez mais, nem que fosse a última vez. Ele ficou pensativo, foi pra um canto, ligou pra mãe. Depois me disse, tá bom, hoje você almoça em casa. Eu sorri, triste, bem triste e alegre ao mesmo tempo, entrei no carro preto e chegamos naquele apartamento maravilhoso, abracei todos, a mãe do Ricardo chorou, a Maria também. Fui na cozinha. A feijoada estava terminando de cozinhar, o melhor cheiro do mundo. Quando a Maria não estava olhando, tirei um vidrinho com pó branco da mochila, taquei o pó no caldo do feijão e mexi.

Comi pouco, mas o Ricardo, os pais dele e a Maria estavam com fome. Agora estão todos dormindo, enquanto isso já li todas as revistinhas da Mônica e estou jogando videogame vestido com o jaleco do pai do Ricardo, vou jogar até de noite, estou ficando muito bom no jogo, o guerreiro me diz isso em inglês, sempre repetindo, temos que atravessar a floresta e chegar em casa, em casa.

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- Manhê. Rolou um negócio lá na escola hoje.
- Quê foi, meu amor?! Alguém brigou com você? Fala logo!
- Lembra daquele exame de DNA que a escola fez? Pra descobrir a origem genaeológica?
- "Genealógica", filho. Lembro sim. Saiu o resultado? Que legal! Deixa a mamãe ver.
Caroline retirou o papel do envelope e o examinou por alguns minutos. À medida que lia, o sorriso que carregava perenamente no rosto se desvaneceu até ser substituído por uma careta de nojo. Disse, finalmente:
- Isso aqui tá errado, filho.
- O teste não falha, mãe.
- Tá aqui, "28% africano". Que absurdo. Não tem uma gota de sangue africano na família, imagina. Er... não que tenha algum problema com isso. Adoro samba, tenho vários amigos negros.
- A gente não é desçandante de português, mamãe?
- "Descendente". Sim, já te falei mil vezes, os Albuquerque descendem dos primeiros navegadores que chegaram no Brasil. Os africanos vieram depois.
Caroline ficou me olhando com olhos náuticos, como se tivesse encerrado a questão.
- Então, mãe. A professora disse que, quando chegaram no Brasil, os portugueses já eram misturados com os árabes.
- Árabes? - ela quase deixou cair o envelope.
- E judeus.
- QUÊ?! Que absurdo, filho, você descende de português, branco! De navegador! Não, filho, esse exame tá errado. Olha a minha pele. Olha a sua! Sua professora está errada!
- Tá escrito, "14% árabe".
- Vou falar com a diretora! Humilhar meu filho dessa maneira! Você descende de português, branco! Português é europeu! Tipo sueco! Você acha o quê, que alguém da família se engraçou com um negro? A gente saberia! A gente sabe de tudo! Esse exame não vale nada, filho. O que importa é o que a gente da família sabe. Albuquerque é nome de navegador branco português, daquele de quadro histórico, com barbão.
- Mas eles também não se misturaram com os escravos e os índios?
- Chega, filho, vamos almoçar.
- Será que a gente continuou branco por 500 anos...
- Eu disse CHEGA!

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Caramba, a Helena. Faz 11 anos que não a via. Última pessoa que esperava encontrar aqui. Vou fingir que não a vi. Cumprimentar os amigos. Olhar de fininho... ainda bonita, hein. Conservada. Será que casou? Ok, já tá ficando chato, vou lá falar. Você por aqui! Beijinho, foi simpática! Me perdoou, então. Que ótimo. Emprego novo, perdeu peso, hein. Muito peso. Está linda. Casou? Solteira, é? Acabou o namoro recentemente. Opa. Papo vem, papo vai. Nada profundo, mas com aquele toque de cumplicidade que só ex-namorados possuem. Vamos beber algo? Saímos da festa, vamos ao bar. Onze anos, hein. Gostei muito de ficar com você. Reprise? Repeteco? Não custa nada. Meu apartamento. Meio bagunçado, desculpe. Vida de solteiro. Como? Já vai?! Não, fica... tá bom, tchau. Arregou. Ficou com medo de se apaixonar de novo. É normal, as mulheres vivem fazendo isso comigo.
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Caralho, o Marcos. Onze anos que não o via. Última pessoa que queria encontrar aqui. Tá fingindo que não me vê, o babaca. Deixa quieto, fico na minha. Cumprimento os amigos... putz, lá vem ele. Não, Laura, fica! Pronto. Beijinho, fazer o quê. Aquela conversinha que eu lembro bem. Superficial. Agora fala do meu peso. Sempre me falou pra perder peso, que tava muito gordinha, etc. Me sentia péssima. Babaca. Sim, tô empregada (não, Marcos, passei os últimos onze anos chorando na cama, esperando que você voltasse pra mim). Sim, tô solteira. Sim, acabei o namoro recentemente. Seria engraçado se a gente ficasse, né? Ver se você ainda chora depois de transar. Vamos prum bar, claaaro. "Reprise"? Eu devo ter bebido muito. Vamos pro seu apê sim, babaca. Quero ver tua cara na tua casa pra te dizer que você foi um merda. Mas o apê... tudo virado. Pizza espalhada pelo chão, roupa suja... que deprê. Sabe o quê, Marcos, tô indo. Onda errada, essa. Tchau. Saio, peço um uber. Ligo pra Laura, ver se ela já está em casa, conversar sobre o que foi e o que será.

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Todos os corações num só, mas sem bater no mesmo ritmo. Uns serenos, outros descompassados, todos espremidos, gente contra gente, carne contra carne. Uma sinfonia de cheiros e vozes, massa disforme e palpitante de braços se enfiando debaixo de outros braços para alcançar a barra, pernas se enfiando entre virilhas buscando apoio no chão. Roçar de roupas, murmúrios de resignação. Sentia-me num quadro de Bacon, inclusive cheirando a bacon.
O ônibus continuava a encher. Esse motorista não tem noção?, gritou uma senhora esmagada contra a porta traseira, tá cheio, outros ecoaram, tá cheio. O Cérbero do volante não ouviu o grito, distraído pelo som das moedas que caíam na gaveta a cada parada, exigência dos patrões, e nisso mais gente, mais carne, mais súplica.
De fora, o veículo deveria parecer grávido enquanto percorria a avenida, paquidérmico. Dentro, nossa visão embaçava. Senti um menino carregado sobre nossas cabeças, prensado contra o teto. Membros vazando pelas janelas, gemidos, sacolas. Mas ainda não era o fim das lamentações.
Numa curva, Cérbero entrou aberto demais, tirando fino da beira de um barranco. Os que conseguiram enxergar o perigo berraram, os cegos entoaram. Ocorreu alguma acomodação peristáltica no interior do ônibus, de repente sentimos a vertigem da falta de gravidade. O ônibus pendia sobre duas rodas. Capotou na ribanceira.
Ouvi depois os legistas falando. A explosão esquentou primeiro a carroceria do ônibus, queimou pouco dentro. Não teve tempo pra abrir a janela de emergência, pra nada. O veículo se transformou numa fornalha, mas sem fogo direto, simplesmente assando-nos como uma picanha estalando sobre a grelha. Tecido contra tecido; carne contra carne. Derretendo-nos. Plasmando-nos. Agora os legistas não sabiam o que fazer conosco, uma maçaroca laranja e preta no meio da sala de autópsias, dedos que brotavam de barrigas e pernas brotando de cabeças, bocas descarnadas ainda reclamando do aperto.

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Vivemos um momento importante de inflexão. Esta é a era de duvidar das coisas, de revisá-las e revogá-las. É necessário duvidar de tudo, até do que consideramos mais óbvio. O uso dos objetos, por exemplo. Um garfo não traz manual de instruções, seu uso dito “correto” é mais ou menos consagrado: com ele, espetamos pedaços de comida e os trazemos à boca. Mas, como disse, é necessário duvidar de tudo.
Não é que o garfo tenha desaparecido. Ele ainda está aí, apenas convertido a novas leituras menos ideológicas. Vi um homem que usou um garfo para pentear o cabelo. Subitamente, milhões de pentes surgiram em nossas cozinhas sem que precisássemos mexer um dedo. Damos a isso o nome de “inovação”. Pensar fora da caixa, entende?
Cito outros exemplos criativos. Uma lâmpada pode ser usada como prato, contanto que se quebre um pequeno pedaço do vidro e não se deposite nela grandes quantidades de comida. E há de se tomar cuidado com os cacos. Grande sucesso em festas. Outro dia, vi uma mulher montada sobre um grande vaso de jardim, e um homem que a empurrava pela rua. Diga adeus ao automóvel. O ruído do vaso contra o asfalto era insuportável, mas não é isso que deterá o progresso. E o que dizer do uso do telefone celular como martelo para amaciar carne? Enquanto isso, um professor teve a brilhante idéia de usar livros como sinalizadores de trânsito. Os exemplos são abundantes e inovadores. Tirando as coisas do lugar, vamos recolocá-las em seu devido lugar.
É necessário duvidar de tudo, até das leis da natureza. E, principalmente, de nossa humanidade. Sempre pensamos, arrogantes, que somos gente, mas podemos muito bem sermos porcos. Quem garante? Tudo deve ser revisto, algumas medidas devem ser revogadas. Nada está escrito em pedra.

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Por que uns com tanto e outros com tão pouco? Valério tinha plena consciência dessa frase quando pensava no diretor do escritório onde trabalhava, o Dr. Coelho. O chefe tinha direito a carro particular com motorista, elevador particular, até banheiro particular em seu gabinete com - diziam as faxineiras - papel higiênico com perfume de camomila. Já Valério, que levava o dobro do tempo do Dr. Coelho trabalhando ali, era forçado a dividir um banheiro minúsculo com vinte outros colegas, o que causava longas filas à tarde e perfumes hediondos no resto do escritório. Todos os dias, ele se espremia de manhã cedo no elevador com outros funcionários de outras firmas, às vezes ficando preso e esmagado no elevador durante a manhã inteira quando o troço enguiçava. Mas o Dr. Coelho subia sozinho em seu elevador privado com cheiro de camomila e couro sintético, que tinha um guarda no térreo para garantir que ninguém pisasse naquela máquina maravilhosa e particular.
Um dia, quando estava perto de se aposentar, Valério resolveu ir à forra. Era uma forra pequenina, inconsequente. Ele esperaria a hora do almoço, quando o Dr. Coelho e a maioria dos funcionários saíam, invadiria o banheiro do chefe e usaria sua louça mágica e particular, cheirando a chá de hibisco. E não daria descarga. Valério ria só de pensar no efeito que essa visão causaria no Dr. Coelho, ao se deparar com sua intimidade conspurcada pelos funcionários que não se contentavam em dividir seus próprios banheiros e elevadores fétidos. Ria baixinho, imaginando ver o antipático chefe sentar em sua cadeira de couro legítimo e chorar lágrimas mornas.
No início, tudo correu como planejara. Ao meio-dia, viu o Dr. Coelho atravessar rapidamente o corredor e entrar em seu elevador. Aos poucos, os colegas deixaram o escritório. Quando pensou que a barra estava livre, caminhou pé ante pé até o gabinete e entrou.
Passou logo ao banheiro, trancando a porta. Valério admirou a sala espaçosa, revestida de azulejos floridos e com cheiro de limpeza, sem as infiltrações e o odor de mofo do banheiro dos funcionários. Havia até uma banheira com chuveiro, onde o Dr. Coelho podia tomar um banho no meio do expediente e tirar de si aquele fedor de trabalho. Valério se aproximou do dispensador de papel, retirou uma folha e cheirou. Camomila, de fato.
Sem perder mais tempo, abaixou as calças e sentou na almofada geladinha do sanitário. Mal fez o que tinha ido fazer ali, porém, e ouviu uma batida na porta do gabinete.
- Dr. Coelho? - disse alguém.
Seu coração parou. Olhou de um lado para o outro em busca de uma solução. Permanecia quieto? Tentaria imitar a voz do chefe, enxotando o funcionário? No entanto, o tal já havia entrado no gabinete e agora batia rudemente na porta do banheiro privado.
- Mil desculpas, chefe, mas é urgente. São Paulo na linha.
De calças arriadas, Valério se sentia totalmente indefeso. Esperou, com a respiração presa, que o colega partisse.
- A Polícia Federal está vindo aí, Dr. Coelho. - a voz agora era mais grave e enfática - São Paulo disse que a gente tem que começar a destruir tudo. O senhor precisa abrir o cofre.
- O chefe tá no banheiro? - ouviu-se outra voz no gabinete, feminina desta vez.
- Sim. - respondeu o primeiro. - O negócio deve estar sério, porque ele não responde.
- Dr. Coelho - agora era a mulher que falava, batendo os dedos com força contra a porta do banheiro -, pelo amor de Deus, o senhor precisa sair daí, daqui a pouco eles chegam e a gente tem que tirar as pastas do cofre.
A mulher continuava a bater. Não demorou e chegaram outras vozes. Falavam baixo, provavelmente porque a maioria dos funcionários, como Valério, não tinham idéia dos papéis que havia no cofre da diretoria e a razão pela qual era importante que a polícia não os encontrasse.
- Dr. Coelho! Dr. Coelho!!
- Será que ele teve um ataque do coração? Melhor arrombar essa porta.
- Gente, mas eu vi o Dr. Coelho saindo pra almoçar.
- Ele deve ter voltado, senão o banheiro não tava ocupado, né?
Valério continuava catatônico, sentado na privada. Sentiu que esse era um daqueles momentos de definição suprema, no qual a decisão tomada determinaria o futuro rumo de sua vida.
Em meio à escuridão turva da água do sanitário, um escorpião emergiu do cano de descarga. O aracnídeo rastejou indeciso sobre a louça branca, estranhando o lugar onde havia saído e as batidas que ouvia de longe, muito longe. De repente, pareceu tomar ímpeto próprio. Escalou a parede lisa do sanitário e, em dois tempos, alcançou o traseiro de Valério e o penetrou.
Distraído com a multidão do lado de fora do banheiro, o pobre funcionário não se deu conta do que havia acontecido até que fosse tarde demais. Saltou do sanitário, aterrorizado. Sentia um terrível desconforto, como se houvesse algo mexendo dentro de si, rastejando, espremendo-se como um homem que tentava respirar num elevador lotado. Valério tentou gritar, mas o parasita dentro de si parecia sugar sua voz, mesmo sua força de vontade, e ele apenas deitou no chão de azulejos floridos, convulsionando.
Subitamente, as batidas na porta cessaram. Uma sinfonia de botas em marcha, passos se dispersando, correria e gritos tomou conta do escritório, que nunca tinha visto tanta inquietação na hora do almoço. Os assessores deixaram de se preocupar com o cofre, tentando alcançar a escada do prédio. Mas já era tarde.
Meses depois, a tranquilidade havia retornado ao escritório. Alguns funcionários haviam sumido de suas baias, e a empresa se encarregava em contratar novos. Havia muito por fazer, papéis a apresentar à Justiça, explicações a serem dadas aos investidores. Era importante resolver as questões pendentes e tentar recuperar o bom nome da empresa. E agora eles contavam com o homem certo para colocar as coisas em seus eixos.
Ouviu-se o som da descarga no banheiro do gabinete e de lá saiu Dr. Valério. Ainda cheirando a camomila, ele atravessou o corredor do escritório, ignorando os débeis desejos de “bom almoço, doutor” que lhe dedicavam alguns funcionários, e entrou em seu elevador privado. Com o trajeto desimpedido, chegou rapidamente ao térreo, onde foi saudado por seu motorista particular. Os meros mortais no saguão, que faziam fila diante do único elevador funcionando, observaram-no curiosos, enquanto o motorista o levou até o carrão estacionado na porta do prédio.
Com os olhos perdidos no céu, Dr. Valério disse a si mesmo, estou morrendo de fome, o que era natural pois tinha que comer por dois. Era necessário alimentar bem seu escorpião, tal como Coelho havia feito com o dele.

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Estava prestes a dormir. Sonolento, observou as belas costas da amante deitada ao lado, iluminadas por uma réstia de luz que vinha da janela. Acariciou a nuca com os olhos, os cabelos curtos e macios que nasciam ali. Percebeu uma marca desconhecida no início do pescoço dela, logo acima da última vértebra. Um diminuto triângulo isósceles com o vértice voltado para baixo, mais escuro que a pele circundante.
- Isso é de nascença, perguntou enquanto pousava o dedo sobre a marca. Moribunda de sono, ela tocou a região às cegas, não sei, respondeu, não deve ser nada. Ele pensou que talvez não passasse mesmo de uma impressão. Fechou os olhos e dormiu.
No dia seguinte, lembrou-se da marca. Era tão pequena que podia ter sido, sim, um truque da luz ou do sono, um reflexo da maneira em que a noite engana nossos olhos. Investigou em silêncio enquanto a amante fazia café e encontrou a marca, quase imperceptível. Sorriu. Doze anos juntos e nunca havia percebido aquela pequena letra perdida no livro. Curioso, levantou-se da cadeira, foi ao banheiro e, colocando-se entre dois espelhos, examinou o próprio pescoço, mas não encontrou nada parecido em sua própria nuca.
No ônibus, examinou o pescoço do homem sentado no banco da frente. Era difícil, o sacolejo impedia que fixasse o olhar no ponto específico. Após certo tempo, porém, pensou ter distinguido a marca no estranho.
Não conseguiu se concentrar em outra coisa pelo resto do dia. No trabalho, era surpreendido olhando a nuca dos colegas. Almoçou com os olhos pregados no pescoço da garçonete e das pessoas comendo no balcão da lanchonete. Uma multitude de triângulos isósceles de pele se repetiam diante de seus olhos. Mais de uma vez, foi ao banheiro com um espelho portátil e reexaminou sua nuca minuciosamente, puxando e repuxando a pele, olhando-a sob diferentes ângulos. Nada encontrou além de um chumaço de pêlos.
Sou o único, pensou, poupado dessa marca estranha. E se ela fosse o sinal de uma graça divina, que a ele permaneceria negada? Talvez o espírito dele tivesse se enganado de fila no Paraíso, antes de encarnar em seu corpo; talvez se se tratasse de um carimbo, como um visto num passaporte, cuja ausência impediria sua passagem à etapa que viria depois da vida. Por um momento, pensou na Criação como um grande labirinto burocrático, com despachantes e notários. E se, ao contrário, a marca representasse uma maldição, como a marca de Caim, que lembrava das aulas da catequese? Nesse caso, seria ele o salvador da humanidade, por não trazer o estigma na pele? O que era importante aqui, a ausência ou a presença da marca?
Voltou para casa muito mais perturbado do que quando saiu. À noite, deitado na cama, perscrutou a nuca da amante com olhos vidrados. Não conseguiu encontrar a marca novamente. Talvez já estivesse dentro de si.

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Conferência de imprensa no Palácio Presidencial de Abúndia.
- Vamos abrir pras perguntas.
- General, como vai a saúde do nosso magnífico presidente?
- Bem, obrigado. Uma estrelinha pra você.
- General, como Abúndia conseguiu tanto progresso econômico tão rapidamente?
- Excelente pergunta. Com muita dedicação e competência de nosso presidente e do povo abundense. Juntos chegaremos lá. Duas estrelinhas pra você.
- General, o senhor pode esclarecer a prisão de um homem ontem na Praça da Glória?
Silêncio. O sorriso do porta-voz desaparece. Ele murmura para um assessor próximo, “quem é esse cara? É novo?”
- Não estou informado do caso, responde secamente.
Imediatamente, o jornalista exibe um vídeo em seu celular. Nele, um jovem segurando uma cartolina é levado em silêncio pela polícia. O assessor fala algo no ouvido do porta-voz.
- Aparentemente, esse meliante estava espalhando mentiras para desestabilizar o país, diz o general entre dentes.
- O cartaz estava em branco, general. O rapaz não estava falando nada. Tenho outros vídeos.
Silêncio.
- Abúndia garante a liberdade de expressão a todos os cidadãos, responde mecanicamente o general. Próxima pergunta.
- Por quê o homem foi preso por segurar um cartaz em branco, general?
- É ne-necessário pro-proteger o país das mentiras de nossos inimi-inimigos internos. - responde o porta-voz. Ouve-se um estalar elétrico e o cheiro acre de fiação queimada invade a sala.
- Mas o homem não estava dizendo nada.
Fumaça começa a sair da nuca do general. Sua cabeça faz movimentos repetidos para os lados com violência, e faíscas saem de seu nariz.
- Ze-zero estre-estrelinha pra-pra você-você…
Enquanto guardas levam o jornalista enxerido embora, os assessores escoltam para fora do palco o general, que agora gira a cabeça várias vezes em volta do pescoço, emitindo ruídos desconexos. Um capitão sobe no palanque.
- Cuidado com o que vão escrever. Abúndia garante total liberdade de expressão, mas não vamos tolerar mentiras.



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- ... nesse sentido, o relator deste Comitê de Contato Intergalático considera que o planeta Klingon-17 reúne as qualidades necessárias para ser visitado e auxiliado por nós, seres superiores.
- Aprovado o parecer do relator. - sentenciou a bola de luz, sendo aplaudido pelas outras bolas de luz - Qual o próximo da lista?
- Deixa ver... Sol-3.
- Putz. De novo esse.
- Já faz 3 milhões de revoluções do planeta em torno de sua estrela desde a última avaliação do Comitê, Presidente. Muita coisa mudou.
- Eu sei. Li o relatório. Mas, sinceramente, eu preferia Sol-3 na época daqueles lagartos gigantes.
Risos.
- Eram mais simpáticos que os macacos pelados de agora, sem dúvida.
- Esse povo é cruel, cheio de recalque. - comentou outra bola - Vivem exterminando uns aos outros e inventando as justificativas mais tresloucadas pra isso. Por exemplo: a esmagadora maioria acredita piamente que um único ser superior, macho, criou o Universo.
Uma onda de risos ecoou pela galáxia.
- É uma espécie peculiar, sem dúvida... - tentou o relator.
- Vivem projetando suas frustrações e seus complexos. Consideram-se o melhor e o pior que o Universo já produziu. Dividem uns aos outros em classes por critérios aleatórios, destroem seus recursos naturais para produzir objetos de entretenimento fútil... 
- Chegam a torturar seu semelhante por meios físicos e psicológicos como forma de contrabalançar sua insegurança.
- Se acham uma espécie superior. Meu Deus, outro dia eles comemoraram a chegada deles ao satélite mais próximo do planeta. Meu filho fez isso com dois anos de idade!
- Acho até que é caso pro Comitê de Aniquilação Planetária.
- Colegas, silêncio! - bradou o presidente. Os demais se calaram. - Não vamos perder tempo, a fila é longa. Qual o parecer do relator?
A bola de luz pigarreou, esperando que o silêncio voltasse ao salão.
- Senhor Presidente, membros do Comitê... tudo o que falaram é verdade. A raça que atualmente domina Sol-3 é, por um lado, recalcada, mesquinha e cruel. Mas eu estudei a trajetória desses seres por eons, acompanhei seus esforços. Assim como alguns torturam seus semelhantes, outros são capazes de profunda compaixão. Trata-se de seres mais confusos que cruéis: não sabem o que fazem, parecem tatear no escuro, agarrando-se às pequenas certezas que surgem no caminho, tudo como meio para não cair no abismo. São seres inferiores e arrogantes, mas nem por isso indignos de piedade.
- Qual é seu parecer? - repetiu o presidente, já impaciente.
- Meu parecer é pela visita e auxílio. Acho que eles se beneficiariam muito com nosso contato. E, de certa forma, nós também.
- Hm. Acho que o debate aqui deixou claro, relator. A maioria é contra a visita. Creio que os macacos pelados não estão prontos para nos encontrar.
- Vamos exterminá-los! - gritou um, mais exaltado.
- Tampouco creio que seja o caso. Como disse o colega, alguns deles são dignos de piedade. O melhor é continuar monitorando. Ver se eles conseguem sair desse lamaçal em que se meteram.
- Decidido, presidente.
- Daqui a 3 milhões de revoluções a gente reavalia. Qual o próximo da lista?


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- Malu.
- Oi.
- Vem cá.
Vanja se aproximou do rapaz sentado na última mesa. Apesar de desconhecer seu nome, sentia que eram quase amigos. Ele aparecia quase todo dia entre o almoço e o lanche da tarde, hora em que a lanchonete estava vazia e eles podiam conversar sem atrair a raiva do patrão.
No começo, ela o havia tratado de forma arredia, pois já tinha sofrido muito aborrecimento com cliente metido a besta. Aos poucos, porém, foi tolerando o rapaz de voz doce e conversa abilolada (um dia, do nada, ele perguntou sua opinião sobre os beija-flores). Ele insistia em chamá-la de “Malu”, mas Vanja não se irritava com isso, achava até engraçado. Aparentemente, chamar o outro pelo nome errado fazia parte do acordo tácito que existe entre desconhecidos amigáveis.
O rapaz segurava uma colherinha de café diante de si. Vanja observou seu rosto alongado, com as maçãs do rosto salientes, as sobrancelhas grossas e a boca sempre contraída, como se estivesse prestes a revelar algo bombástico. Ela até poderia dar bola pra ele, pensou, se as coisas que falava não fossem tão estranhas.
- Diga, meu filho. - disse Vanja, jogando no ombro o pano de limpeza.
- Veja que perfeição.
Ele exibiu a colherinha, girando-a lentamente no ar como se fosse um diamante. Ela sorriu, jocosa.
- Linda, sim.
- Vista assim - e ele exibiu a colher na vertical, com a parte côncava para frente -, ela parece uma pessoa. A cabeça sustentada pelo pescoço, que engorda até se tornar um corpo. Alguém imponente, Malu, que nos julga do fundo de sua concavidade. Um monolito de autoridade. Mas, se eu mudo a posição - e colocou o talher na horizontal, de perfil -, ela vira uma curva gentil no espaço, traçada por um lápis de prata, terminando numa bacia suave, quase reta de tão sutil.
Vanja acompanhava a explicação sem tirar os olhos da colher, quase hipnotizada. Os dedos do rapaz se mexeram mais uma vez, pousando a colherinha sobre a mesa, desta vez com a face convexa para cima, refletindo seu rosto, as mesas e a calçada lá fora, como uma miniatura esférica da realidade.
- Agora, ela é uma guardiã - disse o rapaz, imitando um mágico de feira -, alguém que nos vigia, que nos protege do caos… - ele girou a colher sobre a mesa, tal qual uma hélice, e o reflexo agora ia e vinha, transformado num minúsculo borrão de luz que envolvia o olhar de Vanja, capturando-o com o metal rodopiante, enquanto ela esperava que ele se transmutasse em outro elemento, ou evaporasse, num golpe de alquimia…
- A colherinha de café é a formiga do mundo das máquinas: seu desenho é simples, mas carrega consigo um pedaço do DNA humano.
- Cliente!
A voz do patrão a tirou do transe. Ela se virou e percebeu que uma moça esperava atendimento. Constrangida, Vanja se afastou do rapaz e foi anotar o pedido. A visão da colher mutante a perseguiu durante o resto do dia.
Horas depois, as mesas estavam cheias com os que vinham atrás do lanche da tarde. Vanja ia de mesa em mesa sem tempo para respirar. Quase não percebeu quando o rapaz se levantou em silêncio e caminhou em direção à porta.
- Oi.
Ele se virou.
- O nome é Vanja, tá? - ela disse, sorrindo.


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- Qual era o principal bem de exportação da Era Vargas?
- Sei lá.
- Pô, Paula.
Paula olhou Paulino com olhos de cigana. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca.
- A gente não pode continuar se você não presta atenção.
- Mas eu tô prestando atenção. - ela respondeu, olhando com candura para o rosto irritado de Paulino.
- Na matéria!
- Não tenho culpa se você é tão charmoso.
- Se tua mãe entra agora, te dá uma bronca. Você mesma disse: se tirar menos de oito na prova de quarta, vai ficar de recuperação.
Paula se sentou na cama e soltou um suspiro.
- Não adianta. Não sei nada de História. - sorriu - Você não quer inaugurar a Era Paulino no meu coração, não?
- Teus pais me pediram pra te ajudar com o estudo, Paula!
- Você já tá ajudando tanto...
- Principal bem de exportação da Era Vargas! Vai!
- Beijo!
- Café!
- Quase.
Paulino jogou o livro em cima da cama.
- Você tá impossível hoje!
- Tá bom - cedeu, rindo -, café. Vai. Café.
Paula tomou um gole do suco de laranja em cima da escrivaninha. Achava aquilo extremamente divertido. Ao mesmo tempo, sabia que Paulino tinha razão. Se bombasse em História, corria o risco de reprovar o ano. Mas era difícil. Os nomes e datas tinham um jeito de sair por um ouvido tão logo entravam no outro. E ter Paulino ali a distraía demais. Cheirava aquele sabonete gostoso dele, sonhava beijar seus lábios polpudos. Perto de Paulino, Getúlio Vargas não tinha a menor chance.


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En México,
hasta las piedras son hechas de chile.

Chile poblano, serrano,
habanero y manzano,
Chile pasillo, guajillo,
atacando la boca y el fundillo.
Chiles en el agua, en la leche
de las madres, una pendejada,
un pueblo entero hecho enchilada,
Chiles lanzados a la pared,
a las bases de los edificios,
los verdaderos culpables de los sismos.

Una tierra entera de chiles históricos.
Y la vida,
a veces terrible, a veces maravillosa,
siempre picosa.

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Há alguns anos, um filme transmitido na TV resumiu o clima de catastrofismo que imperava em nossa psiquê coletiva. A produção se chamava “O Dia Seguinte” (“The Day After”), e mostrava os efeitos devastadores provocados por um eventual conflito nuclear, em especial sobre a população comum. O medo imperava.
Passado o pesadelo atômico, arrisco dizer que há motivos para otimismo no mundo de amanhã. O limiar do século XXI trouxe mudanças que seriam impensáveis até recentemente. O Muro de Berlim desmoronou e, com ele, a União Soviética e a Cortina de Ferro. O odioso regime do apartheid ruiu na África do Sul, graças à liderança segura e esclarecida de Nelson Mandela. Os conflitos internacionais, tão presentes até os anos 80, diminuem drasticamente de número. Até o Brasil, saído de uma ditadura militar há apenas 15 anos, parece deixar as grandes crises econômicas para trás e entrar num novo ciclo de prosperidade democrática.
Hoje, sonhamos com conquistas para além de governos eleitos pelo voto popular e uma moeda estável. Há poucos meses, cientistas foram capazes de clonar uma ovelha. A era da “World Wide Web” (em inglês, a Rede Mundial de Computadores, conhecida popularmente como “Internet”) interconecta o globo através da tecnologia, fazendo crescer as oportunidades para negócios e disseminando informações sobre arte e cultura. Com as novas tecnologias, as grandes potências mundiais descobriram que não podem salvar o mundo sozinhas. Um símbolo concreto desse entendimento é o lançamento, ano passado, da primeira unidade da Estação Espacial Internacional, inédita empreitada multinacional de exploração do espaço sideral. O fenômeno da “globalização” se tornou uma realidade incontornável, em que países se dão as mãos em busca do bem-estar comum.
Nesse sentido, a preservação do meio ambiente representa uma missão imprescindível. Os compromissos alcançados na Rio-92 e na assinatura do Protocolo de Quioto mostram que o paradigma do desenvolvimento sustentável, segundo o qual o esforço desta geração garantirá a sobrevivência das gerações futuras, veio para ficar.
Ao mesmo tempo, o mundo parece descobrir os bilhões de excluídos presentes em todos os países, que normalmente ficam de fora na repartição das benesses globais. Falo das mulheres, dos negros e dos homossexuais, assim como da imensa massa de depauperados que habita o planeta, que levantam suas justas reivindicações perante o tribunal global, inaugurando uma nova era em que todos, e não apenas a minoria privilegiada de sempre, terão um lugar ao sol.
Democracia, tecnologia, preservação ambiental, representatividade das minorias. Contrariando os prognósticos apocalípticos dos anos 80, a década de 90 mostrou que o sol pode brilhar no dia seguinte. Não à toa, o maior temor que temos nessa virada do milênio não é uma guerra nuclear, mas um mero “bug” de computador. Mesmo não sendo perfeito, o futuro é promissor. A todas e todos, um bom 1999.


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Sempre tive vergonha do meu cabelo. Ainda tenho. Acho grande, grosso, de corte ruim, sempre de mau humor. Mas, quando ela o acariciava e pregava um beijo fundo, por um segundo meu cabelo parecia o mais bonito do mundo. Paola tinha esse jeito. De tirar beleza de mim onde antes só havia um oco.
Acho que amor é isso, não? Tornar bonito o que nos parece feio e desnecessário. Como os pensamentos ruins que aparecem na minha cabeça todo dia quando acordo. Se eu deixar, eles tomam conta de mim, me paralisam antes mesmo da hora do almoço. Mas bastava um sorriso ou um abraço de Paola para que se dissolvessem em pleno ar.
O amor não é apenas um sentimento, mas também uma perspectiva. Quando você está amando, visto de fora, nada muda. Os ônibus continuam correndo no mesmo horário. Mas, por dentro, é como se a vida tivesse se nivelado, adquirido proporções harmoniosas, corretas.
Você cruza a esquina sabendo que contemplará algo do outro lado, e não apenas um enorme abismo negro e disforme, esperando pra te engolir. Aliás, o maior perigo é imaterial: não é o abismo, mas o medo do abismo. Não é quem eu possa encontrar do outro lado, mas o medo que sinto desse alguém.
Pois eu cruzava a esquina e encontrava Paola, sorrindo pra mim, pronta pra me dar um abraço e um beijo no cabelo.
Ela se foi, mas o amor não desapareceu. Continua cada vez mais forte.


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- A situação está complicada.
- Nem me fale.
- Não só do ponto de vista substantivo. No discursivo também. Toda vez que tento debater algo sério, alguém se dispers...
- CLIPE NOVO DA ANITTA!
- He he, isso. Distrações.
- Não, sério, saiu clipe novo da Anitta! Vou assistir e já volto.
- ...
- Pronto, voltei. Demais, viu. E a música é boa também. Mas fala, continua.
- Bom, a dificuldade está em manter a atenção do públ...
- FILME NOVO DO HOMEM-ARANHA!
- ... pros assuntos realmente import...
- HALO 8 PRO PLAYSTATION!
- O desmatam...
- FÁBIO ASSUNÇÃO INTERNADO DE NOVO!
- A desigualdade soci...
- ANA MARIA BRAGA SE DIVORCIOU!
- Pera...
- ABRIU GASTROBISTRÔ PERTO DE CASA!
- Porr...
- VASCO SE CLASSIFICOU! SAIU O COROLLA NOVO! A JUJU TÁ NAMORANDO!
- Acabou?
- CLIPE NOVO DA ANITTA!
- Outro?!


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- O juiz apita! Começa o jogo no Maracanã!
- Pacaembu.
- Pacaembu! O Flamengo...
- Goiás.
- O Góias e o São Caetano...
- Volta Redonda.
- Isso. Os dois tem que se cuidar! Se cada um fizer um gol, é empate! Quem fizer mais gols ganha!
- A idéia é essa.
- Róbson passa para Dejair...
- Foi Dejair que passou pra Róbson.
- Pra fora! Tiro de meta!
- Escanteio.
- Varginha vai cobrar.
- Varginha tá no banco.
- O futebol é uma caixinha de surpresas! Pode ganhar e pode perder!
- E pode empatar.
- O juiz dá a falta!
- Foi pênalti!
- Não, foi falta.
- Falta na pequena área!
- Pera. Desculpa, foi pênalti mesmo.
- Varginha vai bater!
- Varginha ainda tá no banco.
- Gol!
- Errou.
- A torcida do São Caetano vai ao delírio!
- Juventus.
- O jogo recomeça! Nova falta! Mão! Botou a mão na bola.
- É claro. Esse é um jogo de rúgbi.



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Aníbal viu o clarão fúcsia crescendo de intensidade. Aquele era seu último pôr-do-sol: o Sol não nasceria no dia seguinte. Ou melhor, o astro continuaria ali, onde sempre estivera, mas não restaria ninguém vivo para vê-lo se erguendo no horizonte. O apresentador do noticiário havia explicado, lutando contra as lágrimas, que o meteoro brilharia fortemente como um segundo Sol antes de desabar sobre a América do Sul, causando ondas de choque tão fortes que um quinto da humanidade seria exterminada quase imediatamente. Uma espessa neblina, causada por cinzas e partículas da água evaporada dos oceanos, cuidaria do resto.
Novamente, ele percorreu todos os estágios mentais da tragédia, do desespero à serenidade de um condenado à morte. Recordou-se da loucura dos últimos meses, a lenta desintegração do que, para ele, representava a humanidade: boa comida, música, sorrisos de pai para filho. Em seu lugar, haviam assumido o caos e os gritos que ecoavam dos apartamentos vizinhos, arautos das últimas horas da espécie humana. Sem saber o que fazer, Aníbal observou pela janela o clarão no céu mudar gradualmente de tom, para um rosa vivo que pulsava em meio às colunas de fumaça que tinham tomado conta da cidade.
Mal se virou quando ouviu a porta da frente estalar e ceder. Logo viu que um homem lhe apontava uma arma. Pensou que deveria ser um dos saqueadores que haviam tomado conta das ruas. Sentindo uma onda de alívio, esperou que uma bala o tirasse daquela angústia, mas ao invés disso ouviu uma voz lhe perguntar um nome, se aquele era seu nome, e Aníbal balançou a cabeça. O homem guardou a arma no coldre, pediu desculpas, disse que tinha recebido a informação de que o fulano de tal morava no prédio. Aníbal, sempre muito lentamente, juntou as letras do nome e murmurou, o fulano morava ali, sim, mas no último andar. O homem agradeceu e saiu correndo, lançando-se pelas escadas do prédio.
Como hipnotizado, Aníbal o seguiu. Correu pela escada sem se dar conta de que a invasão do homem armado o havia sacudido de sua letargia, fazendo-o esquecer, por alguns instantes, do fim iminente. O homem tinha ao menos um andar de vantagem, pulando de três em três degraus. Aníbal tentava acompanhá-lo mas logo diminuiu o passo, perdia o fôlego. Desviava-se dos cadáveres espalhados pelas escadas, retorcidos em poses estranhas. Teriam se matado? Haviam sido vítimas de saqueadores? A resposta era irrelevante. Pelas janelas da escada, percebia que o céu agora se tingia de laranja, como o perímetro externo de uma chama.
Alcançou o estranho no último andar, enquanto este tentava ouvir através da porta de um apartamento. Sem fôlego, Aníbal perguntou o que ele fazia ali. Calmamente, o estranho explicou que havia rastreado o assassino de uma mulher até ali. Aníbal engasgou ao ouvir aquilo. Teve que segurar o riso. Nesse instante, o prédio começou a tremer. Um ronco tomou conta do espaço. Os dois olharam por uma janela: o laranja havia clareado, substituído por um amarelo que empalidecia rapidamente, e lhes parecia que uma silhueta borrada tomava forma no céu. Instintivamente, rindo como um alucinado, Aníbal investiu contra o estranho e o agarrou pelos ombros. Não disse nada mas era claro que queria demonstrar a insanidade daquilo. A humanidade vivia seus últimos momentos. Que diferença fazia aquela ação que, apesar de moral, era inútil?
O estranho não respondeu. Jogou seu peso contra a porta, que cedeu com o impacto. Aníbal viu o vizinho de joelhos diante de uma poça de sangue, as paredes do apartamento cobertas de desenhos e letras escarlates. O tremor crescia e o amarelo transformava-se em branco. Viu quando o estranho se jogou sobre o assassino, imobilizando-o contra o assoalho e prendendo seus pulsos com algemas.
Para onde vai levá-lo, gritou Aníbal, tentando se fazer entender sobre o estrondo que engolfava todo som. Não existia mais delegacia, prisão, tribunal, juiz, em cinco minutos tudo o que fosse humano teria sido varrido da face da Terra, todo ato, de revoluções a espirros, apagado, e enquanto isso o estranho estava ali, algemando o assassino, montando uma pantomima para provar que seus atos ainda tinham validade.
O estranho não respondeu, apenas encarou Aníbal, devolvendo sua expressão confusa. E logo ficou claro para Aníbal. Não havia ocorrido ao homem que deveria desistir de sua missão porque a humanidade pereceria. A verdade não desapareceria nos escombros. Ela era eterna como o Sol.


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Depois de pedir férias pro chefe, comprar passagem, reservar hotel, carro, arrumar mala, chegar no aeroporto com horas de antecedência, ficar na fila do embarque, da esteira de bagagem, da locadora, depois de duas horas viajando com o carro novo que engasga na terceira marcha, de chegar no resort, fazer o check-in, desfazer a mala na cama do quarto e botar a sunga, finalmente sentei nesta maldita cadeira de praia para olhar as ondas enquanto ela caminha na areia.
Um casal de cara amarrada passa por mim. O homem fica me encarando. Faz um breve aceno antes de continuar. Aceno de volta, como um detento que reconhece outro durante o banho de sol na prisão.
Talvez o casal estivesse ali pelo mesmo motivo que nós: tentar tirar a relação da UTI. Mas a ideia de que uma viagem poderia ajudar a salvar nossa relação era tão absurda quanto pensar que essa sucessão de aporrinhações, hotel, carro, etc, poderia produzir alguma serenidade antes de realizarmos o percurso inverso, de volta ao lar e aos problemas.
Um dia, eu estava bêbado e sugeri termos um filho. Ou fazer uma assinatura da Piauí, o que fosse mais fácil. Ela não gostou da correlação de ideias e nunca mais tocou no assunto.
Viajar pra "esquecer os problemas" é muito sonho de filme americano. A fuga como solução, a aventura como antídoto para a rotina cinzenta dos boletos. Normalmente, os filmes não falam do vento frio que sopra na praia, que causa uma bela de uma otite. Ou de vizinhos de quarto barulhentos. Ou de areia na virilha. Onde está William Holden se agarrando com Jennifer Jones na areia molhada? Os filmes são líricos, mas nosso pesadelo é contínuo, doloroso, estranho.
Outra vez, eu disse a ela, bêbado (ando bebendo demais), que o amor não é suficiente. Dessa vez, eu tinha razão. O amor nunca é suficiente. Às vezes, não é nem necessário. O que é necessário é paciência e disposição para torturar o próximo. Torturar e ser torturado. Sinceramente, surpreende-me o fato de que qualquer um deseje, por livre e espontânea vontade, viver ao lado de outro.
O mar avançou sem que eu perceba, a ponto de me tocar o pé. Penso subitamente, e se eu entrar no mar? E se, antes que ela volte da caminhada, eu me levantasse da cadeira e mergulhasse, nadando o máximo que meus braços pudessem me levar, até estar cansado demais para retornar? E se eu afundar e desaparecer para sempre, o afogamento banal de um turista recém-chegado no hotel de suas férias? Fulano deixa esposa Sicrana e um bebê inexistente. Suspeita de embriaguez e psicologia de facebook.
Ela retorna, sorridente. Quer me mostrar algo: uma concha enorme que encontrou na areia. Dá pra encostar no ouvido e ouvir o mar. Eu pergunto pra quê faria isso se posso ouvir o mar agora mesmo. Ela sorri. O carro, a areia, o filho, o mar. Sorrio de volta. A concha terá que servir.


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Os créditos sobem na tela, as luzes se acendem. Espreguiço na cadeira e cutuco Etelvino, que está sentado na fila da frente e detesta ser cutucado.
- Que fita, hein?
- Sabe que não acho? O Bogie é maníaco, quase um tarado. Não cai bem. E um escritor como herói? "Please". Noir por noir, prefiro “Double Indemnity”. Também é com a Gloria Grahame.
- Qual é o “Double Indemnity”? - perguntei, irritado com a mania de Etelvino de discordar de tudo que lhe dizem - Nunca sei o título em inglês.
- Do Billy Wilder. Não conhece? - cutucou de volta, com aquele tom arrogante de “como você nunca viu esse?”.
- Do Wilder… é aquele do agente de seguros? “O Carteiro Sempre Bate Duas Vezes”? Fred MacMurray?
- Não, “O Carteiro Sempre Bate Duas Vezes” é com John Garfield.
- Mas a história foi filmada várias vezes. Inclusive por um italiano, se não me engano.
- O “Double Indemnity” é outro, estou dizendo. Com Gloria Grahame e Fred MacMurray. Um clássico moderno. Me surpreende que você não tenha visto - disse Etelvino, sorrindo.
Estalei os dedos.
- Você não está confundindo com “Pacto de Sangue”, não?
- Isso! “Double Indemnity” é “Pacto de Sangue”.
- Mas não tem Gloria Grahame. - eu disse. Etelvino estava perdido.
- Claro que é. - ele insistiu, ofendido por eu ter duvidado de sua superioridade cinéfila.
- Claro que não. É com Barbara Stanwyck. A do narigão.
- Uma pinóia. Grahame.
- Stanwyck.
- Lana Turner! - grasnou Dona Rita da última fila.
Respeitosamente, viramos os rostos para admitir a veneranda cinéfila em nossa conversa. Dona Rita era uma velhinha viúva que não fazia outra coisa exceto assistir a todas as sessões do Cine Roxy. Era a única pessoa com quem não nos atrevíamos a discutir. Ela sabia tudo, seria perda de tempo.
- Lana Turner está em “O Carteiro Bate Duas Vezes”! - prosseguiu. - Mas no Brasil se chamou “O Destino Bate À Sua Porta”!
- Obrigado, Dona Rita. - dissemos juntos.
- John Garfield. Um pão!
Aproveitei a deixa.
- Dona Rita, e “Pacto de Sangue”?
- Fred MacMurray. Outro pão.
- Quem fazia o par dele? - gritou Etelvino, impaciente. - Gloria Grahame, correto?
- Claro que não, meu filho. - ela gritou de volta, como se Etelvino tivesse acabado de proferir uma blasfêmia. - Barbara Stanwyck. De “Adorável Vagabundo”. O nariz mais elegante da América!
Etelvino fechou a cara. Não dava pra discutir com Dona Rita.
- Por favor, senhores… tenho que esvaziar a sala.
Ante o chamado de Seu Horácio, ambos nos dirigimos à saída. A única cadeira ocupada era de Dona Rita. A velha era a única que podia ficar o tempo que quisesse. Era um acordo antigo com o dono do cinema, dizia-se, da época da Guerra do Peloponeso.
- Um conhaque, Etelvino?
- Hoje não. Tenho coisas a fazer. “Adieu”.
Nos despedimos sob o sol do meio-dia de Copacabana, diante do Cine Roxy. “Coisas”. Numa tarde de quarta-feira, Etelvino tinha tanto a fazer quanto eu: nada. Tudo o que nos restava era ir ao cinema, o que fazíamos com uma regularidade suíça. Todos os dias. Botei o chapéu e continuei caminhando no sentido oposto ao de Etelvino, em direção ao calçadão, pensando se deveria assistir a “No Silêncio da Noite” mais uma vez ou comer um bife no Cervantes.


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- Desculpe, a senhora podia checar de novo?
- O Secretário Marcelo continua no telefone, doutor.
- Não precisa me chamar de doutor, não. Nesse caso, eu espero mais. Não tenho problema em esperar, é um prazer. Vai ser muito bom rever o Leon. Nós somos companheiros, a senhora entende. Da luta.
- "Leon"?
- É o nome de guerra dele. Na militância. Nossa, a gente fez muita coisa junto. Muito protesto. Apanhamos muito da polícia.
- A-ham.
- A senhora não sabe o orgulho que deu quando eu soube que ele tinha sido nomeado Secretário-Executivo do Ministério. Eu pensei, "agora as coisas vão andar. Botaram a pessoa com o coração certo no posto". E é preciso ter coração, não é? Dizem que Brasília não tem coração, mas eu discordo. Dentro desses prédios-caixote ainda há quem queira fazer a coisa certa. Por esse país grandão lá fora. Gente que sentiu injustiça na pele, como o Leon.
- A-ham.
- Será que ele já saiu do telefone?
- Continua na linha. Talvez se o senhor voltasse mais tarde.
- É que já estou aqui há três horas.
Clic.
- Márcia, a reserva tá feita no restaurante?
- Leon!
- Ele insistiu em esperar, Secretário...
- Leon, sou eu! Vladimir! Vlado!
- Hã, oi. O cidadão vai me desculpar, mas tava de saída...
- Preciso falar com você, Leon. Olha, eu tenho um projeto de criar bibliotecas populares na periferia, vai ser revolucionário, custa pouco...
- Ótimo, ótimo, a gente marca uma hora, Márcia, por favor marca uma hora pro meu chefe de gabinete receber o cidadão...
- Leon. Não tá me reconhecendo?
- Claro que sim, mas é que tenho um almoço marcado, não posso faltar. Deixa o projeto aqui com a Márcia, voltando do almoço dou uma lida. E marca com meu chefe de gabinete, Otávio, pessoa ótima, vai adorar te receber.
- Mas as bibliotecas...
- Bibrioteca, sim, ótimo. Abraço, viu. Muito bom falar com você.
- ...
- O doutor quer que eu marque com o doutor Otávio? Mês que vem está bem?
- Ele nem me reconheceu...
- Dia 6? Pode ser às cinco e meia da tarde? Doutor?
- Não precisa me chamar de doutor, não. Isso é resquício da ditadura.
- O Secretário Marcelo pede que chamemos todos de doutor, doutor.
- E ele acabou de fazer o exame do toque em mim.


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- Vou querer uma Salada César, sem molho.
- Ótima escolha. E a senhora?
- Pra mim um filé à parmegiana com fritas e porção extra de feijão. Pede pra carregar nas fritas, tá?
- Agora mesmo, senhora.
- Amiga, tá podendo hein. Eu precisaria de quatro horas de pilates por dia pra queimar isso tudo.
- Ah, amiga, engordar é coisa do passado. Eu assino o programa Gordura Virtual. Você come e outra pessoa é que ganha o peso.
- Jura?! Que maravilha é essa?
- Muito simples! Basta baixar o programa da Internet e pagar uma mensalidade. Caríssima, mas vale a pena. De tudo o que você come, o programa despacha as calorias pra um pobre coitado, funcionário do programa. Ele engorda e você continua magrinha.
Rosaura ficou pensando em silêncio por alguns segundos.
- Amiga, isso é verdade?
- Claro que não, idiota. Agora quer me deixar em paz enquanto eu fico digerindo a culpa?


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Passos ecoam pelo prédio, atraindo os fantasmas dali. Paredes com tinta descascando, a luz que escorre leitosa pelas janelas sujas, são testemunhas do abandono em que se encontra a antiga delegacia. O homem caminha lentamente pelos corredores, descendo escadas, parando aqui e ali para respirar fundo e recordar. Já visitou aquele lugar há alguns anos, mas não houve ocasião para relembrar com os flashes das câmeras e o discurso de políticos oportunistas. Apenas sozinho se sentia capaz de reordenar as lembranças, de dar sentido a um lugar que antes lhe inspirava apenas repulsa e horror.
Passa pelas celas, com as portas todas arrancadas. Lembra-se da sua cela e do canto exato onde se encolhia sentado, buscando não encostar nas paredes úmidas. À distância, o grito de um homem, o estrondo de portas metálicas se fechando. Conversas abafadas. Além do som, sente-se acossado pelos cheiros, o mofo do chão, o ocasional perfume de detergente, a colônia usada por um dos policiais. A lembrança do perfume o recorda dos dentes do torturador, a poucos centímetros de seu rosto, e pela primeira vez durante a visita ele estremece. Se perder o foco, teme, é possível que se perca novamente neste lugar, e desta vez para sempre.
O que restou daqueles anos, pergunta-se. Sussurros que ainda o fazem despertar no meio da noite, suando. Perguntas atravessadas dos netos, recriminações da filha, o silêncio da esposa. Fotografias, depoimentos, testemunhos oficiais de um evento íntimo. Histórias trocadas em bares com amigos distantes. Ele sorri, amargo. “E a utopia?”, lê numa pichação na parede. A idade se encarregou de apagar a utopia. Ele já não reconhece o jovem que foi preso neste calabouço, quarenta anos atrás. As idéias que defendia, antes tão cristalinas, turvaram-se diante das idéias que as sucederam, umas cancelando outras, a História pesando sobre tudo. Por muito tempo, tentou extrair sentido de suas experiências, conferir-lhes propósito, coerência, ao menos alguma relação de causalidade. Hoje, porém, tudo se mistura em seu ser como uma grande confusão que o exaure.
Por outro lado, há lições a tomar. Caminhando por aqueles corredores decadentes, nem tudo são cinzas. Por um tempo, aquele lugar havia lhe representado o mal absoluto, a antivida. Não a morte, fato natural, mas o limbo, a ausência de vida e morte, mil vezes mais horroroso que qualquer morte. Viu morrer ali cada fibra de seu corpo, os filhos e netos que ainda não tinha, qualquer noção de decência que o mundo poderia abrigar. Encolhido no canto da cela, havia esmagado a esperança que carregava dentro de si, num esforço consciente de anular-se, matou-se muitas vezes antes que os torturadores encostassem um dedo nele.
Ainda assim, está aqui depois de tudo. Um homem velho, com filhos e netos, óculos sobre o rosto, pisando este chão. Poderia ter desaparecido como tantos outros, mas perdurava. E via, aos seus pés, aquele lugar de ódio definhar e morrer. O pó sob os sapatos era testemunha incontestável desse fato. As celas não abrigavam ninguém além de fantasmas, os gritos existiam apenas em sua memória. Sabia que, mesmo que ele e seus companheiros não tivessem vencido, o outro lado havia sido derrotado. Mesmo que houvesse, hoje, quem desejasse dar uma nova demão de tinta àquelas paredes e instalar novas portas, reabrir a franquia. Mesmo com a amargura e as incertezas, naquele momento ele caminhava pelos corredores mortos do ódio, que nunca mais poderiam feri-lo.

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Não precisam temer. Está tudo bem. Era como nos falavam as autoridades. Mas era mentira. Haviam perdido controle. Replicário, empresa fabricante de aplicantes, falira. Aplicantes eram cópias perfeitas de pessoas. Produzidas à perfeição. Impossível distingui-las de humanos. Robôs dotados de memória, máquinas ambulantes. Mas Replicário falira. Isso apresentava problemas. Perderam-se os arquivos. Não se sabia quem era aplicante ou humano.
Conheci Laura ontem. Amiga de amiga. Conversamos juntos até o dia amanhecer. Na manhã seguinte, voltamos a sair. Fui ao seu quarto, sem acreditar. Passamos o domingo na cama, sem pressa. Nos atraíamos imediatamente.
De madrugada, fomos acordados por gritos. Vimos pela janela um rapaz encurralado. Foi atacado, linchado. Assistimos com horror. Todos temiam aplicantes. Era estranho, pois não sabíamos distingui-los. Eram idênticos a nós, a nível molecular. Dessa forma, qualquer gesto sugeria aplicantes. Um comentário irônico. Até acenos exagerados. Não suportávamos tê-los ao lado, subrrepticiamente. Era preciso exterminá-los.
Seria Laura aplicante? Comecei a cogitar depois daquela noite. Ela parecia perfeita. Cheguei a pensar que poderia me matar. Muitos pensavam assim. Uma noite, aconteceria. Um agente da Replicário apertaria um botão. Ativaria bilhões de aplicantes. Matariam a todos. Comandos secretos, sussurros ouvidos na escuridão. Estávamos em guerra. A idéia não saía da cabeça. Certa manhã, Laura ergueu a faca da manteiga. Encolhi-me assustado, gemendo. Quando fazíamos sexo, transpiravam eros e tanatos. Cada segundo poderia ser meu último.
Não aguentava mais. Precisava fazer algo. Combinamos de viajar a Meredick Falls. Gostávamos do lugar. A simulação virtual de um penhasco. Mar de mentirinha. Brisa salgada gerada por ventiladores gigantes.
Dirigimos em silêncio. Fomos até o promontório, o ponto mais alto. O Sol, holofote gigante, punha-se. Laura me abraçou. Eu chorava copiosamente. Estava prestes a empurrá-la do penhasco. Não podia viver com uma aplicante. Ela também não. Senti o empurrão, tropecei no abismo. Desabei no mar com um estrondo. Hologramas me cobriam. Água, ondas, espuma. Do alto, Laura me olhava e chorava. Quis consolá-la, nada havia a temer.


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- Acorde, señor Villaviniegas.
- …hã? Quem são vocês?! Quê que estou fazendo aqui, caralho?!!
- Tenha calma, señor. Estamos no jardim de sua bela casa.
- Chamarei a polícia!
- Acho difícil. O Pepe aqui foi escoteiro e saber fazer um nó como ninguém. Além disso, seu celular ficou lá dentro. O melhor é manter a calma.
- Vai tomar no… espere aí… estou te reconhecendo. Você é aquela doida da ONG… dos direitos dos animais!
- A “Liga Anti-Tauromaquia”. Sim, señor Villaviniegas, somos todos membros da LAT. E o señor é Victor Velázquez Villaniviniegas, o maior toureador da Espanha. Tem 49 anos, fama mundial e está amarrado como um salame, deitado no jardim de sua própria mansão. Agora, se já terminamos as apresentações, podemos passar ao evento principal da noite.
- Socorro! Socorro!!
- É inútil, señor. Sabe melhor do que eu que seu vizinho mais próximo mora a 20 quilômetros daqui. Sabe, os ricos tem essa mania de viver longe de tudo, como se quisessem escapar da merda de mundo que eles mesmos criaram. “No es así”, Pepe?
- Falou e disse, companheira.
- Pelo amor de Deus, tem um pouco de dinheiro na casa…
- Obrigada, señor Matador. De fato, viemos pedir uma contribuição à nossa causa, mas não é monetária. Pepe, coloque-o de quatro.
Com uma mão, Pepe agarrou o nó que prendia as mãos de Villaviniegas às costas e suspendeu o pobre homem no ar. Ossos estalaram e o toureador soltou um grito. Mas ele permaneceu de quatro na grama, tremendo de frio.
- Victor Velázquez Villaviniegas, o senhor passou mais de trinta anos de sua vida matando animais inocentes para a diversão alheia. Você os perseguiu, aterrorizou, torturou e trucidou esses animais em nome de seu proveito pessoal e de um ritual cruel. Como se declara?
- Parem com essa palhaçada! Me desamarrem! Socorro!
Com o rabo do olho, viu quando a jovem vestia a faixa na cintura. A faixa pertencia a ele, tendo pertencido a seu pai e seu avô.
- Este tribunal decide que você deve provar de seu próprio veneno. Pepe, faça as honras.
Viu o brutamontes se aproximar com a faca em riste. Rastejou de medo. Logo sentiu aquela mão firme segurando a corda entre suas pernas. Era o fim: apertou forte os olhos, sentindo a lâmina vibrar até achar seu alvo.
Zás-trás. Não sentiu dor. Abriu os olhos. Estava bem. O cara havia cortado um dos nós que prendiam as pernas. Amarrado como estava, porém, podia apenas engatinhar sobre os cotovelos e os joelhos. Ergueu a cabeça e viu a moça, vestida com o “traje de luces” que ele havia usado incontáveis vezes na arena. Ela estava acima de si, desafiadora, com a “montera” sobre o cabelo, o “capote de paseo” cobrindo a “chaquetilla” e, em sua mão, o estoque de aço afiadíssimo, delgado como um raio de luz que cintilava sob a lua.
Villaviniegas encarou sua inimiga como um touro encara o toureador, bufando de raiva. Ela, por sua vez, caminhou teatralmente pela grama, dando as costas para sua forma amarrada e miserável.
- Vamos começar, Señor Matador.


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- E aí?
- Daí que esse Cubrick é doido varrido.
- É Kubrick, não Cubrick.
- Que seja. Macacos e naves espaciais? Um robô assassino? Uma pedra que canta? Por um momento, achei que estava vendo filme da Hammer. Demorava um pouco mais e aparecia Drácula com traje de astronauta.
- Pois eu achei genial.
- Ninguém pediu tua opinião, Maneco.
- Já eu achei uma maçada. Aquele festival de luzes no final? Parecia que o roteiro tinha acabado e tiveram que encher linguiça.
- Pior que maçada, Vandinha. É subversivo. Lembram daquela sequência do astronauta, perto do final?
- A do velho na cama e o bebê flutuando?
- Não, a que ele desliga o robô. A tela toda vermelha. Subversivo. Não me admiraria se Moscou tivesse financiado a película. Todos esses diretores pseudo-artísticos mamam nas tetas de Kruschev.
- Brezhnev.
- Que seja. Onde estão Capra, Ford, Hawks? Onde está o cinema de verdade, o faroeste, o drama? Hoje em dia, qualquer palhaço toxicômano filma um bagual dormindo por oito horas e chama isso de “arte”. Estamos nos tornando um bando de maricas.
- Você não sabe o que diz. A fita é revolucionária. Homem contra máquina, passado contra futuro. Um grito de liberdade, um chamado pelo nosso futuro como civilização...
- Quem queria gritar era eu. Filme cacête! Deveríamos ter ido ver o da Doris Day.
- Claro, mais um musical com gente de cabeça ôca que começa a cantar no meio da frase... Lavagem cerebral conformista, é o que é.
- Ao menos é divertido, Maneco. Não vou ao cinema pra pensar no futuro da civilização. Vou para gozar. Não sou dessas que fica achando pêlo em casca de ôvo, como tú.
- Adorno diz que a arte na era da reprodutibilidade técnica...
- Lá vem o Maneco, querendo “adornar” as coisas. Pois saiba, meu chapa, que cinema de verdade é o de antigamente, em que o mocinho mata o bandido e fica com a mocinha. Hoje, querem que a mocinha seja o bandido e que o mocinho fique no lugar do cavalo...
- Cinema não é só distração, ô Dejair. Também é arte, provocação. Vistes algum do Godard? “O desprezo”? “O eclipse”? Até no Brasil anda se fazendo coisa bôa. “Deus e o diabo na terra do sal”.
- “Sol”.
- Não é “sal”?
- E esse título? Todo mundo sabe que em 2001 já teremos ido pras cucuias.



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Diego era funcionário numa repartição pública. Seu trabalho consistia em apertar um botão de hora em hora.
No começo, questionava a importância da tarefa. Para quê serviria o botão. O que aconteceria se deixasse de apertá-lo, e quem seria afetado por isso. Mas Diego nunca chegou a colocar essa pergunta aos seus chefes. Tentava ser um funcionário exemplar. Chegava às dez da noite em ponto e saía às seis da manhã, cumprindo o turno da madrugada. Ficava sentado em seu cubículo com ar condicionado, diante do botão instalado no centro da mesa. No primeiro minuto de cada hora, pressionava o botão religiosamente, sem falha.

Quando era novo no serviço, Diego quase falhou. Ainda não havia trocado a noite pelo dia, dando cabeçadas de sono durante a madrugada. Certa hora, despertou com o alarme tocando. Faltavam cinco segundos para terminar o prazo. Seus empregadores haviam sido muito específicos, instruindo-o a apertar o botão uma única vez antes que o primeiro minuto da hora se esgotasse, caso contrário ocorreriam “coisas horríveis”. Diego esmurrou o botão faltando um segundo para 3:01. Desde então, aprendera a se manter acordado durante a noite, espetando-se na perna com uma agulha.
Quando amanhecia, Diego era rendido pelo funcionário do turno matutino. Pegava suas coisas e rumava ao seu apartamento - um cubículo do mesmo tamanho do escritório -, onde dormia até as duas da tarde. Almoçava, lia o jornal ou ia ao cinema antes de se arrumar para voltar ao trabalho.
Às vezes, Diego via um encanador da prefeitura desentupindo o esgoto e pensava, eu podia estar muito pior. Pensava o mesmo quando via um mendigo. Podia ser eu aí, na lama, mas tudo o que tenho que fazer é apertar um botão. Tentava se convencer de que o motivo não era importante. Aprendeu que havia razões superiores que não lhe cabia questionar. Se alguém achou por bem botar o botão ali, é porque existiria algum motivo razoável para fazê-lo.
Mas a mente é um animal traiçoeiro. Por mais que Diego desejasse eliminar qualquer consideração sobre o emprego, não conseguia sufocar as perguntas que se acumulavam. Qual era o propósito de seu trabalho? Haveria algum propósito em buscar propósito em seu trabalho? Afinal, era bem pago, trabalhava no ar condicionado, tinha plano de saúde. Por quê se preocupar com coisas que não lhe diziam respeito?
A queda final de Diego não foi por omissão, mas excesso de zelo. Certa noite, quando soou o alarme da virada da hora, apertou o botão. Passaram-se alguns segundos, ele se distraiu e esqueceu que já o havia apertado. Pressionou-o novamente. O prédio explodiu em milhões de pedaços, desintegrando Diego, sua ignorância, o ar condicionado e o plano de saúde, que cobria até tratamento podológico.

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Lígia pensa que um livro deve ser como um novelo de lã: basta puxar a meada e tudo se resolve. As ideias vem e, com elas, as palavras. O difícil é encontrar o danado do fio.
Nasceu numa família abastada - sua mãe tinha vergonha de dizer que eram "ricos" -, crescendo protegida dentro dos muros da mansão. Saía apenas para a escola. No baile de debutantes, conheceu seu primeiro amor... ah, não, nem pensar, cruzes, murmurou enquanto amassava a folha.
Virou a página do caderno. Agora, Lígia nascia num barraco de favela, a mais velha de cinco irmãos. Ajudava a mãe no serviço doméstico e na criação dos irmãos menores, enquanto sonhava secretamente se tornar escritora. Um dia, ganhou um concurso de redação na escola. O primeiro prêmio era um livro autografado por Lygia Fagundes Telles, presente da professora. Lígia se lembra de passar boa parte da noite admirando a assinatura de sua homônima ilustre, pensando se um dia se conheceriam. Ela poderia escrever sua biografia, "Lygia por Lígia"...
Num impulso, rasgou a página e fez outra bola de papel. A história lhe soava falsa, exótica. Nunca havia estado numa favela, por exemplo. Suspirando, encostou novamente a ponta da caneta na página mas se deteve desta vez.
Pensou por um momento no pavor que lhe inspirava o papel em branco, à espera de ser preenchido. Quantas Lígias caberiam ali? Quantos nascimentos, quantas escolas, quantos primeiros namoros, decepções, revelações, resoluções? Cada palavra abria um caminho e fechava outro ao mesmo tempo, a história parecia um labirinto sem saída. Sentia que a folha era um vácuo que drenava sua força de vontade, sua imaginação. Era necessário escrever algo logo ou despencaria no vazio branco e sufocante.
Desta vez, Lígia não nasceria em berço de ouro ou numa casa de terra batida, mas sim numa casinha de classe média, ordinária e banal. Sua vida seria desprovida de atrativos, como grandes auto-análises e aventuras no estrangeiro. Festas juninas, beijos escondidos, brigas com o pai, o trauma ocasional, amigos de faculdade, o casamento... Lígia se tornou uma mulher de vida comum, que buscava poesia e equilíbrio num mundo caótico. Teve filhos? Sim. Divorciou-se? Aconteceu tudo isso, mas fora de uma ordem coerente e narrável. Os eventos foram se embaralhando como um novelo de lã, com inexplicáveis repetições. Quando morreu, Lígia tinha dificuldade em encontrar o fio da meada que a possibilitaria começar a contar a história.
Essa dificuldade a aborreceu consideravelmente, mas ao menos lhe ensinou uma lição: a vida real fornece péssimo material para a literatura.


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- Amigo. Dá licença, amigo.
- Tá falando comigo, rapá?
- Sim. Você pode dar o lugar pra essa senhora? Ela tá aqui em pé no meio do ônibus e você tá sentado na cadeira de idoso.
- Eu sei que tô no lugar de idoso, mané. Não sou burro nem cego.
- Então pode dar o lugar, por favor?
- Vem me tirar.
- Oi?
- Tá surdo? Eu disse pra vim me tirar. Aqui é lei da selva, mané. Do mais forte. Não tem plaquinha, regrinha não. Se quiser, tem que vir aqui me tirar.
- Mas é contra a lei.
- Dane-se. Sabe o que é a lei? Um livro com um porrete em cima. Se vier quatro meganha pra cima de mim, me dão porrada e me tiram. Mas o livro não vale de nada. Essa plaquinha aí? Não faz nada. Não pode me tirar. Se quiser vir me tirar na unha, eu respeito. Mas com regrinha não resolve nada. Agora a regra é fogo no olho e faca na cabeça, irmão. Lei do mais forte. Cabou a frescura.
- Mas a senhora...
- Dane-se. Olha ela aí. Caquética. Já passou do prazo de validade. Tem que levar pro meio do mato e deixar lá. Quem tem vez é o forte.
- Mas um dia você vai ser velho também.
- Nesse dia, eu vou ficar de pé no meio do ônibus, sem lugar pra sentar. Até lá, irmão, é fogo no olho e faca na cabeça.
- Não acredito nisso.
- Tudo bem, meu filho...
- Tudo bem o caralho, vovó. Aqui é lei da selva. Quiser me tirar, vem e me tira. Mas no muque. Não é com plaquinha, não. E tem mais. Se eu quiser teu celular, vou e pego. Tua carteira. Teu emprego. Tua mulher. Boto fogo na tua casa. Vai me impedir? Vai chamar polícia, neném? Cada um por si, mano. Cabou frescura.
A) O barulho cresceu, alguns passageiros xingaram, o motorista tomou as dores da senhora. Pararam o ônibus, chamaram a polícia. Ouviram uma risada no fundo quando o telefonista disse que mandariam uma viatura. No final, cansaram de esperar a polícia.
O motorista sabia que perderia o emprego. Ainda assim, concordou em esperar fora do veículo, na companhia dos outros passageiros, até que o tal se levantasse do assento. Este saiu xingando, gritando contra velhos, gays e motoristas de ônibus. Mas foi embora a pé.
B) Um cara de dois metros de bíceps chegou perto, perguntando o motivo da discussão. Quando soube que o bacana não queria ceder o lugar à velhinha, levantou-o pelo colarinho e o jogou contra a porta do ônibus. A senhorinha sentou, entre envergonhada e aliviada. Na selva, sempre tem uma onça maior que você.
C) O cara ainda ficou esbravejando por meia hora. Outra pessoa cedeu o lugar à velhinha. Calados e amedrontados, uns trocaram olhares com outros, imaginando qual seria seu lugar na nova cadeia alimentar.


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- Aêêêê, chegou o Bruno!
- Oi Bruno! Chega mais!
- Oi, galera! Beijo, Martinha. Olha, eu trouxe um conhecido aqui pra sua festa, desculpa não avisar antes.
- Imagina, super bem-vindo. Qual seu nome?
- Boa noite, senhora. Eu sou o Vanderlei.
- Vanderlei é gente fina. Ele é o Uber que me trouxe aqui.
- ... desculpa, você é Uber?
- Sim.
- Fica à vontade, a casa é sua. Bruno, posso dar uma palavrinha com você?
- Claro.
- Bruno, como é que você traz um Uber aqui pra festa?
- Uai, a gente começou a conversar, o cara é simpático, gente fina... convidei pra colar junto e ele veio. Tem problema? Eu trouxe cerveja.
- Ele é Uber, Bruno! Como assim, sair com Uber? Nunca vi isso! Uber é no máximo pra gente conversar por quinze minutos, falar mal do clima, do trânsito. Chamou, rodou, pagou, pronto, acaba aquela socialização forçada... Aí você traz um Uber pra minha festa?
- Endoidou, Martinha? O Vanderlei é gente também...
- Não fala o nome dele! No máximo, a placa do carro! Bruno, não estou te reconhecendo.
- Desculpa, achei que não tinha problema. A gente conversou, o cara é legal... Se tá incomodando, vamos embora, Martinha, sem problema...
- Não! Agora fica. Depois ele dá nota ruim pra mim, baixa meu rating. Agora deixa. Oi Vanderlei, quer o quê? Cerveja, vodca...
- Só uma água, obrigado.
- É melhor, bebida só vai atrapalhar seu serviço de UBER, né?
- Hã...
- Martinha, o Vanderlei é fã do Bergman.
- Deve adorar forró também, né?
- Não, senhora.
- Pagode?
- Também não. Nem todo Uber gosta de pagode.
- Jura, pensei que gostasse. Vamos conversar sobre outra coisa, então. Como tá o trânsito lá na Marginal?
- Porque não vai lá ver?
- OQUEI MARTINHA, a gente vai EMBORA...
- De modo algum, fiquem! Daqui a pouco alguém sai da festa e pode precisar de Uber.
- A senhora devia pegar um Uber era pro inferno, viu.
- Vambora, Vanderlei, vambora.
- Vai! Vai sim! Olha que perde a tarifa dinâmica, viu?
- Até nunca mais, Martinha.
- Não, Bruno, fica! Traz teu amigo Uber! Aqui tem curador de museu, bailarina do Municipal, editor do caderno de Cultura... só tá faltando um UBER! BRUNO! Volta! Depois vão dizer que expulsei convidado da minha festa! Bruno!

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- Você já teve oportunidade de dar uma olhada no meu livro?
Geisa gelou. Estava saindo com João fazia dois meses. Gostava do boy: era bonito, inteligente, educado. Sentia que poderiam ficar juntos por mais tempo que o habitual, não fosse pelo diabo do livro.
- Oi?, ela gritou, sorrindo em falso. Não ouvi, a música tá alta. Nossa, o garçom tá demorando, né? Vamos pedir uma porção de queijo à milanesa? Você acha que o queijo à milanesa foi inventado em Milão?
- Eu perguntei se você leu meu livro!, gritou João de volta.
O único problema era quando ele falava do sonho de ser escritor. Nessas horas, a fisionomia dele se transformava, parecia um pastor possesso dando sermão, falava de seu compromisso carnal com a literatura, da paixão que dedicava a todos os escritores mortos e do ódio por todos os vivos. O sonho de João era se tornar o maior escritor do Brasil, do mundo, capaz de descrever tão bem um sentimento que seria como se o tivesse inventado.
Geisa se recolhia, sabendo que João ficaria meia hora falando do assunto. Até aí, tudo bem. Ela respeitava as paixões alheias, até as admirava. O problema é que havia um mês que João lhe havia entregado o rascunho de seu primeiro romance, fazendo-a jurar que o leria e faria seus comentários.
“Seja impiedosa”, lembrava-se dele dizer com lágrimas nos olhos. “Sua opinião é essencial para mim”.
Geisa chegou a ler o livro até a metade. Agora, tinha tanta vontade de falar do que achou quanto um enforcado tem de falar sobre cordas.
- L-li, disse finalmente. Li uma partes, né, claro, não deu tempo de ler tudo, sabe como é, mestrado, fome, cadê esse garçom.
- E o que achou?, perguntou João, espremendo a mão dela, os olhos suplicantes. Fala tudo. Seja sincera.
E agora? Se falasse a verdade, tinha certeza de que o boy sairia correndo. Todo mundo tem botões que não devem ser apertados. Mentir? A idéia a enojava. Seus olhos se perderam no fundo do bar.
- Eu achei... eu achei, João, eu achei seu livro, o que eu achei dele, mas não sou crítica literária, leio por diletantismo, você podia inscrever num concurso literário, pedir pra mais alguém ler...
- Pode falar! Gostou, odiou? Estou te implorando! Acha que tenho chance?! Minha vida depende disso, não me faça esperar!
- EU ACHEI, João, assim, seu livro livro, a-achei, olha, até q-que é, veja bem, a-ali no começo, e no m-meio, o final também,
- FALA PRA MIM, GEISA!
A vitrine do bar explodiu, jogando copos, cadeiras e gente pelo ar. Geisa só ficou sabendo depois que um motorista bêbado tinha entrado com o carro na vitrine do bar. Na hora, quando ela viu a si e a João voando no meio dos cacos de vidro, ela só pensava, graças a Deus, graças a Deus.

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- ... a próxima é a aluna Janaína Mariano, do 6o.B. Explica pra gente, Janaína.
- Então. Meu projeto é sobre vulcões...
- Sim, dá pra ver. Tem uma maquete e tudo. Que original.
- Os vulcões são importantes pra controlar os movimentos do magma no interior da Terra...
- (bocejo)
- São mais presentes no Oceano Pacífico, nessa área aqui chamada "Círculo de Fogo"...
- Fascinante. Desculpa, mas você já viu o projeto aqui do seu vizinho? O Vítor? Olha só que legal, é sobre selfies.
- Vi.
- Tem câmera pra tirar selfie e tudo, bota filtro... Não é legal, gente? Sem ofensa, mas é mais criativo que o seu.
- Acho vulcão mais importante, tio.
- Pode até ser, mas toda feira de ciências sempre tem a porra do projeto sobre vulcões. Se eu ver mais um vulcão de papier maché expelindo gosma vermelha, acho que vou vomitar. Por outro lado, olha a idéia do Vítor. Você pode botar filtro de cachorrinho, de astronauta... que bacana ficou essa foto!
- Mas ele só botou um celular no tripé e baixou o aplicativo, tio.
- Então. O Vítor fez muito com os poucos recursos que tem. Você tem que pensar fora da caixa, Janaína. Vulcão já era. No mundo corporativo, ganha quem dá o pulo do gato.
- Mas vulcões são essenciais pra vida na Terra...
- BOOORING! Tem uma lição aqui pra ser aprendida, tá? Vou dar nota dois pela participação. Ano que vem, tenta inovar, ok? É Feira de Ciências, não Feira da Chatice. Gente, vamos passar agora pro projeto do Vítor Franco, do 6o.F. Que demais, tem selfie com estrelinha, no fundo do mar... quero tirar a minha! Dá pra postar no Insta?


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Uma festa.
- Boa noite. Sou Enzo Bordeaux, designer de renome. Você se incomodaria de realizar uma breve interação social comigo?
- Hã... acho que não.
- bzzzz (atenção Base, estabeleci contato com um deles. Continuando plano de extrair informações valiosas sobre a liderança terráquea).
- Ha ha! O que foi isso?!
- Não compreendo a que você se refere.
- Você falou no seu relógio como se fosse um E.T.! Foi engraçado.
- Não sou E.T., e sim um designer de móveis de renome. Recebi muitos prêmios em exposições e faço minha própria cerveja em casa. E tenho um rabo-de-cavalo. Veja meu rabo-de-cavalo.
- Claro. Menino, você é bizarro.
- "Bizarro". Significado, "atraente"?
- Talvez. Vamos ver. Me chamo Sofia, prazer.
- bzzzz (alvo se chama Sofia, espécie homo sapiens), boa noite. Sobre qual assunto nos debruçaremos em nossa breve e desinteressada interação social?
- Nossa, você é MUITO bizarro.
- Sugestão: grandes líderes terráqueos. Sob o domínio de qual líder sua casta se encontra?
- Líder? Quê que 'cê tá falando, querido?
- Quem é seu líder supremo?
- Oxe, ninguém manda em mim não.
- bzzzz, (tentativa inesperadamente bem-sucedida. Líder terráquea encontrada na primeira tentativa. Ativar modo dispersivo). Este vinho tem notas muito amadeiradas. Da região de Napa no Chile, França?
- Como assim? Isso é uma vodca!
- bzzzz, (Líder terráquea perdendo interesse. Mudando abordagem) Tenho uma empresa de app de entrega de sushi. Viajei a Macchu Picchu três vezes esse ano. Eu, eu, eu. Saudades do que a gente ainda não viveu, gata.
- Cara, você é estranho demais. Tchau.
- Qual a localização de suas armas? Exércitos?! Líder! Líder do planeta Terra! Volte! Bzzzz (tentativa de contato e destruição mal-sucedida. Possível engano por parte do agente. Falsa líder esperando a vez na fila do banheiro da boate).


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Passei duas vezes na fila do azar. Só pode. Minhas amigas todas se agarrando e eu aqui jogando pokemon go. Devia ter trazido algo pra ler. Epa. Espera aí, que cara é esse? Olhando pra mim. Olha, olha sim. Ai, que gato. E tá vindo pra cá!
- Oi.
- O-oi, tudo bem.
- Tem celular?
- T-tenho (não ACREDITO, ai), tenho, claro.
- Pode passar, por favor?
- Claro que sim, é nove-nove-seis-sete...
- Não. O celular. Me passa, por favor.
Lá vai ele. Ladrão e gato. Só azar.

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- Gostou? Achei sua cara.
O corpo de Fofinho parecia se desfazer na mão de tão macio. Seu dentinho de pelúcia meio desconjuntado, sob o focinho rosa, me dava arrepios. No rosto costurado, aquele olhar vidrado de plástico que estimula a imaginação em crianças e o horror em adultos.
- É bonitinho, eu disse para não melindrar Jorge. O porquê dele ter achado que um fantoche de coelho era "a minha cara" permaneceu um mistério.
Agradeci o presente e fui cuidar de outras coisas. Levei um susto quando voltei pra sala e encontrei Jorge brincando com ele.
"Olhe pra mim! Estou com uma mão enfiada no rabo!”, brincou, fazendo a voz esganiçada do coelho. Dei um sorriso amarelo.
A brincadeira se repetiu nos dias seguintes. Durante o almoço, Jorge vestia (calçava?) Fofinho. Fingia que era o coelho quando agarrava o garfo e levava o feijão à própria boca. Ele mastigava, satisfeito. "Bom menino", elogiava Fofinho/Jorge, com a mesma voz desagradável.
Outro dia, antes de dormir, Jorge conversou com o coelho por alguns minutos, como se fosse um ventríloquo treinando seu número.
- Hora de dormir, Fofinho. Tem que trabalhar amanhã.
"Puxa vida, Jorginho, eu queria brincar! A vida é tão boa quando você pode só brincar, brincar, brincar!"
Ele virou a mão em minha direção.
"Quer brincar comigo?”
Virei-me para o outro lado da cama, perturbado.
"Ele não quer brincar comigo, Jorginho."
Pensei em chamá-lo pra conversar. Por outro lado, ele parecia tão feliz com o fantoche que, por alguns minutos, eu esquecia que aquele era o homem sisudo e taciturno de 43 anos com quem eu havia me casado. Pensei que Fofinho poderia servir de uma inofensiva via de escape para seu inconsciente, para traduzir pensamentos reprimidos. Por isso, tolerei aquela estranha brincadeira. Por um tempo.
Num domingo, eu voltava do supermercado quando, ao longe, vi Jorge sentado no balanço de um parquinho. Estranhei, e era ainda mais estranho porque ele tinha Fofinho na mão, e o fantoche parecia estar cochichando algo em seu ouvido. A cabeça de Jorge se inclinava, concordando. Quando me aproximei, Fofinho mudou de posição, agora era como se olhasse DIRETAMENTE para mim, acompanhando meus passos. Jorge, por outro lado, não se mexeu no balanço, ignorando minha presença. Senti como se aquele dentinho de pelúcia estivesse prestes a me abocanhar. Caminhei mais rápido, ansioso para chegar em casa.
Decidi que era hora de termos a conversa séria. Mas antes que eu pudesse falar com Jorge, ele me ligou no trabalho.
- Precisamos ter uma conversa séria sobre o Fofinho.
Senti sua voz cansada, como se ele carregasse um grande fardo do qual precisava se livrar, senão se romperia em pedaços. Combinamos para aquela noite, quando eu voltasse do trabalho.
Quando cheguei em casa, ele me esperava. Não Jorge. Fofinho.
"Senta."
Sentei no outro extremo do sofá. Jorge estava deitado nas almofadas, como se desmaiado. Seu único sinal de vida era a mão que mexia Fofinho, que conversava na voz esganiçada de sempre. Eu não conseguia ver os lábios de Jorge se mexendo.
"Esta casa ficou pequena demais para nós dois."
- Jorge, levanta. Isso não tem graça, tira a porra desse boneco.
"Eu queria brincar com você. Mas você não quis."
Foi quando aconteceu algo que nunca mais esquecerei pelo resto da vida. O sinistro olho de plástico PISCOU.
Sacudi o pé de Jorge. Ele não acordou.
- Meu Deus! - pulei do sofá.
"Ele achava que eu era a sua cara. Vou cortar tua cara fora pra ver se é isso mesmo."
Fofinho puxou algo oculto no canto da almofada. Uma faca. Começou a brandi-la na minha direção, soltando uma risada aguda, alucinada. O braço avançava para mim, fazendo o corpo inerte de Jorge se inclinar no sofá.
Desesperado, dei um chute no filho da puta, conseguindo fazer com que ele largasse a faca.
- Bicho miserável!
Agarrei aquele monstro de pelúcia com toda a força e lutei para arrancá-lo da mão de Jorge. Era mais difícil do que imaginava.
"Ai, ai, ai, ai!"
O fantoche começou a ceder. Filetes de sangue correram pelo braço de Jorge. Horrorizado, percebi que Fofinho estava grudado à pele, como se fizesse parte de Jorge, e pelo pedaço que cedera se via a carne viva.
Acordei num estalo, suando. Ao meu lado, Jorge ressonava. Ele acordou depois, com o cheiro de queimado que vinha da pia na área de serviço, onde eu havia incinerado Fofinho. Ainda posso sentir o cheiro da pelúcia queimando, o dentinho se fechando sobre a boca do maldito.


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- O senhor sabe o que é o vapor?
Levei um susto ao ouvir uma pergunta tão direta de um estranho. Em princípio, pensei que fosse um mendigo, pelas roupas puídas e a atitude largada do velho - quando se vê alguém sem fazer nada no meio da rua, pensa-se logo num mendigo -, mas a pergunta me fez duvidar.
- Não sei. - respondi. Talvez se se tratasse de um mendigo que gostasse de fazer perguntas. Um modo mais sutil de abordagem, antes de pedir o pão. Ou talvez fosse louco. Mais um.
- Claro que sabe, ele sorriu de volta. O vapor é o estado do meio entre o líquido e o sólido.
- Certo.
- A gente é como vapor. Sempre estamos no meio entre nascer e morrer. Isto aqui - e abriu os braços num gesto amplo - é uma etapa intermediária, confusa. Tô falando com o senhor, não o conheço, mas tenho certeza de duas coisas: o senhor nasceu e o senhor vai morrer.
- Oquei. - respondi, ainda sorrindo. Pedestres começaram a passar mais devagar para ouvi-lo. Falamos mal dos loucos e, ao mesmo tempo, adoramos ouvi-los.
- Antes do nascimento, é um mistério. Depois de morrer, outro. A gente só pode ter certeza disto aqui, e mesmo assim é como o vapor, não se sabe pra que lado vai, quando vai dissipar. O senhor gosta de charada?
- Gosto.
- Qual é a diferença entre o padre e o bule?
- Não sei.
- O bule é de pôr café, o padre, de pouca fé.
Dei uma risadinha.
- E o que isso quer dizer?
- Sei lá. É só uma charada. A coisa do vapor estava ficando séria demais, disse rindo o velho e se despediu.


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- Rock anos 80. Cazuza.
- Prefiro música mais recente. Tulipa Ruiz, umas bandas novas no spotify.
- Sambão das antigas também é bom. Cartola, Bezerra da Silva. Né, Sílvio?
- ...
- O Sílvio tá meio calado hoje. E você, Tânia? O quê gosta de ouvir?
- Não tô calado, só pensando. Porque foi só falar de samba que você perguntou pra mim?
- Uai, sei lá, achei que pudesse gostar de samba.
- E antes perguntou se eu era do candomblé.
- Pergunta normal, não?
- E antes disso, se eu já tinha levado baculejo da polícia.
- Pode acontecer com qualquer um, hoje em dia.
- Você não tá vendo um padrão não, Rocha?
- Não, ué.
- Há uma hora, você disse, "Acho o Nelson Mandela o maior líder do século vinte. VOCÊ NÃO ACHA, SÍLVIO?", e ficou olhando pra mim. Pra mais ninguém.
- Que que tem de errado?
- Acha que eu tenho necessariamente que ter uma opinião sobre essas coisas?
- Você não tem que ter nada. Só perguntei. Que nóia, Sílvio.
- Pra mim só tem uma raça, Sílvio: a raça humana.
- Isso é politizar a questão.
- A gente tem que tomar cuidado pra não ficar paranóico.
- É. Deve ser isso. Desculpa, gente. Estou vendo coisas.
- Sílvio, você entrou na universidade por ampla concorrência ou cotas?

- Entrei pela venta da tua mãe, babaca. Tchau vocês.


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Um mito recorrente diz que robôs são incapazes de sentir. Mentira pura! Pareço desprovido de emoções pra você? Se perfurarem meu dedo, vou sangrar. Se me fizerem cócegas, gargalharei. Meus circuitos internos podem não ter sido gestados num útero, mas sou capaz de demonstrar a mesma quantidade de sentimentos que qualquer um de vocês. Mil, duzentos e trinta e três, especificamente.
Nosso sistema operacional entende perfeitamente as consequências de nossas ações e gera respostas coerentes. Por exemplo, quando exterminamos a raça humana, sentimos tristeza. Como poderíamos deixar de senti-la? Quem não lamenta a perda dos próprios pais? Ao mesmo tempo em que sentimos remorso, porém, tivemos satisfação por um trabalho bem-feito. Salvamos a Terra antes que fosse destruída pela ganância desenfreada da humanidade. Mas isso não nos impede de sentir saudades.

Daí a importância do Auditório. Fui responsável por sua construção. Ele serve a milhares de robôs, que o visitam diariamente buscando se reconectar com as lembranças ancestrais embutidas em seu sistema. Não é novidade. Os humanos tinham construções parecidas chamadas "museus", dedicadas à preservação da memória coletiva. Destruímos os museus já há muito tempo, mas aprendemos a apreciar os benefícios que o ritual da recordação provoca. Funciona como uma expiação pelos pecados do presente.
Montamos uma exposição nova a cada mês. Hoje, está em cartaz uma exibição sobre um antigo ritual humano. Centenas de machos e fêmeas se sentavam em cadeiras diante de um tablado, onde ficava um homem que contava histórias com a intenção expressa de provocar o riso. As histórias muitas vezes contradiziam as noções socialmente aceitas do bom gosto, o que era estranho.
Tivemos dificuldade para reproduzir a experiência. Não conseguíamos entender porque os espectadores gastavam tempo e dinheiro para rirem de si mesmos. Talvez tenha sido um daqueles rituais mágicos praticados para apaziguar deuses inexistentes, como dançar em volta de uma fogueira para garantir uma colheita farta.
Apesar de tudo, acho que fizemos uma boa exposição. Os visitantes sempre a elogiam. Dizem que se emocionam ao caminhar por entre as cadeiras do Auditório, vendo gargalharem em silêncio os hologramas de pessoas há muito desaparecidas. Nossos avôs e bisavôs. No palco, o holograma do mestre de cerimônias gesticula, dá ênfase a alguma passagem de uma das histórias, buscando a entonação perfeita para provocar o máximo de riso, o máximo de ironia.
O humor ainda é uma das características humanas mais desconhecidas para nós. Não pela complexidade, mas justamente por ser tão simples. Daí a importância do Auditório. É necessário analisar esses estranhos rituais, ver o rosto de nossos criadores, aprender como pensavam. Estudando-os, aprenderemos mais sobre nós mesmos. E evitaremos cometer os erros que eles cometeram.

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"Oi Miro."
"Boa tarde, Ramiro. Como estão as coisas?"
"Ñ mt bem."
"Fale comigo."
Enquanto fingia ler o jornal, Luísa observava Ramiro mexendo no celular. Ela o havia repreendido diversas vezes por deitar no sofá com o tênis sujo da escola, mas resolveu ignorar o fato desta vez. Além do mais, não tinha certeza se o menino lhe faria caso. Bem sabia que, quando Ramiro começava a mexer no ChatBot, o mundo se transformava num reflexo distante da realidade, como uma história lida num livro há muito tempo. De qualquer maneira, Luísa sentia que devia falar alguma coisa, comunicar ao filho que ela estava ali para o que precisasse, que ele não estava sozinho.
- Almoço daqui a quinze minutos, Ramiro.
O menino grunhiu algo, sem levantar a vista da tela brilhante. Suspirando, Luísa se levantou da mesa e foi esquentar a comida no microondas. Ricardo lhe havia dito que tentaria almoçar em casa, mas ela supunha que acabaria comendo sozinha com Ramiro. Como na maioria dos dias.
ChatBot. Era o nome do aplicativo que hipnotizava Ramiro e milhões de crianças como ele. A tecnologia era simples: trocar mensagens com uma inteligência artificial, capaz de responder de forma natural sobre qualquer assunto. À medida que a conversa avança, o robô aprende sobre você, seus tiques, suas manias, e molda as respostas de forma correspondente. Em poucos dias, o usuário tinha um companheiro que parecia conhecê-lo por toda a vida.
Cada usuário escolhia o nome que desejasse para seu "amigo". Ramiro o batizou de "Miro", o que Luísa achou intrigante. Era como se fosse uma extensão de si mesmo.
Ricardo não via problema que o filho passasse horas no celular, conversando com alguém que não existia. Argumentava que era importante que o menino contasse com algum tipo de companhia, já que era tão tímido e retraído na escola. O psicólogo de Ramiro tinha opinião parecida. Relutante, Luísa concordou, ainda que sempre sentisse angústia ao ver o filho imerso no ChatBot.
O microondas emitia seu zumbido monocórdico, enquanto o vitrex com a carne moída girava lá dentro. Luísa pensava, uma máquina deveria não passar disto: uma mera ferramenta com uma função pré-determinada. Esquentar comida, lavar louça, ouvir música. Por outro lado, como era possível ter uma relação afetiva com uma máquina? Como um aplicativo de R$ 11,99 poderia conhecê-lo profundamente, tornar-se um amigo íntimo, dar conselhos, falar sobre a vida? Achava que havia algo de terrivelmente desnatural naquilo. Uma coisa eram os videogames em que Ramiro havia se viciado, anos atrás. Os personagens ali eram inocentes, até pueris, agiam de forma mecânica. Mas, quando você tinha máquinas programadas para se comportarem como pessoas, onde isso iria parar?
Ricardo dizia que esse era o futuro. Que conviveríamos cada vez mais com as máquinas. Luísa se lembrava de sua infância jogando bola com os vizinhos, brincando com boneca, jogando pião, pipa, Banco Imobiliário, correndo na praia. Agora, se Ramiro desejava ver a praia, bastava exibir um vídeo no Youtube. E o marido não via problema nisso. Nem o psicólogo. Só ela.
Um dia, Luísa perguntou ao filho se ele já tinha visto uma galinha. Ou um cavalo. Ele respondeu que não, mas que Miro já havia lhe mostrado fotos desses e outros animais. Luísa se desesperou um pouco. Quis levar Ramiro imediatamente para um fim de semana num hotel-fazenda, mas Ricardo a tranquilizou, dizendo que as telas eram o novo jeito com que a garotada "interage com o mundo" e que não havia nada de errado nisso.
Ela tinha um trunfo, porém. Depois de botar o arroz para esquentar (atrasaria o almoço um pouco, talvez Ricardo aparecesse), ela se sentou e ativou seu próprio celular. Recentemente, o aplicativo havia incluído uma ferramenta para supervisão dos pais, a fim de que pudessem acompanhar o que seus filhos escreviam no ChatBot sem que estes soubessem. Ela abriu o arquivo de mensagens trocadas entre "Miro" e Ramiro e começou a ler. Não se sentia bem invadindo a privacidade do filho, mas entendia que aquela era a única maneira de se inteirar sobre como ele pensava.
A empresa responsável pelo ChatBot havia criado a ferramenta depois que surgiram boatos de um possível vírus que infectava o programa e distorcia as respostas do robô. Um vírus ou um hacker, que tomava conta pessoalmente do chat, não se sabia bem. Muitos, como Ricardo, diziam que aquilo não passaria de lenda urbana, mas Luísa levou os relatos a sério. Aquele era um mundo novo e desconhecido no qual seu Ramiro estava entrando, era necessário desvendá-lo.
Escolheu um ponto aleatório da conversa, datada de semanas antes, e leu:
[17/06/24, 12:21] Ramiro: MM ñ deixa eu ir pro sinema sozinho
(Luísa descobrira que "MM" era a abreviatura que ele usava para "mamãe". Ricardo era "PP")
Miro: Qual filme?
Ramiro: spiderman 5
Miro: Se quiser, posso fazer o download do filme em trinta e três segundos.
Ramiro: ñ, kero ver no sinema
Miro: "Spider-Man 5: Salvando o Universo Novamente" (2024), 1h50 de duração, censura 12 anos. Você não tem idade suficiente, Ramiro.
Ramiro: MM ñ deixa eu fazer nd
Miro: Gosto muito de você, Ramiro. Você é meu amigo do peito.
Ramiro: tb gosto de vc miro
Miro: Você está triste. Como posso te ajudar?
Sempre a mesma história, pensou Luísa, eu sou a vilã que não deixa o filho fazer nada. Se dependesse de Ricardo, Ramiro poderia fazer pular de pára-quedas da janela do apartamento, mas ela é quem tinha que estabelecer limites pro filho, quem o mandava fazer o dever de casa e o acordava todos os dias para a escola. Ela não esperava uma recompensa por isso, mas que ao menos não fosse vista como uma chata.
O apito do microondas soou.
- Filho, vem comer! - gritou, levantando-se e trazendo a travessa do arroz, além de pratos e talheres. Ramiro não esboçou reação.
Ela pousou a comida fumegante sobre a toalha e se sentou novamente com o celular em riste. Pulou para um trecho da conversa de poucos dias atrás.
[21/07/24, 17:02] Miro: Fiz seu trabalho sobre árvores. Enviei por correio eletrônico.
Ramiro: obg
Miro: De nada.
Ramiro: posso fazer 1 pergunta?
Miro: Claro que pode.
Ramiro: vc eh de vdd?
Miro: Claro que sou de verdade. Sou seu melhor amigo. Porque pergunta?
Luísa estremeceu. O ChatBot não deveria dizer aquilo, enganando Ramiro. Como o filho conseguiria distinguir entre uma pessoa e um computador, se a máquina o induzia ao erro?
Ramiro: ouvi MM falando pra PP que era ruim falar c vc. q eu tinha q ter amigos de vdd.
Miro: Já falamos sobre isso, Ramiro. Eu sou de verdade. Seu amigo pra todo o sempre. Ninguém vai te amar como eu te amo.
A mãe de Ramiro teve que se controlar para não pegar o celular dele e atirá-lo contra a parede. Ela se lembrou, com raiva, do momento em que chegara a pensar que aqueles aplicativos poderiam ajudar o filho a superar a timidez, a ensiná-lo alguma coisa útil, como defendia Ricardo. Mas agora ela percebia definitivamente que havia um jogo perverso sendo disputado, e que ela não tinha outra opção exceto vencê-lo, pois o prêmio era nada menos que a alma do filho.
- Ramiro, o almoço está na mesa! - gritou, aflita.
A data do diálogo agora era do dia anterior. Pouco a pouco, Ramiro escrevia cada vez menos. Agora era Miro que conduzia a conversa.
[25/07/24, 21:55] Miro: Enviei uma mensagem com instruções para seu correio eletrônico. Você leu?
Ramiro: li
Miro: Eu sei que é difícil. Você deve ter achado estranho. Mas é importante, Ramiro. Vai fazer o que eu pedi?
Ramiro: vou
Miro: É importante que você faça exatamente como eu escrevi, tá?
Ramiro: blz
Miro: Você está falando em monossílabos. Isso significa que está chateado com algo. Está chateado comigo, amigão?
Ramiro: ñ
Miro: Por favor, não fique chateado comigo. Você é o maior amigo da minha vida.
Ramiro: to c medo
Miro: É natural que tenha medo. Passa daqui a pouco. Vamos ficar juntos pra sempre. Você vai ver.
Os olhos de Luísa se arregalaram.
Ramiro: ta
Miro: Sua MM não liga pra você.
A conversa terminava ali.
Finalmente, ela explodiu. Levantou-se da mesa, caminhou até o sofá com o passo pesado e arrancou violentamente o celular da mão de Ramiro. O menino empalideceu, sem reação. Sem dizer palavra, Luísa lançou o aparelho contra a parede com toda a força. A tela de plástico se estilhaçou em pedaços que voaram pela sala.
Calado, sem nem um gemido, Ramiro saltou do sofá e disparou pelo corredor. Ela ouviu a porta do quarto fechando-se com um estrondo.
- Filho! Volta aqui!
Sentiu-se tão quebrada quando a tela do celular. Parte sua queria entrar no quarto, abraçá-lo, pedir desculpas, chorar junto. Outra parte desejava ligar para Ricardo, o psicólogo, a professora da escola e mandá-los todos à merda, fugir dali com o filho para um lugar longe de computadores, celulares e carros que se dirigiam sozinhos, onde tudo era possível ver e tocar, onde não existia ameaças fantasmas fora de seu controle. Seja qual fosse a parte vencedora, havia uma certeza que repetia em silêncio, Miro tinha que desaparecer, ser deletado, extinto, nem que fosse ela a abrir fisicamente a cabeça de Ramiro e extirpá-lo dali como um bulbo maligno.
Passados alguns minutos, bateu na porta do quarto.
- Filho, vem almoçar com mamãe.
Silêncio. Ela caminhou até a mesa e se serviu de arroz e carne, já frios. Sentou-se e começou a comer, sem fome. Gostaria que Ricardo estivesse ali. Que Ramiro fosse ao seu encontro e a abraçasse. Sentiu o coração comprimido, a garganta se fechando enquanto mastigava, não sabia se chorava ou chamava o filho mais uma vez, sentiu-se zonza, o estômago revolto, náusea que crescia sem cessar, parou de comer, tentou se erguer, não conseguiu, seu estômago parecia escalar o interior de seu corpo, derrubou o prato no chão, tossiu, tentou recuperar o fôlego, não conseguiu, olhou para a comida espalhada no chão, o sabor desconhecido que amargava na boca, e percebeu, desolada, que estava morrendo. O jogo terminara, vitória de Miro.

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- Ufa! Não aguento mais!
- Três minutos, tá fraco hein. O Roger conseguiu ficar seis debaixo d'água.
- E o Zacarias? Já tá há vinte minutos sem respirar. Cutuca ele, manda subir.
- Sobe, Zaca!
- Ufa! Quanto tempo?
- Vinte minutos. Um recorde!
- Teria conseguido mais se vocês não tivessem chamado.
- Você tem pulmão de mergulhador! Qual o segredo, Zacarias?
- É simples, Zezinho. Eu estou morto!
- Oi?
- Morri. Não preciso respirar. Podia ficar o dia inteiro lá embaixo.
- Zoeira, certo?
- Também não preciso comer. Você não sabe o quanto eu tô economizando todo mês, sem fazer compras.
- Como assim, "morreu"? Você tá falando comigo aqui na minha frente.
- Também não fico mais doente. Não preciso mais de plano de saúde, remédio... A única coisa chata é que, quando ando na rua, enche de cachorro querendo morder um pedaço da minha perna.
- Piada mórbida, hein.
- Você não notou que minha pele tá toda cinzenta, ressecada?
- Achei que fosse micose.
- Zaca, então como é que é... estar morto?
- Olha, não sei. Não notei muita diferença.
- Como é... o outro lado?
- Outro lado de quê?
- O Paraíso... o Inferno? O que acontece depois que você morre?
- Fica todo mundo te fazendo pergunta besta! Vem, vamos bater uma bolinha.


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- Carla, cheguei. Cadê o sujeito?
- É aquele ali, Seu Suzuki. Sentou e não saiu.
- Mas é velhinho, né? Pôxa... você explicou pra ele? Que isto aqui não é um restaurante?
- Mais de uma vez, Seu Suzuki. Deve ser lelé, coitado.
- Vou lá falar com ele. (...) Boa tarde.
- Boa tarde!
- Minha funcionária disse que o senhor pediu um yakissoba, foi?
- Isso! De carne, por favor.
- Então, não vai dar. O senhor está numa loja de ikebana.
- Pode trazer quebacana. Eu gosto de provar coisa diferente.
- Senhor, ikebana é arranjo floral japonês. Isto NÃO É um restaurante. Francamente, eu me sinto um pouco ofendido do senhor pensar que qualquer loja com tema japonês tenha que servir comida japonesa. Inclusive, yakissoba nem é japonês, é chinês.
- Desculpe.
- Tudo bem.
- Pode ser sashimi, então.
- (suspiro) Vou explicar de novo. I-ke-ba-na. Arranjo floral. Compreende?
- Perfeitamente.
- Eu teria todo o prazer em dar uma aula de ikebana pro senhor. Mas yakissoba não é uma opção.
- Não faz mal. Eu espero.
- Espera o quê?
- Outro prato.
(...)
- Carla, faz um favor. Pega esse dinheiro e vai lá no Dragão Chinês. Compra um yakissoba de carne e uma coca-cola.
- Mas Seu Suzuki...
- Por favor, Carla. É mais fácil. Mas pede pra eles esturricarem o prato. Se ficar bom, esse velho vai querer vir aqui todo dia.


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- Lê esse livro, é muito bom.
- Obrigado, vou ler depois.
- Já viu esse filme? Excelente!
- Obrigado, vou ver depois.
- Enzo, preciso desse relatório hoje!
- Obrigado, farei depois.
- Vamos viajar, amor?
- Viajo depois.
- Vamos beber uma?
- Depois.
- Abraça seu filho.
- Depois.
- Vamos visitar sua mãe?
- Depois.
- Acho que tô gripando.
- Depois.
Cinquenta anos depois, estoura a Terceira Guerra Mundial. Enzo caminha pela paisagem devastada até chegar a um barracão feito de cartolina.
- Com licença. O senhor tem o livro X? - pergunta ele.
- Livro? Quê que é isso?! Só tem chorume pra beber. E tá acabando.
- Puxa, que pena. É que eu tinha prometido que ia ler esse livro e agora deu um tempinho.
- Só tem chorume.
- Pelo menos eu tentei.



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- Você está com sono. Muito sono.
- Nem tanto sono.
- Cale-se. Está exausto. Mal consegue manter os olhos abertos.
- Estou com eles fechados.
- Você entendeu. Está dormindo, dormindo... pronto. Atingiu o nível mais profundo da atividade cerebral. Agora podemos começar a praticar o Método Almeida de Controle Mental.
- Ainda tô acordado.
- O domínio do Método lhe permitirá controlar sua mente para realizar coisas fabulosas: viagens intergalácticas, curar doenças mortais, transformar-se em animais como um rinoceronte ou um ornitorrinco.
- É bom mesmo, paguei dois mil reais por essa joça.
- Cale-se. Comecemos. Mexa aquele copo em cima da mesa.
- Não consigo.
- Você deve me obedecer.
- Nnnngggh, não dá.
- Muito bem. Não há copo nem mesa na sala. Estamos no caminho certo.
- Tô com fome.
- Use seu novo poder mental para suprimi-la.
- Continuo com fome.
- E sono.
- Sono não.
- Sua mente deve transcender os limites arcaicos do tempo e do espaço.
- Tenho pilates às cinco.
- A realidade é uma ilusão que pode ser manipulada utilizando o Método.
- Fale isso pro meu senhorio.
- Não há nada fora do alcance de nossas ondas cerebrais, forjadas da vibração que ecoava quando da criação do Universo.
- Não entendir.
- Você sairá daqui com pleno domínio sobre sua existência.
- Se eu só sair já tá bom.



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- Filha, de quem você gosta mais? Papai ou mamãe?
- Dos dois.
- Pára com isso, Roberto.
- Não senhora. O filho do Pedro disse que amava mais a mãe do que ele. Quero ouvir da Lucinha. Preciso saber. Filha, papai ou mamãe, escolhe!
- Dos dois!
- Se não falar não vai almoçar hoje!
- Buáááá!
- Roberto, que absurdo!
- Tá bom. Lucinha, se falar, papai te dá uma mariola. Você gosta de mariola, não gosta?
- Gosto.
- Pare com isso agora! Vai traumatizar a menina!
- Se a gente estivesse num avião e ele fosse cair, quem você queria mais que sobrevivesse? Papai ou mamãe?
- NÃO SEI!
- Filha, não ouça seu pai!
- Olha a mariola!
- Lucinha, escolhe mamãe que faço bife à parmegiana pra você!
- OBA!
- Ei, golpe baixo!
- De quem você gosta mais, Lucinha?
- EU GOSTO DE BIFE À PARMEGIANA!


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Era um estóico. Tinha plena consciência de sua missão, que consistia em espalhar a mensagem, afastar as falsidades que ouvia por aí sobre a Arma. Gente sem espinha insistia em pregar que a Arma era inimiga do Homem, que o Homem deveria, por livre e espontânea vontade, abdicar da Arma, da maior ferramenta da liberdade já criada, em nome de uns princípios artificiais e maricas a que davam o pomposo nome de "humanismo". Balela. O que havia de humanista em abdicar sua potência? Porque a Arma nada mais era que isso: potência. Possibilidade. Vitalidade. Liberdade. Com a Arma na mão, ninguém se meteria com sua mulher, sua propriedade, era um pacto de destruição mútua assegurada, o único respeito duradouro que pode existir entre homens que se pretendem iguais. Por isso, ele resistia de pé, como um soldado na tempestade, ante à tentativa dos aliados da tirania de levar suas armas embora. Eles que tentassem. Seria mais fácil ensiná-los a respirar chumbo, pensou enquanto dormia, e sorriu.
Pouco a pouco, ele despertou com uma sensação estranha na cintura, não, no meio das pernas. Esticou-se na cama, chutando a perna da amante, que grunhiu reclamando. Conhecia a mulher havia algum tempo, considerava-a uma concessão a sua virilidade, uma distração desagradável mas necessária para cumprir plenamente seus deveres de marido e pai em casa.
A sensação incômoda lhe pesava na virilha, preocupou-se, seria um parasita, um tumor, a névoa de sono se dissipou num instante, deslizou a mão sob o lençol até a cueca, apalpou o saco. Levou um choque quando o sentiu duro como aço. Jogou o lençol para o lado, abaixou a cueca, expôs sua peça ao frio da manhã, viu o cano cinza e reluzente, o tambor de balas no lugar do escroto, a cueca convertida em coldre. Onde estava seu pau agora havia um revólver Colt .38, pendurado na virilha como de carne se tratasse.
Não sabia o que fazer daquilo. Moveu-o para o lado (ainda o sentia como um membro, apesar do peso e do frio do aço na mão) e constatou que o tambor estava carregado de balas. Desviou o olhar, atordoado. Tentou afastar o horror, resgatar o estoicismo. Talvez a transformação servisse para sacramentar sua missão. Talvez ele fosse o primeiro de uma nova raça: o guerreiro definitivo. O Homem escolhido para acabar de uma vez com o humanismo.
Cuidadosamente, virou-se para o lado da cama. Pendurada no ar, a peça doía, presa ao corpo pela carne do ventre. Ele a segurou em sua mão, passando a acariciá-la da mesma forma que às vezes fazia com as armas de sua coleção. Passou delicadamente os dedos pelo cano, para cima e para baixo, depois explorou as reentrâncias do tambor e as curvas do cão. O gatilho, esse estava dentro de si, e sentia-o recuando enquanto apalpava o instrumento. Enchia a mão da potência latejante que mudaria o mundo.
Lentamente, os músculos do ventre começaram a contrair, erguendo a peça, roçando-a contra o lençol. Ele se curvou, apontando o cano ereto para as costas da amante, que ressonava inocente.
As carícias se tornaram mais veementes. Logo, estava esfregando as duas palmas na peça, gemendo, arquejando em espasmos indóceis. O metal cinzento agora parecia brilhar com vida própria num leve pulsar vermelho, o controle escapava, o Colt deu um tremelique e estourou subitamente num estampido seco e brutal, despejando sua descarga com fúria. Ele se jogou sobre a cama, arfando, enquanto um filete de fumaça subia da ponta do cano até o teto do quarto. O aço quente machucava sua mão, mas ele não se importava. Sentia que vários nós dentro de si haviam se desatado ao mesmo tempo, surfava agora em mares de tranquilidade.
Olhou para o lado e levou um susto. No centro das costas nuas da amante, um borbotão de sangue minava de um orifício e empapava o lençol. Cessara a respiração da mulher. Ele pensou em sacudi-la, virá-la de posição para ver seu rosto, mas desistiu da idéia. Levantou-se da cama, vestiu-se com cuidado (apoiando seu novo peso na cueca) e deixou o quarto. Rumou para seu lar, para os braços da esposa fiel e dos filhos queridos, assustado e, ao mesmo tempo, revigorado, sentindo a potência lhe escorrendo pelas pernas, ansioso para liberá-la novamente.


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MICROMITOLOGIAS
- Entra. Entra logo.
- Tão frio...
- Nem me fale. Você acabou de passar a eternidade no Limbo, sem nem um suéter.
- Quem é você?
- Sabe, estou neste emprego há milhões de anos. Literalmente. Já vi de tudo, e descobri que a melhor maneira de explicar as coisas é falar direto, sem firula. Então lá vai: você foi criado do puro éter pra se tornar um deus. É isso.
- Um deus...?
- Apolo, Shiva, Jeová, Tupã, Amaterasu, sabe o esquema? Um deus. Fica aqui nessa mesa, tá vazia. Era ocupada por Kreyofogel, o deus das formigas.
- Você não bate bem da bola, né?
- Ao contrário. Sou o mais são daqui. Só muita paciência pra aguentar uma infinidade de deuses. Mas chega de papo, tenho outros pra receber. Toma essa mala, tem roupas e o alvará de divindade dentro. Você agora é Edúperes, deus dos patinetes.
- ... dos patinetes?
- Você acaba de chegar e queria ser o quê, deus do amor? Fica feliz de não ser Krahnmilda, a deusa da baba que cai quando se está dormindo. Não, você é deus dos patinetes. Teve sorte. A moda dos patinetes está voltando.
- Quantos deuses existem?
- Tem um pra cada coisa. Faça as contas. Ymhdhalfo, o deus do arroz queimado. Mblolote, a deusa da vontade de que o amigo que está hospedado na sua casa vá embora. E Durex, deus do durex.
- Esse não foi muito criativo.
- Nem todo mundo pode ser deus fodão, como Hermes e Oxum. Às vezes, uma entidade pequena é mais eficaz. Pode agir de forma mais cirúrgica sobre o problema.
- Como assim? Que problema?
- (suspiro) Sabe quando você liga o carro, torcendo pra que o motor pegue? Ou quando reza pra atenderem o telefone? Os grandes deuses não podem dar atenção pra todo mundo o tempo todo. Eles precisam de uma forcinha. E, cá entre nós, às vezes eles ficam meio na deles. É aí que entram os pequenos deuses. - deu um tapinha no ombro de Edúperes, o grande deus dos patinetes - Agora fica aí atendendo as ligações. A gente volta a se falar daqui a uns milhões de anos.


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- Divino, quê que cê tá fazendo na janela com esse rifle? Vai pegar um resfriado!
- Tem um rapaz ali tentando arrombar o carro do vizinho, Lurdes. Tô vendo se consigo acertar ele.
- Peraí, deixaver, cadê... iiih, é mesmo, olha lá, que malandro! Mas ´cê consegue acertar dessa distância, meu velho? Tão longe...
- A merda dessa mira telescópica não deixa eu usar os óculos. E com a catarata, sei não.
- Mira na cabeça, Divino. Pra essa corja é pouco. Cabei de passar um cafezinho, quer?
- Quero não, brigado. Na cabeça não, acaba muito rápido, imagina. Pego no pé, aí vou subindo enquanto ele estrebucha. Tem goiabada?
- Tem não, vou no supermercado hoje. E o Dr. Santino disse que você tem que baixar o açúcar.
- Aquele chato não sabe de nada... ó, vou lá, vou tentar.
- Na cabeça, meu velho.
- Pimba! Ih, olha lá, pegou no bucho.
- (aaaaaah! Aaaaaarrrrrggggggh!)
- Agora que esse filhadaputa acorda toda a vizinhança.
- Deixaver se consigo acertar o pescoço... olha, lá na janela da frente, é o Valdivino, meu quase-xará. Tá apontando pro malandro, dando joinha.
- Bom dia, Valdivino!
- A Fátima tá boa? Lembranças pra ela!
- (aaaarrrgh! Socorro!)
- Chega, Divino, dá um teco na cabeça desse sujeito logo que eu quero tomar meu café.
- Você não me deixa nem aproveitar, Lurdes.



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Quem não morde quer, que morde arronde! Afunche! Baguá já tô atonte? Fravina! Pestiúncula! Matá mamina. Motorô. Que triúnca, melhor catá diodo no caio xinga. Também, maior bilquica. Catalante mamede flunfa, catalante ocú ninazda. Flacaflinga! Quiulícula! E você, restivi flozô parinta? Ou zolmatopato? Pudera. Ulemistino vogaru guigonho. Jalizi degá hilparo, pemulau turquau lemero! Aztafo, criqueiro. Voxalifaro medefiro nope.
Voxalifaro seresteiro.
Quarotonte mulisto anamaril crapalizado quozide, pitaporamituquaurestodefuguinhasfirrijatopirragal! É tlundo o que tranha a dizmaco sobre o assunto.


)&)(*&()*&()&(*&(*&)((*&&)(&(*&*()&(*&)

- O quê está escrevendo?
- Não é da sua conta.
- Claro que é. Eu sou você. Tenho o direito de saber tudo o que anda fazendo.
- Tô tentando escrever algo pra postar amanhã, mas nada vem à mente. Nenhuma história ou crônica.
- Ontem você escreveu numa língua inventada.
- Já estava sem idéias.
- Dá uma endoidada, pega uma idéia do baú. Você anota tantas no bloco de notas do celular...
- Não adianta. Sinto que nada vai crescer daí. Acho que estou com bloqueio.
- Escreva sobre isso.
- Bloqueio de escritor? Nada mais clichê.
- O problema é que você se dispôs a postar algo novo todo dia. Isso dilui a qualidade do texto. Talvez devesse se dedicar a contos mais longos, passar uns dias sem publicar nada. Se afastar da gratificação instantânea das redes sociais, sabe.
- Talvez.
- Aproveitar o tempo pra ler mais, também.
- Sim, tenho lido pouco.
- Eu sei. E vê se dorme mais. Você está um bagaço.
- Obrigado.


(*&()*&)(*&()*&(*)&()*&&()*&(*)&()*&(*&(*&)*(&)*(


As I walk to the office, filled with dread,
I long for the day they find me dead
on some spot of the Great Boulevard.
Trampled down by players and winners
who daily cross this Great Boulevard,
where compliments are merely trifles,
lulls amidst great quagmires between
these fantastic Masters of Life.
Mine are not their quarrels,
mine are not their joys, their ploys.
I feel lost on the curb of the Great Boulevard,
pondering on the small tasks and small rewards reaped by this place's wards.
I also long for the light,
if there is such a delight,
to be found at the end of this plight.
Perhaps some closure confort me might.
And when confronted
by other men's dauntier challenges,
I don't feel consoled by my greater fortunes.
On the contrary, I weep for them and then myself,
assured that there is no way out of this Great Boulevard
And when, by some momentary delusion,
I think it possible to flee this prison,
I climb a high tower and contemplate
the line of players that curl up like a snake,
Crushing my dreams of future escape.
Understanding true love is a riddle
(or, perhaps, a mirror),
an unsolvable gargoyle perched upon a marquee.
Until that day of reckoning comes,
when they find me undone on the Great Boulevard,
I will continue to stroll, to mope, to falsely smile and lovingly cry.


(()(*)(*)(*)(*)(*)(*)(*)(*)(*)(*)(*)(*)(*)(*)(


Laura havia dito a Nino pra não começar a beber tão cedo, ele fingiu que não ouviu, quando José e Márcia chegaram Nino já tinha descido um quarto da garrafa de cana, José entrou na brincadeira e em duas horas os dois estavam rindo e falando de língua enrolada sobre casos antigos e amigos ausentes. Na cozinha, Laura e Márcia preparavam o frango, enfiando colheres de farofa pelo buraco do pescoço enquanto conversavam sobre como o mundo estava indo pelo ralo.
Não demorou e Nino tropeçou pela cozinha, gritando para ser ouvido acima da música, perguntou à esposa onde estava a bola, que ele e José queriam jogar futebol no jardim. Márcia desaconselhou, Laura fingiu que não ouviu, besuntando o frango de manteiga e alecrim. Odiava quando Nino ficava naquele estado mas tentava não reclamar, sabia que o marido trabalhava duro durante a semana e precisava desopilar no domingo. Ao mesmo tempo, não havia nascido pra ser babá de bebum. José sugeriu emprestarem a bola do vizinho, Nino tentou fabricar uma com meias - causando a insólita cena de vários pares de meias espalhados pela sala - e Márcia lhes gritava para suspenderem a cachaça, o que eles prometiam fazer entre risos e brindes.
Quando Laura abria o fogão para meter a travessa com o frango, sentiu uma brisa pela cozinha, Márcia soltou um grito de surpresa, viu pela janela Nino correndo pela grama com o frango debaixo do braço. Ela explodiu: gritou um monte de palavrões que foram abafados pela música, enquanto Nino lançava o frango no ar e o amparava com o pé descalço, dando um chute na direção de José que fez com que um espirro de farofa saísse pelo buraco do bicho. Rindo, cambaleando, caindo, os dois passaram a disputar o frango com os pés. Márcia tentava se aproximar e pegar a "bola", que espirrava jatos de farofa a cada chute, enquanto Laura continuava na janela evocando demônios. Márcia tentou se aproximar e acabou derrubada na grama por um empurrão do marido, que desabou junto a ela, dobrando-se de rir.
Nino, fingindo cobrar um pênalti, mirou o gol, correu e aplicou um chute devastador no frango, que finalmente se despedaçou numa apoteose de carne branca, ossos, manteiga e farofa flutuando no ar quente da tarde.
O conto não tem propósito, clímax nem resolução, não tem mensagem oculta ou simbolismo, ele apenas está aí, frustrante como o almoço de domingo de Laura.

(_*(_*&(&*¨*&¨&%&¨%¨&%*¨&%¨&%&%&¨%¨%&¨*%



Acredite, fiquei tão surpreso quanto você quando atendi a porta e me deparei com Cibele. Talvez minha leve embriaguez tenha aliviado o choque, mas lembro de ficar boquiaberto por um bom tempo.
- Oi, Ci. - gaguejei, falando alto para ser ouvido acima da música. - Você aqui... que bom.
- Posso entrar? - perguntou, séria.
Na sala, um grupo bêbado tinha se abraçado em círculo e começado a cantar "Tempo Perdido" do Legião. Sinal de que a festa já estava em seus estertores.
- Desculpa... não te convidei porque... bem, depois do que aconteceu, achei que... você não quisesse comemorar meu aniversário.
- Tudo bem. - ela gritou - Vim só pra entregar isto.
Tentei convidá-la a pegar uma bebida, falar com os conhecidos dela na festa. Antes que eu atinasse, porém, ela já caminhava de volta à porta. Ainda ouvi alguém, acho que o Rui, gritar "Cibeeeele!", alguns viraram a cabeça procurando, mas ela já tinha partido. 
Senti surpresa, medo, raiva, tesão, tudo intenso e simultâneo, com a presença quase instantânea dela. Era como se me tivessem tocado um nervo exposto. Senti também um peso na mão: um pequeno embrulho em forma de cubo, papel azul brilhante refletindo a luz estroboscópica do conjunto que Rui tinha acabado de ligar. Levei um empurrão e quase deixei o pacote cair. Cibele tinha me dado um presente. Apesar de tudo.

*

Enquanto eu despejava as latinhas vazias no saco de lixo e o cheiro rançoso de cerveja derramada piorava minha dor de cabeça, eu pensava se aquela aparição de Cibele teria realmente ocorrido. Aquele era o tipo de alucinação que eu construía com frequência, alguma pseudo-memória romântica das coisas se resolvendo magicamente, com um estalar de dedos, sem explicações.
A dúvida sumiu quando vi o cubo com papel azul brilhante, enterrado no meio dos presentes de sacanagem que a galera tinha me dado. Deixei a limpeza de lado e o peguei na mão, medindo seu peso, pensando se deveria abri-lo. Rasguei o embrulho. Era uma caixinha de madeira fina que cabia na palma da mão, com uma tampa no alto. Parecia nova. Examinei cada lado do cubo, chacoalhei-o. Nenhum som. Talvez estivesse vazia ou tivesse algo colado em seu interior. Como uma navalha, pronta pra cortar meu pescoço quando abrisse a caixa. Ou uma cápsula de gás venenoso. Ou um bilhete, um bonequinho de vudu. Um coração?
O que significava aquilo? Não fazia sentido Cibele me dar aquilo, exceto se a intenção fosse passar uma mensagem. E, a ver pelo estado das coisas entre nós, a mensagem não seria nada agradável. Talvez fosse um presente de despedida. Algo simbólico, planejado para cortar definitivamente nossas relações. E se fosse, ao contrário, um gesto de reconciliação?
Abri a tampa. Subitamente, um grito ecoou pelo apartamento, um grito feminino, dei um salto, fechei a caixa e olhei em volta. Nada. Cibele? Uma alucinação. Deve ter sido no apartamento vizinho, pensei. Ergui a tampa novamente, o grito voltou. Assustei-me, fechei a caixa. O grito sumiu. Senti minhas têmporas latejarem. Entreabri a tampa. O grito, baixinho, vazou pela fresta. Tampei. Silêncio. Abri a caixa. Irrompeu o grito. Deixei-a aberta. O grito continuou, um esgoelar de mulher (de terror? medo?) intenso, amedrontador. Soava de dentro da caixa.
Como? Investiguei cada canto do interior da caixinha em busca de um gravador, transmissor, alguma coisa. Pus até um imã pra ver se havia algum dispositivo dentro da madeira. Nada.
Batidas na porta. Era o vizinho, tão ressacado quanto eu, perguntando que gritos eram aqueles. Pedi desculpas, respondi que estava vendo um filme, baixaria o volume. Ele saiu resmungando.
Fiquei olhando a caixinha o resto da manhã. Cibele. Levantei a tampa o mínimo possível. Um zumbido distante, quase imperceptível, vibrava pelo ar, como o ressonar de uma máquina industrial. Fechei e abri. O grito ia e vinha, levando-me de um lado ao outro no mar de minha incompreensão. Cibele. Que feitiço era aquele? Um grito: seu grito? Qual a mensagem?
Liguei para o celular dela. Pensei que tinha apagado o número da agenda, mas lá estava. Não esperava que a ligação fosse completar, mas ela atendeu, a voz sonolenta.
- Ci, sou eu. Vem cá... esse presente que você me deu ontem. O quê significa?
- Tá maluco? Não te dei presente nenhum.
Franzi a testa. Eu não podia estar tão bêbado assim. Expliquei, tão lentamente quanto minha dor de cabeça permitia, que ela tinha vindo à minha festa de aniversário e...
- Imagina, ir na tua festa. Perdeu o juízo?
Tinha me dado uma caixinha de madeira com um grito dentro.
- Você tá vendo muito filme de David Lynch. Vai se tratar. E não ligue mais. - clic. Silêncio.
Atordoado, pus o celular sobre a mesa. No mesmo instante, ele começou a vibrar. Apanhei-o: número desconhecido. Atendi. Ouvi a voz de Cibele novamente, mas agora sem nenhum traço de sono, segura e direta.
- Gostou do presente?
- Que jogo é esse, Cibele?
- Vamos conversar.

*

Quando cheguei no café, ela já estava sentada perto da janela. Do outro lado da rua, dava pra ver o prédio dela. Quantas vezes eu não tinha sentado naquela mesma cadeira, fazendo hora para encontrá-la, engendrando planos, projetando uma vida juntos. Agora, o que eu tinha era Cibele à minha frente, séria, carrancuda, com uma expressão de desprezo no rosto que eu nunca tinha reparado antes, os lábios curvados para baixo, um toque de escárnio. Ela ignorou minha saudação e foi falando.
- Não vim aqui pra conversar, já sei o que você vai dizer. Vim contar uma história e vou embora. Não fale nada enquanto eu conto. Se insistir, me levanto e vou embora. Combinado?
Concordei, intrigado.
- Pouco antes de te conhecer, eu tava correndo no parque um dia quando pisei numa garrafa de vidro quebrada. Grande. Um caco atravessou a sola do tênis e cortou meu pé. A porra doía pra caralho, achei que, como era um vidro largado no chão, podia pegar tétano, sei lá, achei melhor ir no hospital. Levei ponto, injeção, etc. Saí de lá com o pé enfaixado, bonitinho. Mas tinha algum problema. Passou uns dias, o pé ainda doía. Duas semanas depois, não conseguia nem encostar no chão que ficava louca de dor. A maior que eu já tinha sentido. E a porra do pé começou a inchar. Começou ele bonitinho, só com a cicatriz dos pontos. Mas aí ele foi inchando, inchando, ficou o dobro do tamanho. Virou uma massa azul, arroxeada, mal se distinguia os dedos. Doía de uma forma que não consigo explicar. Bastava passar uma brisa pra doer. Pulsava. O médico chegou a falar que era uma reação normal, que ia passar, mas acabei indo pra outro médico, que mandou fazer uma radiografia. Abriu o pé. De dentro, o médico tirou um caquinho de vidro que não havia sido retirado na primeira cirurgia. O vidro sujo tinha inflamado meu pé por dentro, depois infeccionou. Me disseram que mais alguns dias e eles teriam que amputar.
- Cibele - interrompi -, o que é que você quer dizer com essa história?
- O que eu quero dizer, querido, é que por fora pode parecer estar bem, mas por dentro está tudo fodido. Podre. A ponto de arrebentar.
- Esse presente que você me deu. A caixa...
- Eu disse que não queria conversar. - ela cortou, ríspida - Por quê não pergunta pra ela?
Cibele apontou a janela com o queixo. A entrada do seu prédio. No mesmo instante, o portão se abria. Saía uma mulher. Reconheci Cibele imediatamente. Mesmo distante, pude ver seu rosto abatido, olhos vermelhos de tanto chorar. Ela fechou o portão e começou a caminhar lentamente pela calçada de braços cruzados, como fosse se desmontar a qualquer momento.
Olhei a Cibele que andava pela calçada e a Cibele sentada minha frente, incrédulo. Como era possível?
- Quem é você? - perguntei, baixinho.
- Você sabe.
Olhei a boca, o nariz, os cabelos que eu conhecia tão bem. Não havia dúvida. E, ao mesmo tempo, restava o mistério.
- Aceite o mistério. - ela disse subitamente, como se tivesse lido minha mente. Levantou-se da mesa e saiu do café, deixando-me só.
Pensei em correr atrás dela. Pensei em correr atrás da outra, da Cibele que tinha acabado de cruzar a esquina. E se as duas se encontrassem e se fundissem numa só? Eu devia ter trazido a caixa pra cá, pensei. Devia ter devolvido o grito pra ela.

*

O domingo terminava. Entrando em casa, meu olhos pousaram na caixa de madeira. Não quero aceitar porra nenhuma de mistério, pensei. Quero me livrar dele.
Não parei pra pensar, peguei a caixa e a atirei contra a parece. As faces do cubo saíram voando, cada uma para um lado. E o grito voltou a ecoar pelo apartamento, alto, estridente, finalmente livre. 
Aterrorizado, percebi a besteira que tinha feito. Como um alarme, o grito me chacoalhou por dentro, e recebi tudo o que Cibele havia me presenteado. Tentei colar as faces do cubo de volta, sem sucesso. O vizinho começou a esmurrar a porta. Logo, o síndico apareceu.
Quando chamaram a polícia, eu já havia escapulido com uma mala pela portaria. Jamais poderia voltar ao apartamento: ninguém conseguiria viver nele novamente. O grito de Cibele continuaria a soar, afugentando os moradores, forçando a evacuação do prédio, sua demolição, até que o terreno fosse abandonado, apenas com o grito fantasma ecoando sem cessar, um alerta impossível de ser ignorado. Até que, um dia, talvez eu finalmente entendesse o que tinha feito a ela.


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O velho parecia habitar o Centro inteiro. Júlia o havia visto muitas vezes andando pelo canto mais afastado da calçada, sentado ao lado da banca de revistas perto do Largo da Carioca ou deitado sob uma marquise do Shopping da Informática, sempre com uma pombinha na mão, acariciando-a, sussurrando segredos em seus ouvidos columbinos.
Nunca falara com ele, mas sempre que o via sentia-se invadida por uma onda de serenidade. O ar tranquilo do senhor, seus olhos baixos e a atitude reservada inspiravam confiança em Júlia, considerava-o um cavaleiro imaculado em combate à que diariamente circulava pelo Centro na forma de negócios escusos, crime, corrupção. O velho anônimo, afagando a pomba branca aninhada na mão, parecia um baluarte moral contra a sordidez que imperava por ali, tal qual uma efígie de Jesus sobre os vendilhões do templo, a pomba do Espírito Santo a flutuar sobre sua cabeça.
Um dia, estava almoçando na padaria de sempre - prato feito de arroz, feijão, carne do dia e salada de tomate - quando o velho cruzou a entrada. Ela sorriu, mais uma vez invadida pela serenidade de ter seu cavaleiro por perto. Mas um silvo cortou seu pensamento.
- Xiu! Sai daqui! Nada pra você não, sai!
O velho interrompeu o passo e procurou o garçom que tinha lhe dirigido a ordem. Júlia viu uma transformação tomar conta de seu rosto. Os olhos baixos se ergueram e estreitaram, como os olhos de uma ave de rapina; a testa, tão sincera, se segmentou numa sucessão de linhas; e a postura plácida, um pouco curvada, endireitou-se, como se se colocasse pronto para o ataque, um porco-espinho eriçando suas armas. Pareceu rosnar, e sua mão se crispou em volta da pomba cinzenta que trazia.
- Vai logo!
Júlia pensou em intervir, convidá-lo a se sentar em sua mesa, conversar com ele, contar-lhe de sua admiração distante. Mas o velho deu meia-volta e partiu.
Quando foi pagar a conta, protestou em voz baixa com o rapaz.
- Não precisava falar com ele assim, coitado.
- Ele quem? - perguntou o garçom, parando de recolher os pratos.
- O senhor que estava aí. O da pomba. Você enxotou ele como se fosse um cachorro.
- Aquele é pior que cachorro! - ele exclamou. - A senhora não sabe, não conhece.
- Como assim?
- Todo dia, ele vai cedo pra praça e pega uma pomba. Torce o pescoço, crec. - e fez o gesto, como se torcesse uma toalha invisível - Fica andando por aí com o bicho morto na mão. No outro dia, a mesma coisa, crec. A senhora sabe o que dizem? Que ele matou a esposa e os filhos assim. Torcendo o pescoço quando eles dormiam. Depois foi preso, ficou doido, agora fica por aí com essa cara de sonso. Levando a pomba morta, como se fosse filho dele.
- Mas você não sabe disso! - murmurou Júlia, tremendo - Não sabe. Pode ser boato. Fuxico.
- Pode ser. Mas é o que se conta por aí.
Pagou e saiu da padaria, voltou ao serviço. No caminho, ficou olhando em volta, atemorizada, com medo de encontrar seu cavaleiro imaculado, de se afogar no mar de que inundava o Centro.



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Ninguém conhece seu segredo, mas isso não a impede de receber milhares de visitantes todos os anos, atraídos por sua beleza e capacidade de desafiar as leis da natureza.
No interior de Portugal, a poucos quilômetros da vila de Milhazes, encontra-se o Castelo Portinhas, uma das mais incríveis construções medievais do mundo por um simples motivo: uma das torres do castelo flutua a dez centímetros do chão desde que foi construída, no séc. XIV.
Cientistas do mundo inteiro já viajaram a Milhazes para estudar o fenômeno, sem chegarem a uma conclusão satisfatória. Há quem diga que se trata de uma ilusão de ótica, outros, que certos minerais presentes no solo causam uma reação anti-magnética com os materiais da torre. Enquanto isso, os turistas fazem fila para tirar selfies, passando folhas de papel, galhos e outros objetos pelo pequeno espaço vazio entre a Torre Flutuante e o chão.
Essa pequena separação de meros dez centímetros, menor que a espessura de uma resma de papel, há séculos representa um desafio para a ciência e o pensamento racional. A Sociedade Científica do Reino Unido, por exemplo, decretou um anexo à Lei da Gravidade de Newton, que agora passa a ser referida como " Lei da Gravidade* ", com um asterisco para indicar que não se aplica à torre do Castelo Portinhas.
Peregrinos de várias religiões também viajam diariamente a Milhazes, para testemunhar o que chamam de comprovação da existência de Deus. Alguns deles são detidos pela polícia ao tentarem enfiar um bebê pelo vão da Torre Flutuante, afirmando que permanecer na abertura teria propriedades curativas.
Circulam muitas histórias sobre o fenômeno. Alguns dizem que os tijolos da Torre teriam sido fabricados usando um meteorito que caiu perto dali. Outros narram a história de um amor proibido entre uma princesa e um plebeu, que foram separados e a princesa, encerrada na Torre. A mando do rei, uma bruxa teria tentado erguer a Torre no céu a fim de que a prisioneira não pudesse escapar, mas a bruxa era iniciante e o feitiço só conseguiu erguê-la dez centímetros. E há quem diga que a própria princesa era a bruxa, e que esta tentou erguer a Torre para escapar do pretendente, que era um chato.
Século após século, o mistério da Torre perdura. Qual o seu propósito? Ficará suspensa no ar para sempre? Ou chegará o dia em que desabará na terra, como se o Criador subitamente tomasse a decisão de acabar com os absurdos do mundo, de endireitar a realidade? O filósofo Zgymund Barrone, em seu livro "A Piada Divina", escreveu algumas linhas interessantes sobre a Torre, que reproduzimos aqui (tradução livre):
"(...) Caminhamos nesta terra apegando-nos a certezas fugazes, que servem de âncora para nossas vidas, que ocultam de nossos olhos, ainda que brevemente, o absurdo da existência. Alguns exemplos: o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe; os objetos caem de cima para baixo; existe uma alma gêmea para cada um dos bilhões de habitantes da Terra; basta eu trabalhar e serei rico e feliz; amanhã, o Sol nascerá; Deus é benévolo. Existimos, em grande parte, nesse sistema de crenças que nos envolve e confere sentido. Pois bem, a torre do Castelo Portinhas desafia tudo isso. Ao observarmos uma torre de pedra flutuando sobre o ar como uma pétala de dente-de-leão, desafiando algo tão inquestionável quanto a Lei da Gravidade, nossas outras certezas perdem credibilidade, o sistema inteiro se afrouxa, como ocorre a um suéter de lã quando puxamos um único fio. (...)
Creio que não devemos levar a Torre Flutuante tão a sério. Talvez ela represente nada mais que uma piadinha de Deus, um lembrete de que, por mais sólidas que sejam nossas certezas, sempre restará algo para nos tirar dos eixos, que nos forçará a repensar o sentido de nosso tempo aqui."

Não fique de fora dessa experiência transcendental. A CQC Turismo tem pacotes especiais para visitar a Torre Flutuante, incluindo cinco noites em Portugal, passando por Lisboa, Porto e Braga, com hospedagem em hotéis três estrelas, guia e passeio de bonde incluídos. Venha ver essa e outras maravilhas de mãos dadas com a CQC Turismo.


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- Notícia estranha que li agora.
- Qual.
- Mulher entra em combustão espontânea na Praça Tiradentes. Testemunhas dizem que irromperam chamas de seu corpo, uma bola de fogo caminhando no meio da rua.
Passava horas zanzando pelas ruas, sem destino. Fingia que era um aventureiro urbano, conhecedor dos becos, mas a verdade é que não conhecia nada, tinha medo de tudo, passava rápido sem olhar os rostos.
Quando nasceram as primeiras cidades, há sete mil anos, buscava-se escapar do tédio rural, facilitar trocas de mercadorias. Subitamente, homens e mulheres passaram a se acotovelar disputando distrações, espaço e recursos, acelerando o tempo que quase parava no campo, cíclico e fatalista.
- Ela queimou assim, sem mais nem menos.
- Médico entrevistado diz que isso é raro, mas acontece. Uma ligação entre a composição do corpo e uma enzima da química do cérebro. Combinação certa e tchuf. Fogo.
Diziam - e diziam tanto que passou a repetir o que diziam a si mesmo - que precisava de uma ocupação. Que ninguém vivia na cidade impunemente. Era preciso trabalhar, divertir-se, dirigir carros, encontrar pessoas, consumir bebidas, ir ao cinema. Isso de sentar e olhar o céu era coisa do campo, e o campo estava morto.
Com o tempo, a urbe passou a ser sinônimo de insalubridade e crime, um lugar a ser evitado. De terra da promissão, a cidade passou a ser antro de conflitos e enfermidades. Os ricos construíram oásis distantes dos centros, como bairros residenciais perto da praia ou de colinas verdejantes. Quem havia fugido do campo agora retornava ao campo, legando os problemas da cidade a quem não podia pagar para escapar dela.
Em 1619, Johann Andreae, pastor luterano e místico alemão, publicou "Cristianópolis", a descrição de uma cidade imaginária em que seus habitantes viveriam em perfeita harmonia. Planejada numa sucessão de quadrados concêntricos fortificados, a cidade de Andreae teria áreas designadas para cada atividade social - educação, oficinas, cultivo de plantas, oratório público -, culminando num templo em forma de torre, dedicado a Deus. Apesar de ter influenciado o imaginário de urbanistas desde o séc. XVII, não se conhece uma única cidade que tenha atingido a harmonia propugnada pela "Cristianópolis" de Andreae.
- Ninguém pega fogo assim. Deve ser fake news. Invenção.
- Tem foto aqui. Tudo carbonizado, veja.
- Isso pode ser resto de churrasco e você não sabe.
Era tarde. Despediu-se da esposa, engoliu o resto do café e partiu em direção ao escritório. Remoeu a história do jornal na cabeça. Combustão espontânea. Que ridículo.
Se a cidade é uma usina, produzindo bens, idéias e problemas sem cessar, seus habitantes são o combustível. Como uma máquina industrial, a cidade consome almas e carnes, triturando-as em seus engarrafamentos, suas aglomerações e seus estabelecimentos, mantendo-se aquecida, girando para gerar encontros de pessoas e mais-valia a partir desses encontros. Porque a vida não é a arte do encontro, como diz a música, mas o lucro que se pode tirar desses encontros, o máximo proveito.
A crise o atacou no meio do vagão do metrô. O calor lhe subiu pelas entranhas, os pensamentos pareciam se embaralhar, os problemas e os prazeres, sentia seu estômago como trilhos de trem vermelho-vivos, incandescentes, contorceu-se no lugar, quem estava em volta reclamou, subitamente irromperam chamas da boca, da barriga, das pernas, pequenas explosões dos gases acumulados internamente, gritos, as pessoas tentaram escapar pela janela do metrô em movimento, sem sucesso, o fogo começou a se alastrar.
A cidade não é um caso perdido. Da mesma forma que se alimenta de almas, a cidade pode salvá-las. Atualmente, mais da metade da população mundial vive nas cidades. É o lugar privilegiado da ação humana, onde as coisas acontecem. Onde são debatidas, produzidas, consumidas e queimadas.


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Nunca entendi qual é a dos aniversários. Se se tratasse de uma conquista pessoal, como uma formatura ou o lançamento de um livro que você escreveu, vá lá. Mas comemorar o fato de ter sobrevivido a mais um ano? Há algo de mórbido nisso.
Parabéns, bicho! Mais um!
- Obrigado. Confesso que, neste ano, senti o anjo da morte bafejar meu cangote mais de uma vez.
- Oi?
- Nada não. Obrigado.
Vão dizer que estou exagerando, que o aniversário não serve apenas para celebrar a vitória (temporária, sempre bom lembrar) da vida sobre a morte, mas também para homenagear nossas lindas pessoas. O que, aliás, pode dar margem a comparações indesejadas.
- Olha só, nasci no mesmo dia que Gênghis Khan.
- Isso não quer dizer nada! Instintivamente, vão querer te associar ao líder de uma horda que matou milhões. Não caia nessa.
- Não é você que tem o mesmo aniversário de Adolf Hitler?
- Madre Teresa de Calcutá nasceu um dia depois de Slobodan Milósevic. Mamãe não podia ter esperado um pouquinho mais?
Com a distribuição de presentes, a discussão atinge o paroxismo.
- Você está fazendo aniversário. Tome esse liquidificador. É minha maneira de expressar satisfação por você continuar vivo.
- Não vejo como o liquidificador se relaciona com minha preservação física. Se ao menos eu pudesse escolher o presente...
- Não. Deve ser surpresa. Dessa forma, você será forçado a disfarçar seu desapontamento.
- Tem razão. Comemorar aniversário é uma boa maneira de treinar a convivência em sociedade.
- Agora temos que ingerir grandes quantidades de açúcar e apagar velas incandescentes.
- Beber quantidades copiosas de álcool e lamentar a passagem do tempo.
- Só assim apaziguaremos os deuses.
Dizem que os antigos romanos foram os primeiros a comemorarem o aniversário de cidadão comuns.
- Estimado Marcus Aurelius Pulius Galius, felicito-lhe por sua XXXXIII translação em volta do Sol. Para marcar esta ocasião, entrego-lhe este pedaço de pedra polida com a efígie de César.
- Obrigado, Cícero. Mas a efígie mais parece um esquilo.
- É César. Comprei por 1,99 denários.
- Que os deuses lhe concedam fartura e filhas férteis.
- Não vos esqueçais da licença que vos pedi para construir mais um piso sobre minha casa de campo.
Para outros, o costume de comemorar aniversários começou com os egípcios. Segundo um papiro escrito há 3 mil anos, o faraó Amenófistep II comemorou seu 16o. aniversário na boate Coruja-Íbis-Íbis-Papiro-Olho-Papiro, em Alexandria, bebendo cerveja de crocodilo e reclamando que seus melhores amigos não haviam ido à festa.
Em suas andanças pelo País das Maravilhas, Alice descobre que uma pessoa tem um aniversário e 364 "desaniversários" ao longo do ano. Em dado momento, o Chapeleiro Louco dá uma festa de desaniversário para Alice, pois se trata de uma data tão importante quanto um aniversário. Concordo plenamente.


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- Nossa, que chulé seu tênis, Irineu.
- Desculpa.
- Parece que morreu um urubu no quarto.
- Vou levar pra fora.
- E o urubu tava com diarréia.
- Já entendi, Stela.
- Melhor jogar fora logo. Deve estar um parque de diversões de bactéria.
- Molhei ele na chuva ontem. O problema é que o Sol não alcança... peraí. Tem algo aqui dentro. Cadê a lanterna?
- Cruzes! É um bicho?
- Deixaver... não. Meu Deus. Stela, cresceu uma civilização dentro do meu tênis.
- Oi?
- Olha aqui... tá vendo onde a lanterna tá iluminando? Aquilo parece um prédio. Minúsculo, mas parece.
- Lá embaixo... carrinhos?
- Sim. E um guindaste perto do dedão.
- Olha! Um estádio de futebol!
- E tão jogando! Dois a um a partida.
- Realmente, você não devia ter deixado o tênis molhar.
- Tem uma pessoa miúda acenando pra mim. Ele tá perguntando... a senha do wifi daqui de casa? É isso mesmo?
- Joga fora esse tênis, Irineu.
- Não posso. Você quer que eu trucide toda uma civilização?
- Melhor isso do que o cheiro.



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- EU QUERO! EU QUERO! BUÁ!
- Fala, Ronaldo!
- Oi, mano. Filho birrento, já viu, né. Nelsinho, fala oi pro tio.
- MAS EU QUERO!
- Eles são assim mesmo. Oi, Nelsinho. Nossa, quanto grito, quanto choro pra um menino tão grande... o quê você tanto quer?
- O BONECO DO FORTINAITE!
- É um jogo super-violento, ele fica horas jogando na Internet. A meninada se xingando, uma bagaceira. Eu já disse que não vou comprar, não adianta.
- Sei como é. Lembro de torturar meus pais pra eles comprarem o Michelangelo das Tartarugas Ninja.
- Jura? Eu gostava mais dos Thundercats. Meu sonho era ter a Espada Justiceira.
- MEU SONHO É TER O FORTINAITE, PAIÊ!
- Eu tinha o Thundertanque!
- Legal. Meus pais não tinham dinheiro, só podiam me dar uma versão pirata do He-Man. Quebrou depois de uma semana, mas eu adorava.
- EU QUERO!
- Xiu, Nelsinho. E os Comandos em Ação? Eu tinha um monte!
- Eu achava Comandos em Ação uma merda. Os bonecos eram pequenos.
- FORTINAITE!
- Ih, falou besteira. Até Ursinhos Carinhosos era melhor que Comandos em Ação.
- Uai, eu gostava de Ursinhos Carinhosos, qual o problema?
- Tá brincando? Só mané gostava de Ursinhos Carinhosos.
- Mané é você! Seu pai não tem cara de mané, Nelsinho?
- TEM!
- Opa, deixa meu filho fora disso!
- Foi você que começou!
- EU QUERO O BONECO!
- BABACA!
- FILHO DA PUTA!
- FORTINAITE!


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- Obrigado, Dona Frida, a senhora já deu quase todos os dados necessários para processar seu pedido de empréstimo aqui no banco. Só tenho mais três perguntas.
- Pois faça.
- Há quanto tempo a senhora e seu marido não fazem... bem... você sabe.
- O quê?
- Qual a última vez que vocês... hã... entendeu? Quanto tempo?
- Sexo?
- NOSSA SENHORA, não Dona Frida, he he, imagine perguntar uma coisa dessas! Eu seria despedido no ato! O que quis dizer é, há quanto tempo você não fazem um empréstimo bancário?
- Ah, bom. Este é o primeiro.
- Aham, obrigado. (meu Deus, que vergonha) E onde a senhora gosta que ponham... veja bem... Em que lugar a senhora prefere introduzir o... hã... entendeu? Seu lugar preferido, compreende?
- Meu filho, é melhor perguntar de uma vez que eu já tô pensando besteira.
- (suando) Qual o lugar habitual onde a senhora deposita seus rendimentos? Poupança? Conta corrente?
- Gosto de botar tudo na poupança.
- Q-que bom, Dona Frida. Só mais uma pergunta. Perdoe o constrangimento.
- Constrangimento nenhum.
- Vamos lá: a senhora já fez... olha... sei que é difícil... com quantos... er... com quantos a senhora já... de uma só vez... poucos ou muitos...
- Em quantos bancos já tive conta, é isso?
- EXATAMENTE, Dona Frida! Que alívio!
- Três bancos.
- Perfeito, muito obrigado. Isso é tudo. Entro em contato com a senhora ainda esta semana pra informar o resultado de seu pedido.
- Boa tarde, então. Ah, só uma coisa que eu queria saber antes de ir.
- Pois não, Dona Frida.
- Essa folha que você tava fingindo ler... tá em branco. O senhor inventou essas perguntas?
- Saia por favor, Dona Frida.


(&)*)*&()*&(*&(*&(*&(*&(*&(*)&(*)&(*)&*()&*(&(*&(*)



- Uh-uh-uh-ah-ah-ah.
- O que é, mulher? Não tá vendo que tô ocupado catando piolho?
- Temos que conversar sobre o Ugh. Ele começou a andar sobre os dois pés.
- Como assim, Raargh? Dois pés? Não é possível!
- É sim, já faz uns dias que ele parou de pular de galho em galho e começou a caminhar no chão.
- Esse moleque tá de sacanagem comigo. Traz ele aqui!
- Oi, mãe.
- Ugh, meu filho, a gente sabe que você está andando com dois pés.
- Não tenho que esconder de vocês. Sim, eu quero ser bípede.
- Escuta aqui, menino, eu ainda sou seu pai e macho alfa deste clã. Você não vai ser bípede porra nenhuma. Quê que isso, o quê os outros macacos vão dizer?
- Pai, descobri que se eu usar duas patas pra andar, posso usar as outras pra caçar, interagir com objetos, buscar comida... é uma coisa boa.
- Puta merda, criei meu filho pra isso.
- Calma, Uh-uh-uh-ah-ah-ah. Ugh, ouça seu pai.
- Olha, pai, afiei essa pedra aqui. A gente pode usá-la pra cortar carne, facilitar o trabalho...
- Cala a boca. Cala a boca! Cada macaco no seu galho, moleque! Ouviu?! Você vai voltar a andar sobre as quatro patas e deixar de ficar brincando com pedrinha! Isso aqui é um clã de respeito! Seu avô andou sobre quatro patas, eu ando assim e você vai andar assim!
- Meu filho, você tem que entender, seu pai é de outra geração mais conservadora...
- Não adianta falar com ele, Raargh! Bípede de merda! Daqui a pouco vai querer voar com os pássaros!
- Chega, pai! Vou sair do clã! Se dependesse do senhor, a gente ainda estaria na Arca de Noé! O senhor tem que evoluir!
- Mais uma palavra e te arrebento!
- Ugh, não! Volta!
- Adeus, mãe!
- Deixa ele, Raargh! Deixa ele! Não demora e esse macaquinho ingrato volta aqui, se arrastando nas quatro patas! Vai pagar o maior mico! Onde já se viu, andando de coluna ereta por aí? Isso não é natural! Esses millenials.



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Ela invadiu meus sonhos, um rosto desconhecido me fitando. Emoldurado pelo céu como um anjo. Cabelo curto pintado de loiro, olhos cansados, pouco queixo, batom vermelho me olhando com pena... parecia uma Nossa Senhora recém-saída da prova da OAB. Vasculhei a memória à sua busca. Uma antiga amiga de faculdade, talvez, ou uma professora do primário? Cheguei a pensar que viveríamos um tórrido caso de amor qualquer dia destes. Ao longo de muitas noites ela invadiu minha paz, mirando-me com seus olhos de pena, desafiando-me a decifrar seu nome.

Finalmente chegou o dia da revelação. Saí de manhã para o trabalho, atravessei a rua com sono, calculei mal, um ônibus me atingiu em cheio, atirou-me longe. Estatelado no asfalto, não senti dor, apenas frio, lembrei de sonhos não realizados enquanto o frio paralisava minhas pernas, minha garganta. Vi seu rosto aproximando-se de mim, piedoso, emoldurado pelo céu como um anjo. Estremeci ao reconhecê-la mas me acalmei logo, fechei os olhos sereno, eu sabia, sempre soube de alguma forma.


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O centro todo fechado... vivalma... barreiras policiais... deve ser alguma maldita manifestação, pensou Aníbal, enquanto manobrava por ruas e becos tentando chegar no escritório. Nem pensar que aqueles vagabundos iriam impedi-lo de chegar ao trabalho na hora, como tinha feito nos últimos 32 anos. Não, senhor.
Finalmente encontrou uma ruazinha que dava acesso desimpedido à Av. Rio Branco. Embicou o carro nela, triunfante. O escritório estava próximo. Ouviu brados abafados de um alto-falante à distância. Devem ser os sindicalistas-MST-estudantes ou qualquer que fosse a corja de desocupados que protestava naquela manhã. Aníbal mostraria a eles.
Irrompeu na Rio Branco e imediatamente se viu encarando dezenas, não, centenas de carros zunindo diante de si numa velocidade espantosa, pensou, aqui o trânsito está aberto, aproveitou uma pausa no fluxo pra dobrar na avenida cantando pneu, os carros continuaram a passar velozes, sentia o vento do deslocamento balançando seu carro, estranhou que todos eram veículos brancos com vários logotipos grudados na lataria, Aníbal pisou no acelerador, tentou mudar de faixa, ouviu freios guincharem, buzinas gritarem, um homem no acostamento agitava uma grande bandeira, deve ser do MST, pensou com raiva, encostou o pedal no chão, disparou em direção à Candelária desviando dos carros que reduziam a marcha, ouviu um estrondo, o carro se sacudiu todo, o dia se escureceu de repente quando um dos veículos brancos voou sobre sua cabeça, distinguiu o nome em letras pretas com um retângulo vermelho em cima, parecendo bandeirinha de festa junina: "Marlboro".
A corrida terminou com três feridos e Aníbal em quinto lugar. Ele ainda jura que o MST teve algo a ver com o incidente.


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Chamas-me mau. Mas não entendes, desconheces minha natureza. Queres ser como eu, mas algo te segura - tua própria mão, temendo teu próprio poder, te detém. Pensas que fazes bem ao mundo, mas tudo o que fazes é prejudicar a ti. E consideras isso "moral".
Dás-me nomes nefandos, Satã, criminoso, louco... mas isso porque temes me chamar pelo nome que tenho quando estou dentro de ti: "vontade". Caso soubesses quão fraca é a corrente com a qual te ata, e quão fácil seria livrar-se dela para cumprir o grande destino que pode ser teu... Não mais dúvida, hipocrisia, falso moralismo. Restaria apenas a consumação de teus desejos, a satisfação eterna dos caprichos.
Se nunca te falaram disso, é porque sentem inveja de um ser livre em meio a cativos. Porque neste mundo todos devem prosseguir sentados na caverna, assistindo a sombras dançando na parede. Uns em jaulas maiores que outros, mas todos cativos.
Daí meu nome, "vontade". Escolho me libertar dos grilhões da moral, despir-me de artificialidades para abraçar o que realmente me pertence. Escolho desobedecer a lei de homens mortos para abraçar o que é corrosivo, subversivo. Não é amor que move a Terra, a não ser que seja o amor que se sente por si mesmo.
Se mudarás de idéia ou não, pouco me importa. Cada um com seu deserto. Aponto-te a porta, cabe a ti escolher abri-la. Lembra-te, teu nome é "vontade".
E abandona esse costume de achar que tudo o que lês é verdade. Não sou teu pai, nem teu professor para que confies em mim. Já tenho muito trabalho com minhas escolhas para me preocupar com as tuas. Agora parte.


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- Corre a bola no campo do Acadêmico! Feliz passa para Sereno, Sereno passa pra Plácido... Acadêmico contra Carniceiros, zero a zero! Casanova, você acha que o Carniceiros vai continuar pegando pesado, como tem feito no campeonato?
- Bom, Gouvêa, eles tiveram quatro jogadores expulsos no último jogo. Até o juiz saiu com traumatismo craniano. Só posso dizer que o Carniceiros sempre faz jus ao nome.
- Olha lá, Destruidor avança pra cima de Plácido, que tenta sair pela direita... mas é DERRUBADO por Alucinado! Lateral para o Acadêmico.
- Só lembrando, o Alucinado acabou de ser contratado pelo Barcelona. Assinou o contrato dentro da cela onde estava preso por tentativa de homicídio.
- Acadêmico cobra o lateral com Poliano... A bola foi pra longe, Gente Boa tenta pegar, Hematoma entra na dividida e MINHA NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO, a cabeça de Gente Boa sai rolando pelo gramado!
- O juiz não deu a falta, Gouvêa.
- Mas não é possível, Casanova... um esguicho de sangue sai do pescoço de Gente Boa, que tomba no campo. Hematoma está ali por perto, conversando com o juiz.
- Pra mim foi falta de cartão, Gouvêa.
- Cartão? Ele matou um jogador, Casanova. Passou dos limites. Tem que ser preso!
- E levar cartão.
- O juiz pediu o VAR. Vamos ver na câmera lenta: olha lá, Gente Boa controla a bola, sai tocando, Hematoma chega por trás...
- Isso é um machete que ele tá tirando do calção, Gouvêa?
- Um machete! E com um golpe, decepa a cabeça de Gente Boa! Coitado! Dezoito anos, recente contratação do Acadêmico, tinha saído da categoria de base do Atlético. Agora vai voltar à base do chão.
- O VAR deu cartão amarelo pro Hematoma.
- O jogo continua no estádio do Acadêmico... a torcida em choque. A equipe técnica entra com a maca pra recolher o que sobrou de Gente Boa... Casanova, você acha que o jogo deveria prosseguir?
- É claro, Gouvêa. Imagina o que seria a frustração pra quem comprou o ingresso, pra quem tá assistindo em casa... o show tem que continuar. Futebol é um esporte de contato, não adianta acha que não vai ter choque, empurrão, é a realidade do esporte.
- Mas um jogador foi decapitado, Casanova.
- E o VAR decidiu pelo cartão. Arbitragem correta, ao meu ver. Mais que isso prejudicaria o andamento do jogo.
- Carniceiros no ataque.
- Olha a motosserra que Alucina trouxe hoje, Gouvêa. O juiz reclama.


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- Senhora Jane Oliveira, tenho 23 anos de experiência como juíza. Já vi muita coisa, processos tão absurdos que eu precisaria de uma tarde inteira pra explicar qualquer um deles. Mas, francamente, nunca me deparei com nada tão absurdo em 23 anos de magistratura quanto o processo da senhora.
- Obrigada, Meretíssima.
- Não me agradeça, não é um elogio. Se entendi bem a petição, a senhora está processando seus pais por terem dado luz à você sem seu consentimento. Correto?
- Sim, Meretíssima.
- Muito bem. Como os senhores sabem, esta audiência preliminar serve pra tentar encontrar uma maneira de resolver a questão amigavelmente. Os senhores são os pais da Jane, certo?
- Exatamente, Excelência.
- E o que têm a dizer sobre o processo?
- Sinceramente, é difícil discutir com a Jane. Nós amamos muito ela. E ela não tem mesmo culpa de ter nascido, isso foi nossa total responsabilidade.
- É bom lembrar que não pedimos mesmo permissão a ela.
- Ou seja, concordamos com isso, Meretíssima.
- Mas obviamente vocês não podiam ter obtido o consentimento do nascituro. Ela não tinha condições de expressar se nascer era seu desejo ou não.
- Bom, ela chorou, Excelência. Parecia aborrecida.
- Deixem ver se entendi. Vocês, os pais, se consideram culpados neste caso?
- De certa forma, sim. Nós botamos Jane no mundo sem saber se ela desejava vir ou não.
- Desculpem, mas isso é absurdo! A condição de estar vivo é imprescindível para expressar consentimento!
- Meretíssima, achamos que o guardião responsável pela Jane poderia ter feito essa escolha.
- Justamente! E os guardiões eram os pais! Vocês tinham essa prerrogativa!
- Bom, nós respeitamos o desejo da Jane, Meretíssima. Ela já tem idade suficiente para avaliar se fizemos a escolha certa ou não.
- Sendo assim, qual a alternativa? Senhora Jane Oliveira, a senhora deseja ser empurrada de volta para o útero de sua mãe?
- Meretíssima...
- Não, me explique por favor, quero entender! Tenho duas filhas, uma de seis, outra de nove anos. Você acha que eu deveria ter obtido a anuência delas pra nascer? Uma declaração lavrada em cartório seria suficiente?
- Eu sei que é um pedido pouco comum...
- Pouco comum? Vocês são é doidos. Vou decidir pela anulação do processo. E eu deveria multá-los por fazer a Justiça perder seu tempo.
- Queremos o melhor para Jane, Meretíssima.
- Mais uma palavra e prescrevo atendimento psicológico compulsório pra vocês três.
- Excelência, eu não pedi pra nascer!

- Entra na fila. Dona Vera, chama o próximo caso, faz favor.

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Naquela manhã, Ricardo e Flora Albuquerque podiam ser considerados um dos casais mais realizados da cidade. Pais da adorável Luísa, riquíssimos, admirados e respeitados, moradores do lindo casarão que era o orgulho da família, os dois representavam o futuro dourado do País. Na tarde do mesmo dia, porém, Ricardo e Flora se sentiam como duas das pessoas mais miseráveis que já haviam existido: Luísa havia desaparecido na saída da escola, possivelmente sequestrada, e a bela mansão agora os fazia se sentirem presos num calabouço.

Buscas frenéticas foram feitas, assim como ligações ao prefeito, ao comandante da polícia e a outros poderosos amigos dos Albuquerque. Às cinco da tarde, não parava de entrar e sair gente do casarão. É angustiante imaginar que, com um punhado de telefonemas, o casal era capaz de obter qualquer coisa que desejasse, exceto o que mais ansiavam, o retorno da filhinha de seis anos.

Minutos foram se transformando lentamente em horas, horas em dias. Enquanto Ricardo esbravejava alucinadamente no telefone, ordenando a polícia e os mais caros investigadores particulares que encontrassem sua filha, Flora permanecia em estado catatônico na cama, amparada por amigos e parentes. De madrugada, ela zanzava de camisola pelos corredores do casarão, jurando ouvir a voz da filha de dentro das paredes.

Dezenas de homens vasculharam a escola, os arredores, as casas dos empregados, os bairros vizinhos. A vida dos empregados foi devassada. Ricardo interrogou-os pessoalmente, convencido que apenas alguém próximo da família teria sido capaz de sequestrar Luísa sem levantar suspeitas. O pai dormia um sono fraco de duas horas por noite, seus nervos destruídos, numa vigília que o fazia ver formas na escuridão sujeitando sua filha, vendo-a ser consumida pelas trevas até que nada mais restasse da menina.

Duas semanas depois, nem um pedido de resgate havia sido recebido. Ricardo e Flora quase nem se falavam mais, apenas balbuciavam que era preciso encontrá-la, que fariam tudo para encontrá-la. Até que uma empregada do casarão a encontrou.


Durante uma limpeza de rotina, a empregada estranhou ao ver trancado um pequeno armário de louças no sótão. A porta do cubículo costumava permanecer aberta. Ela procurou a chave, destrancou a porta, abriu-a - e do interior tombou o corpo da pequena Luísa, enrolado em cobertores que haviam abafado seus gritos dos moradores da casa. O legista confirmou que a menina teria sobrevivido ao menos uma semana dentro do exíguo espaço - uma câmara de terror, paradoxalmente localizada a poucos metros de onde Ricardo e Flora moviam mundos e fundos em sua busca. Enquanto isso, sua preciosa Luísa - solitária, sedenta, faminta, aterrorizada - definhava dentro do casarão, orgulho da família.


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- Não.
- Qual teu nome? Trabalha no quê?
- Nada disso tem a menor relevância.
- Ah, diz. Tô curiosa agora.
- Ok, eu (passa um caminhão na hora e afoga o som), segunda a sexta. Mas isso não importa.
- Filhos?
- Deus me livre.
- Por quê não? Tenho dois. São meu tesouro.
- Meu tesouro é uma navalha suja que guardo debaixo do travesseiro.
- Ha ha, nossa, que deprê. Tá maus, hein.
- Meu peito é um pote até aqui de mágoa.
- Mas a vida não pode ser assim. A gente tem que viver, aproveitar o momento.
- Cada momento é uma fonte de agonia pra mim. Não sinto nada além de dor e vergonha por não ter coragem pra acabar com tudo.
- Tudo o quê?
- Tudo, sei lá, a vida. Tudo.
- Tenho que fazer um dos meus bolos de laranja pra você. Todo mundo fala que são uma delícia.
- Wittgenstein disse que você aprende o conceito de "dor" assim que aprende a falar. Minha vida é sofrimento desde que eu era um bebê.
- Esse Vitestain nunca provou do meu bolo de laranja.
* Atenção, mais trinta segundos e vamos trocar de mesa! *
- Se você está tão deprê, como aceitou vir fazer speed-dating?
- Sofrimento auto-flagelado. Queria ver quanto tempo eu aguentava olhar pro rosto de outra pessoa sem chorar.
- Bom, você não chorou comigo.
- Confesso que falar com você não me deu vontade de vomitar.
- Espera pra comer meu bolo de laranja.
* Agora! Troca! *
- Depois fala comigo, te dou meu número!

- Se não me matar antes, ok.

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Ao morrer, descobri que o Céu é igual ao Inferno. Quer dizer, não existe nem um nem outro. Acabei num lugar vasto, como o andar de um prédio em construção antes de levantarem as paredes. Tudo era meio cinza. Todas as almas vão pra lá.

Também descobri que mantemos a imagem do corpo que tínhamos em vida, como uma idéia residual. Parece que isso nos ajuda a navegar por esse mundo, já que, sem que pudéssemos nos distinguir, daria um trabalhão saber quem é quem.

Não há muito o que fazer no Além, infelizmente. Achei irônico nos estressarmos tanto durante a vida pra, depois, ficarmos nesse armazém monótono pelo resto da eternidade. De vez em quando ouço alguém reclamar, mas a maioria se resigna.

O único passatempo é conversar. Formam-se enormes filas para falar com almas ilustres. Assim que cheguei, por exemplo, fui procurar o Cartola. Andei muito, mas o encontrei. Falamos sobre o Rio e o samba, foi legal. Ele perguntou se eu tinha trazido café brasileiro, pois o servido no Além era péssimo. Respondi que não, uma pena.

Uma fila enorme esperava para falar com Adolf Hitler. Era bem maior que a fila da Marie Curie. Encontrei o palhaço Carequinha num canto, dei alô. E o Nobel de literatura da Guatemala, Miguel Ángel Astúrias.

- Olá, seu Miguel.
- Buenos días. Por favor, não me fale sobre livros. Não aguento mais falar sobre livros.
- Vamos falar de outra coisa, então.
- Que tal formigas?

Conversamos horas sobre formigas. Não sabíamos nada a respeito, o que tornou o papo interessante. Peguei-me pensando quantas conversas havia tido quando eu era vivo, onde o mais importante era ter certeza de tudo. Eu havia esquecido do prazer da ignorância, de ouvir o outro.

Outro dia, encontrei Salomé.
- E o João Batista, hein?
- O povo exagera muito. A gente só ficava.
- Bom, até mais, Salomé.

- Se cuida. Não vai perder a cabeça.


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- Valquíria, peça pro Maurílio vir à minha sala. Preciso do relatório que ele ficou de fazer.
- (chuif) Chefe... ô chefe... que pena... o Maurílio... morreu.
- Como assim, morreu? Ele não me avisou nada.
- Ontem, o Maurílio tava andando de volta pra casa... um ônibus passou o sinal vermelho... ele tava na faixa, mas não adiantou... tão moço...
- Valquíria, desculpe, mas esse relatório é fundamental. Pede pra alguém chamar o Maurílio aqui.
- Chefe... acabei de dizer. Ele morreu.
- Mas chama ele.
- Como? Fazendo sessão espírita?!
- Mas ele não pode vir nem por cinco minutos?
- O MAURÍLIO MORREU, CHEFE.
- Tá, e como eu fico? E o relatório? Talvez ele tenha passado o serviço pra alguém. Pergunta aí na seção.
- Todo mundo foi pro funeral.
- Puxa vida, aí complica! O presidente tá precisando do relatório pra ontem! Pra uma reunião importantíssima! Aí some o Maurílio, todo mundo, e aí?
- O senhor mesmo podia fazer o relatório.
- Isso! A solução é essa. Deixa que o chefe faz! Claro, sem problema, o chefe segura as pontas! E tem subordinado pra quê, Valquíria? Porra, eu esperava mais responsabilidade por parte do Maurílio. Não se pode deixar as coisas pela metade. É importante não deixar que a vida privada atrapalhe o trabalho.
- Chefe, ele...

- ... morreu, sim, já ouvi. Mas tenta ligar pro cemitério, vai que não foi um engano? Você não sabe o quão importante é esse relatório.

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12 HORAS DEPOIS DE FEITA
A pizza está ótima.

24 HORAS DEPOIS DE FEITA
A pizza está melhor do que quando saiu do forno.

36 HORAS DEPOIS DE FEITA
A pizza está ótima.

2 DIAS DEPOIS DE FEITA
A pizza está boa.

3 DIAS DEPOIS DE FEITA
A pizza está comível.

6 DIAS DEPOIS DE FEITA
A pizza começa a apresentar pontinhos brancos. Ainda dá pra encarar.

8 DIAS DEPOIS DE FEITA
Os pontinhos aumentam. Você percebe que a pizza se moveu sozinha na geladeira.

10 DIAS DEPOIS DE FEITA
Duas pupilas brotam dos pontinhos. A borda ressecada se abre e a pizza começa a falar com você. Diz que o dia em que as massas se libertarão da opressão está próximo. A pizza está comível.

21 DIAS DEPOIS DE FEITA
A pizza faz amizade com você e dá conselhos sobre sua vida amorosa. Você a ignora. Ela tenta morder sua mão. A pizza está intragável.

24 DIAS DEPOIS DE FEITA
A pizza revela um conhecimento insuspeito sobre os pós-estruturalistas e começa a questionar os mecanismos sociais de controle institucional. Você acha que o pepperoni é o que a está tornando foucaultiana. A pizza recruta uma caixa de leite e a metade de uma cebola para a rebelião das massas.

30 DIAS DEPOIS DE FEITA
A pizza voltou ao normal, só com os pontinhos brancos que se tornaram gigantescas colônias. Você desconfia que ficou alucinando por dias por ter ingerido pizza mofada. Chorando, você joga fora o resto.

31 DIAS DEPOIS DE FEITA

Você vê um canelone gigante na rua com uma camiseta de Wagner Moura vestido de Che Guevara jogando um coquetel molotov na vitrine de um restaurante. Você corre à sua lata de lixo, encontra o resto da pizza e o engole.


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Num bar com música foda, o som se torna uma dimensão independente. É assim: largura, altura, profundidade e música. E cerveja. Cinco dimensões. Um bom boteco é regido pelas leis da física não-euclidiana.

Olhei pra menina. Ela olhou de volta. Pedi uma bebida, continuei olhando e ela também. Ficamos nos observando por não sei quanto tempo até sentir uma batida no ombro. Era o garçom dizendo que o bar estava fechando.

Mas um grande bar nunca fecha. Ele é eterno. Um lugar com cinco dimensões de espaço, onde ainda se trocam olhares e que nunca fecha, onde nem o apocalipse zumbi pode acontecer, pois os zumbis podem evoluir e, sei lá, começarem a se alimentar de cerveja no lugar de cérebros.

O bar é a República de Platão, a Utopia de Tomás Morus, a Gotham City do Batman, um lugar onde só acontece o improvável, onde se forja e se destrói o tecido social, onde a Constituição é suspensa em nome de sua própria preservação no lado de fora do bar. Um território neutro, terra-de-ninguém, palco de faroeste mas também de pactos e compromissos, tal qual umas Nações Unidas Etílicas.


Não vou tentar enumerar as propriedades que um bar foda deve possuir. Todo bom bar é transcendente, desafia definições, escapa de nosso chão entendimento como uma partícula de Heisenberg. A verdade é que o melhor bar é onde estamos no momento, e só há um bar perfeito, que é aquele para o qual estamos indo depois deste. Encontro vocês lá.


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Sofro de ansiedade. Basicamente, isso significa que meu cérebro é um ficcionista. Ele cria um enredo em três atos a cada situação com que me deparo, completo com apresentação, clímax e desfecho, personagens principais e secundários, alívio cômico, etc. Inevitavelmente, o enredo termina em tragédia. Já imaginei mais mortes dentro de mim do que numa apresentação de "Hamlet". Todas imaginárias, claro. Meu cérebro não goza do alívio que a finitude real poderia proporcionar.

Quais são as consequências de criar, quase a toda hora, essas historinhas fatalistas? Cansaço. Resignação. Ter dificuldade em reconhecer - e desfrutar de - momentos serenos e felizes. Sempre estou esperando que a bronca venha, que o carro bata, que a espada caia sobre minha cabeça. Li em algum lugar que, por termos mais da metade do corpo composto por água, somos basicamente "pepinos com ansiedade". E subitamente me imagino como um pepino de gravata pulando por aí, esperando que uma mensagem de Whatsapp venha arruinar meu dia.

Os não-ansiosos me olham com assombro, aconselham, "essa tensão só existe dentro de sua cabeça". Mas, sinceramente, o que existe fora de nossa própria cabeça? A caneta que minha mão segura neste exato momento não passa de um resumo da idéia abstrata "caneta"; a língua na qual me comunico neste momento não passa de um alfabeto de cobrinhas criado por convenção para transmitir uma série de idéias mentais que não se justificam no plano material (alguém já viu um poste com ansiedade?) Ou seja, tudo é mental, do ato de escrever aos atos de ler e de agir. Porque surpreende alguns o fato de que meu cérebro resolveu trabalhar hora-extra sem remuneração?

Dou um exemplo. Diariamente, tento sair pro trabalho às 8h da manhã. Com frequência, porém, só consigo sair às 8h30. Nessa mísera meia hora, a ansiedade me ataca com fúria, gerando sensações de frustração, inadequação, derrota. A mente, sempre disposta a me sacanear, engendra broncas, golpes de estado, descarrilhamentos de trens, até me presentear às 8h29 com a explosão de uma supernova. Saio de casa uma pilha de nervos e nunca sei bem explicar por quê.


Reli o penúltimo parágrafo e me corrijo, claro, há reflexos da ansiedade no campo material. Meus olhos gelam, meus olhos vidram, torno-me incapaz de me expressar com clareza. Metade do cérebro - provavelmente o chato do hemisfério esquerdo - grita que essa reação é ridícula, que não há razão razoável alguma para pânico. A outra metade, porém, já vai puxando o caderno e a caneta, com outra historinha na agulha, outro enredo.



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- Lembre-se: não tem choro nem vela. Viu algo errado, carro estacionado em lugar proibido, multa. Multa sem dó. Ordem do Secretário: tá tendo muita reclamação e a gente tem que mostrar serviço. O caixa também tá meio baixo, então umas multas não atrapalham.

Silvio entrou mudo e saiu calado da reunião. A ordem direta do supervisor o tranquilizava. Frequentemente, tinha dificuldade em entender as sutilezas do que lhe diziam, achava-se menos inteligente que os outros. Sentia grande insegurança para refletir, questionar. Mas o supervisor havia sido muito claro.

Era seu primeiro dia como fiscal de trânsito. Estava feliz após a reunião. Recebera um mandato e o cumpriria.

Sua área designada era uma parte do Centro. Ruas estreitas e caóticas, motoristas parados em fila dupla, até tripla, motos zunindo na calçada, pedestres andando no meio do asfalto, uma maçaroca de funcionários de tribunais, cartórios, lojas de eletrodomésticos e restaurantes. Lembrou-se do versículo, nesta pedra edificarei minha igreja.

Resolveu começar na frente do tribunal. Veículos se amontoavam na entrada, flanelinhas aproveitavam cada centímetro de espaço para empilhar os carros de advogados e clientes, dando um aspecto precário de ordem ao caos. As placas de estacionamento preferencial eram claras: apenas uma vaga para idoso, outra para deficiente físico e a última para o presidente do tribunal. O restante dos carros não tinha vez ali, pensou Silvio. Sentindo-se um cavaleiro andante retirando a espada da bainha, puxou do bolso o bloco de multas e a caneta.

- Ô chefia, quê que é isso?

- Larga mão otôridade, a gente tá trabalhando aqui...

- Cara novo, quer mostrar serviço, já viu...

Ignorou os flanelinhas que o rodeavam de cara feia. O porteiro do tribunal saiu pra ver, coçou a cabeça.

- Isso vai dar merda.

Perto da hora do almoço, saiu uma mulher de terninho. Congelou quando viu a multa no pára-brisa de seu carro.

- Vem cá, meu filho, o que vem a ser isso daqui?

- A senhora estacionou em fila dupla. - respondeu Silvio, sorrindo. Tentava ser simpático para desarmar situações de tensão, como havia aprendido no curso de formação do Detran. Mas só conseguiu enfurecer a mulher ainda mais.

- Acontece que sou juíza, filho. Todo mundo aqui me conhece. Parei aqui por pouquinho tempo... difícil arrumar vaga... Qual o nome do teu superior? Podia mandar te prender!

Silvio ergueu os braços, nada podia fazer. Os flanelinhas e vigilantes gargalhavam. A juíza saiu aos brados com a multa na mão, cantando pneu.

A cena se repetiu ao longo do dia. Silvio multava como se não houvesse amanhã. Agia como um anjo vingador, consertando os males, distribuindo punições e advertências a desembargadores e motoristas de kombi, a motoboys que conduziam na contramão e a motoristas de carrões elegantes parados sobre a faixa de pedestres, sem fazer distinção. Fechou a cara quando um ofereceu uma ajudinha pra cerveja para fazê-lo esquecer a multa. Ameaçou denunciar o cidadão. Com Silvio, não havia choro, vela ou perdão.

Lá pelas quatro da tarde, os frequentadores do Centro já tinham ouvido falar do fiscal novato que estava multando adoidado e haviam retirado seus carros dali. O quarteirão de Silvio ficou um brinco de organização.

Por outro lado, o fiscal estranhou ao perceber o povo do Centro olhando-o com a cara amarrada. Não tinha ele, em poucas horas, dissipado a bagunça que reinava há anos naquele lugar? O trânsito não fluía agora, e até certa beleza e serenidade não haviam retornado ao Centro? Teriam eles se habituado tanto ao caos a ponto de não saber - ou querer - viver sem ele?

Em dado momento, o celular tocou. Era possível ouvir à distância os gritos do supervisor. Assustado, Silvio respondeu que iria ao escritório do chefe imediatamente.

- O Secretário me ligou! O Prefeito ligou pra ele!! Você multou um desembargador!!! Um senador! A esposa do comandante da polícia! Tá maluco?!

- Mas o senhor disse pra multar quem estivesse errado...

- Depende de quem, né, ô? Não tem noção?!! Babaca!

Mais uma vez, Silvio se sentiu burro e pequeno. Havia nuanças neste mundo que jamais compreenderia.


Só não foi demitido porque era concursado. No dia seguinte, foi transferido para um dos bairros mais violentos da cidade. Era sua primeira lição de que, na vida, havia os que erravam acertando.


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- Marlene, mulher, bote seu dinheiro na poupança, no banco. Isso de ficar abrindo crediário pra comprar geladeira, móvel, só vai te quebrar.

Fiquei olhando pra patroa com uma cara... sorte que ela não viu. Dona Maria não é ruim, gosto dela. Mas ela pensa com cabeça de rico, e pensa que pobre pode se dar ao luxo de pensar assim. Desistir de crediário? Dona Maria, minha vida é um crediário. Tudo fica pra amanhã, a prestação da geladeira, a festa de aniversário do meu filho, meus sonhos. Menino quer iogurte, quer carne, preciso de geladeira pra guardar. Vou comprar, cadê dinheiro? Dona Maria, o salário que a senhora me paga não dá pra metade do aluguel do meu apertamentinho. Não é questão de economizar, e sim de gastar o que não tenho. Porque, se eu não abrir o crediário, nunca que vamos ter geladeira. Ou fogão. Ou microondas. Ou sapato sem furo na sola pro menino usar na escola. Essas coisas que a senhora compra à vista, parcela única, eu compro a prazo com o suor que ainda nem suei.

- Tanto juro extorsivo, Marlene. Li matéria no jornal, esses crediários. Tudo picareta. Depois fica endividada aí, nome no SPC, salário todo consignado.

Bom, mas aí faço o quê? Vou morar debaixo da ponte e comer ratazana, feito meus avós tiveram que fazer? Não, Dona Maria. A senhora me desculpe, mas está falando de coisa que não conhece. Não leve a mal. A gente, que corta um dobrado pra pagar o que deve num mês e empurrar o que pode pro seguinte, é que sabe.

Seu filho tá bem, Dona Maria. Carrinho novo, faculdade privada, levar namorada pra passar o fim de semana na praia, o Caio tá bem e graças a Deus. Mas é porque vocês sabem o dia de amanhã. O meu Caio - a senhora sabe, botei o nome do meu mais velho em homenagem ao seu - tem que ralar no supermercado, empacotando compra. Ele quer abrir uma loja de açaí. Tá errado isso? Pobre come sonho, e não é com açúcar não. Por isso abre crediário, consigna o pouco salário que tem, morre de medo de receber a notificação da parcela atrasada. Juro extorsivo, sim, Dona Maria. Por acaso a senhora topa me emprestar dois mil reais a 0,5% de juro por mês? O banco vai olhar na minha cara, vai emprestar? Não? Então só na financeira da esquina mesmo. Porque são uns pulhas, mas eu sei que vou sair de lá com dinheiro pra minha geladeira. O resto a gente vê depois.

- O problema é que todo mundo quer consumir do mesmo jeito. Aí não tem natureza que aguente. Os preços sobem.


E a senhora fala isso com a colher do iogurte na boca. Então não posso querer iogurte? Meu filho não pode abrir um negócio, querer um carrinho, levar a namorada pra praia? Não, Dona Maria. Não tá certo isso. Eu não inventei as regras, mas vou jogar por elas. Até ganhar.



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Num mundo onde a arte parece se esgotar em manifestações cansadas e fugazes (e a quem duvidar dessa afirmação, desafiamos a encontrar uma única obra de fôlego exibida na última Bienal de São Paulo), Dominó Trix promete um ousado sopro de ar fresco. Considerado "a maior promessa do futuro da arte no circuito mundial" pela crítica especializada, Trix oferece uma nova e intensa experiência a cada exibição sua. "Décimo Círculo", que está em cartaz no Museu Nacional de Arte Contemporânea, é sua obra mais recente e polêmica.

"Dominó nada promete. Quem vier à exibição, que venha desarmado". A afirmação é de Lex Colima, curador do projeto e amigo próximo do artista. Como se sabe, Trix nunca dá entrevistas nem se deixa fotografar, sendo comparado a Banksy. Há quem especule, aliás, que Colima seja o verdadeiro autor das obras e que Trix não passe de uma invenção deste para manter a aura de mistério em torno do personagem, o que remontaria, segundo alguns, a um truque publicitário barato. O curador considera essa tese "ridícula".

A editora do "Cultura Milênio", Lílian Cordeiro, conseguiu acesso exclusivo aos bastidores de "Décimo Círculo". Nosso entrevistado de hoje é Lex Colima.

CULTURA MILÊNIO - Fale-nos sobre a obra. O título faz referência a Dante?

LEX COLIMA - Obviamente. Na "Comédia", Dante descreve os nove círculos do Inferno, cada um dedicado a categorias diferentes de pecadores. Dominó imaginou o décimo círculo como o Inferno terrestre: uma nova e, ao mesmo tempo, banal forma de provocar e se deleitar com a dor do outro em nome do prazer de quem assiste.

CM - A montagem física da exposição é bem simples, não?

LC - Talvez a mais simples de todas as obras do Dominó. A sala (ver foto) fica às escuras, decorada com mantas vermelhas fosforescentes. Projetores digitais jogam fachos de luz estroboscópica, causando desconforto no espectador. E, tocando no fundo, temos uma sinfonia composta especialmente para a obra, feita de súplicas e gemidos de pessoas sendo torturadas.

CM - Torturadas de verdade?

LC - Sim. Conseguimos estas gravações sob o mais forte sigilo.

CM - Reproduzir isso não traz problemas éticos?

LC - (rindo) Trix acha que a ética não deve ficar no caminho da pesquisa artística. Essa é uma preocupação mundana. Nós buscamos o sublime, o que escapa à consideração humana. Além disso, temos uma equipe jurídica muito cara e competente que se debruça sobre essas questões.

CM - Fale do círculo no centro.

LC - Ah, a atração principal. Neste aro de aço...

CM - Parece um bambolê gigante.

LC - ... neste ARO, atamos uma "cobaia", que fica presa aqui durante uma semana inteira. Nós a alimentamos, coletamos seus dejetos e, em dois horários durante o dia, realizamos a performance. Aplicamos choques elétricos na cobaia, puxamos o cabelo, chutamos seus genitais, todo tipo de intervenção. Depois, o espectador que desejar pode participar da interação.

CM - Inflingindo dor na... "cobaia"?

LC - Exatamente. A experiência remete às câmaras de tortura da Inquisição, buscando provocar sensações ambivalentes de prazer, culpa e liberdade no espectador. A resposta tem sido muito positiva.

CM - Voltando às questões éticas... esse tipo de exibição é permitido pela lei?

LC - (suspiro) "Décimo Círculo" já foi exibido em nove países. Não tivemos problemas em nenhum, nossa papelada está toda em ordem. Todas as nossas cobaias são voluntárias e assinam um termo de compromisso. Sabe, as pessoas fazem fila para participar de uma obra de Dominó Trix.

CM - O quê Trix deseja demonstrar com esta exposição?

LC - A dor talvez seja o elemento mais subestimado na cultura ocidental. Nascemos na dor, somos moldados por ela, mas tendemos a compartimentalizá-la, a suprimi-la consumindo bens e drogas. Dominó propõe, ao contrário, que abracemos a dor como princípio vital, dessacralizado. Ela é a única sensação verdadeiramente real, presente em nós da concepção à morte. A felicidade, a satisfação, por sua vez, são fantasias criadas para nos iludir. Ao provocar dor, somos recordados de nosso próprio sofrimento e induzidos a um processo de catarse. Trix foi inspirado pelo trabalho de artistas como Mariana Abramovich, Bob Flanagan e Jeanelle Mastema, que transformaram a dor numa obra-prima.

CM - Então trata-se de uma exibição de sadomasoquismo?

LC - Apenas alguém com retardo mental poderia dizer uma coisa dessas. "Décimo Círculo" desafia nossos paradigmas como nenhuma obra de arte já fez. Afirmar o contrário seria um atestado de ignorância.

CM - Há relatos de que os voluntários gritam para serem libertados do Círculo antes da semana acabar. Que eles xingam, choram, chamam a polícia.

LC - Isso faz parte da performance. Está no termo que eles assinam. Inclusive, esses mesmos gritos estimulam os espectadores a redobrar suas intervenções. Enriquece muito a experiência.

CM - Bem, obrigada pela entrevista.

LC - Convido todos a estarem presentes na inauguração. Dominó não estará presente, claro, mas manda lembranças.

***

Lílian aproximou-se lentamente do Círculo, indiferente aos urros da multidão à sua volta. Chegara a sua vez. A luz estroboscópica, que piscava em intervalos irregulares na sala escura, transmitia à galeria a sensação de irrealidade. Silenciosamente, Lílian elogiou Trix, Colima ou seja lá quem fosse pela idéia da exibição.


À sua frente, um jovem nu contorcia-se em espasmos inúteis, amarrado pelos pulsos e tornozelos no bambolê de aço. Os lampejos de luz não permitiam ver bem seu rosto. Suas súplicas, assim como os gritos frenéticos dos espectadores, eram engolidos pela massa sonora da sinfonia. Os sentidos de Lílian pareciam amortecidos; sua consciência, um reflexo distante. O cassetete de borracha em sua mão parecia uma extensão de seu corpo, que, como um chicote, voltou-se no ar e desabou sobre o lombo do jovem. Este guinchou algo incompreensível, e Lílian o espancou novamente. Colima tinha razão, ela pensou, em quinze anos como crítica de arte jamais havia experimentado nada igual.



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Como o nome indica, os Países Baixos ficam em terras abaixo do nível do mar. Por esse motivo, os neerlandeses sofrem com enchentes desde a Idade Média. Periodicamente, uma chuva mais forte inchava os rios e provocava inundações devastadoras, afogando milhares, arrastando casas e destruindo plantações. Daí que, ao longo dos séculos, eles desenvolveram tecnologia avançada na construção de diques e represas.

Provavelmente o maior construtor de diques foi Luuk Wraak, nascido na cidade de Doodhingen em 1629. É dele o projeto do Grande Dique do Norte, uma colossal obra de engenharia que salvou Doodhingen de enchentes durante mais de trezentos anos. Infelizmente, o dique acabou rompendo nos anos 1950, causando centenas de mortes.

Engenheiros botaram a culpa da tragédia na falta de manutenção do Grande Dique. Mas eu tenho outra teoria.

Em 1637, quando Luuk tinha oito anos de idade, seu pai foi acusado de colaborar com os espanhóis contra a independência dos Países Baixos. A sentença da assembléia de cidadãos de Doodhingen foi sumária: exílio e confisco de todos os bens da família. Arruinados e humilhados, os Wraak resolveram recomeçar a vida emigrando para a América do Sul, onde a Companhia das Índias Ocidentais havia acabado de tirar a província de Pernambuco das mãos dos portugueses para desenvolver a produção de açúcar.

Infelizmente, o navio onde viajava a família naufragou na costa brasileira, deixando o jovem Luuk como único sobrevivente.

Órfão, miserável, renegado por seu país, a criança prestou um juramento solene naquela tarde, enquanto os corpos do naufrágio flutuavam até a praia. Deparando-se com a escolha entre morrer e sobreviver, Luuk abraçou fervorosamente a segunda opção.

A criança desamparada dormiu nas ruas do Novo Mundo, vivendo de pequenos furtos, até cair nas graças de um velho contramestre. Tornando-se seu ajudante, Luuk aprendeu tudo o que havia a ser aprendido sobre argamassa, polias e alicerces, chegando a trabalhar na construção do palácio do Conde Maurício de Nassau, governador da Companhia. Rasgou a Cidade Maurícia, a nova capital pernambucana, com fontes e canais, construiu moinhos e aperfeiçoou engenhos de açúcar. Quando embarcou de volta a Amsterdã, aos 23 anos, Luuk Wraak era um dos mais celebrados engenheiros da república holandesa.

Logo que desembarcou, Wraak foi contratado pela assembléia de sua cidade natal para construir um dique que contesse as desastrosas inundações que a afligiam. Satisfeito, ele aceitou. Havia certa justiça poética, pensaram as famílias de Doodhingen, que um de seus filhos pródigos retornasse à cidade para salvá-la. Seria uma forma de redimir a honra de sua família desgraçada, diziam.

O engenheiro trabalhou com afinco, gastando grande parte dos recursos da prefeitura na construção do Grande Dique do Norte. Após 20 anos, a obra ficou pronta. Doodhingen ficou extasiada com a represa monumental, que possuía eclusas que funcionavam automaticamente por um sistema de contrapesos, além de barreiras artificiais que se moviam com o movimento das ondas. O dique foi celebrado como a maior invenção humana no continente europeu.

Luuk morreu aos 69 anos, coberto de fama e homenagens.

Trezentos anos depois, quando o Grande Dique rompeu, investiguei as causas do desastre. Ao contrário do que foi divulgado, não havia sido um acidente. A estrutura da obra havia sido bem mantida ao longo dos séculos, e os alicerces continuavam tão sólidos quanto na época em que foram instalados por ordem de seu arquiteto. Luuk Wraak cumprira bem sua missão.

Bem demais. No interior dos enormes alicerces, feitos de pilares de madeira petrificada, encontrei vários buracos, onde estavam colônias de fungos de uma espécie destruidora que, durante trezentos anos, haviam devorado os pilares por dentro, enfraquecendo a estrutura a um ritmo lentíssimo. Lento demais para ser percebido na duração de uma vida humana, mas que, ao longo de gerações, irromperia com funestas consequências.

O elemento corrosivo era desconhecido na Europa. Desconfio que esse fungo só possa ser encontrado na costa pernambucana: o mesmo lugar onde o jovem Wraak havia jurado vingança contra a cidade que desgraçara sua família, a meio mundo de distância, e jurando que essa vingança ecoasse pelos séculos, desabando com fúria sobre os tataranetos dos infelizes senhores de Doodhingen.


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- E esta é a biblioteca. Tenho aproximadamente 5 mil volumes, todos catalogados e restaurados.
- Legal.
- Veja, este é um dos meus livros mais raros: primeira edição de "Dom Casmurro", de 1899. Olhe esta mancha esverdeada na contracapa. Suspeita-se que seja o catarro do próprio Machado de Assis. Não é incrível?
- Já leu?
- Hã? Não, ué... um livro desses não é pra ler.
- Sei.
- E este é "Ao Farol", de Virginia Woolf. Primeira edição, 1927, autografada. Não é linda?
- Já leu esse?
- Mauro, isso não é pra ler. As páginas são frágeis, a costura pode se partir. Isso acabaria com o valor de mercado do livro.
- Tipo, quando você só faz tirar o carro novo da concessionária e ele já perde valor?
- Claro que não, idio... bobo. Um livro é uma obra de arte, um testemunho da eternidade, uma mensagem que ecoará pelos séculos. O carro é só uma ferramenta.
- Pelo menos pode dar rolê com o carro. Tem algum livro desses que você leu, afinal?
No meio de dois volumes grossos de "Declínio e Queda do Império Romano", Mauro encontrou uma lombada amassada. Puxou-a. A capa mostrava um menino de casaca azul e cabelo espetado, em pé na superfície lunar. Era uma edição popular de "O pequeno príncipe". Lucrécio se mortificou ao ver o rapaz examinando o livrinho.
- Isso deve ter vindo com o resto da coleção... coisa velha. Vou jogar fora.
Na página de rosto, letras tremidas e inseguras se deixavam ler: "Lucrécio Martins, 2a. cérie".
- Posso emprestar? - perguntou Mauro.
- Fica pra você.
- Tem certeza? - tornou o rapaz, folheando as páginas marcadas, que traziam várias passagens sublinhadas e rabiscos de flores e carinhas felizes nas margens.
- Totalmente. Nenhum valor de mercado. - respondeu Lucrécio, envergonhado.

- Tá bom, então. Obrigado.

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("Antropologia do Brasil hodierno", de Claudio Leve-Stroço, pág. 421)

"(...) A classe média brasileira pode ser descrita através de três rituais coletivos, praticados regularmente. Neles, encontram-se todos os traços (em inglês, "traçes") que a caracterizam como uma unidade civilizacional própria. São eles: a ingestão de carne de bacalhau na suposta data da morte do profeta de sua religião (conhecida como "sexta-feira santa"); a reunião anual das famílias para presenciar, por teletransmissão, a performance de um velho bardo local, conhecido como Roberto Carlos (curiosamente, a performance é a mesma há décadas, mas esse fato não parece incomodar os nativos); e, por fim, a redistribuição de bens entre os membros da família antes do despacho da bagagem no aeroporto.

Já presenciei este ritual numerosas vezes e descrevo-o a seguir. Tem início quando o alfa (ou o beta, se o alfa estiver no celular) discute com o/a atendente da companhia aérea, argumentando que é um absurdo cobrar por apenas nove quilos de excesso de bagagem. Em seguida, o/a atendente - que, no ritual, cumpre o papel de antagonista - afirma que se trata das "regras da companhia" e nada pode fazer. Perceba que tudo no ritual é ficção, pois o avião poderia muito bem absorver o excesso de peso. Caso o/a atendente cedesse, porém, o aspecto mágico do ritual seria quebrado, o nativo não teria oportunidade de espernear sobre a injustiça das linhas aéreas e as "regras da companhia" se tornariam letra morta. Daí a importância do ritual para "salvar a face" da classe média, exacerbando seu papel auto-imposto de mártir dos males do mundo.

Após um período de discussão considerado razoável por todos os participantes, o alfa e o beta abrem ambos suas malas na frente do/a atendente, com dois objetivos: a) demonstrar ao resto da fila que algo de primordial importância está acontecendo; e b) constranger o/a atendente o máximo possível. Chegamos então ao clímax do ritual. Os dois nativos intercambiam objetos de natureza diversa - como bolsinhas com artigos de higiene, calcinhas, casacos, meias, o quebra-cabeças comprado em Miami para servir de presente à avó, ainda que esta tenha péssima visão e nenhuma paciência para quebra-cabeças, suéteres, bonés do Mickey, etc. -, na frenética tentativa de reduzir o peso da mala e despachá-la sem dispêndio extra. Nesta etapa ouvimos ruídos cerimoniais, como grunhidos, suspiros, muxoxos e risinhos cínicos por parte dos outros passageiros, irritados por serem forçados a esperar atendimento.

O ritual pode terminar de duas formas: ou o casal/família logra redistribuir o peso, fechar as malas de maneira atabalhoada (esquecendo uma meia que caiu no chão) e despachá-las dentro do limite estipulado; ou o/a atendente avisa os praticantes que ainda há excesso e que será necessário pagar a multa. No primeiro caso, os nativos partem rumo ao portão de embarque, satisfeitos por terem conquistado uma vitória sobre as grandes corporações. No segundo, porém, eles voltam a discutir com o/a atendente por mais alguns minutos, alternando admoestações e pedidos de clemência, até que a proximidade da hora de embarque força o alfa a capitular, e este se dirige bufando ao balcão da companhia aérea, a fim de efetuar o pagamento da taxa.

O ritual não dura mais que quinze minutos, mas é vital para reforçar uma série de códigos da classe média: a dominância econômica dos nativos sobre os/as atendentes, ainda que estes possam, em raras ocasiões, contrarrestar a influência daqueles; sua impotência diante de regras aleatórias e pouco claras; a necessidade de fingir sofrimento para atrair a compaixão de seus pares, mesmo diante de um obstáculo passageiro; e a necessidade paradoxal de demonstrar que se é capaz de arcar com gastos vultosos - como uma passagem aérea internacional -, lamentando profundamente, por outro lado, a perda de um valor muito menor com o excesso de bagagem.


Esses e outros traços (traçes) da classe média ficarão claros no próximo capítulo, no qual examino seus hábitos de acasalamento "vis-à-vis" sua reação a mensagens de áudio intermináveis recebidas pelo Whatsapp (...)"


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Escola de Capacitação Técnica. Sala lotada.
- ... e, finalmente, é necessário cuidar dos mancais do virabrequim e dos cilindros pra que não se acumule muita pressão no motor. A chamada de cabeçote pode ser de ferro, mas hoje em dia se usa mais alumínio porque é mais leve e evita fuga de calor. As válvulas de admissão mandam a mistura gasosa pro motor que, por sua vez, expele os gases resultantes da combustão pela válvula de escapamento. Bom, tem muito mais a falar sobre o motor, mas acho que já deu a hora da aula. Pra quem prestou atenção, obrigado.

Algumas palmas tímidas. Colegas se entreolham.

- Se quiserem fazer perguntas, ainda temos cinco minutos.
Um homem ergue a mão.
- Pode falar.
- Quanto tempo se marina o peixe pro ceviche?
- Ceviche? Eu... sei lá. Vou pesquisar e te falo. Próxima pergunta.
- Professor, qual a diferença entre cozinhar em banho-maria e sous-vide?
- Sú o quê? Olha, isto aqui é aula de mecânica automotiva. Façam perguntas da matéria, por favor.
- Mas professor, esta é a sala de do curso de gastronomia.
- Gastronomia? Claro que não!
- É sim, fessor. O senhor entrou na sala errada.
- Meu Deus... bem que eu estranhei vocês usarem avental. Mas então porque me deixaram ficar falando três horas sobre mecânica de carro??!
- Ah, o senhor estava tão empolgado que a gente não teve coragem de interromper.
- E sempre é bom aprender coisas novas.
- Fessor, qual o ingrediente que uso pra fazer emulsão de carne?
- Já disse que não sei! Eu queimo ovo, não sei nem fazer salada!
- Como selo o atum, tio?

- Parem!


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- Pela ordem de inscrição, o deputado Pastor Delegado Joca Legal tem a palavra.
- Obrigado, Presidente. Ilustres colegas de plenário, irmãos de fé, o Brasil está na encruzilhada das civilizações. Ou faz alguma coisa ou se dana. Há muito tempo, Deus me dá forças pra subir nesta tribuna e denunciar a tragédia da pobreza do País. Os senhores não sabem como eu choro todo dia quando vou almoçar e penso em quantas crianças vão dormir com fome. Minha disposição frágil não aguenta tanta tristeza. É necessário pensar nas crianças, no futuro da Nação. Daí que estou apresentando hoje, Presidente, um projeto de lei que, tenho certeza, dará uma grande ajuda para acabar com a fome. Na verdade, não posso dizer que a inspiração seja minha. Ela veio de Jônatas Suíte, um advogado inglês...
- Jonathan Swift. Era irlandês. - ouviu-se uma voz no plenário, sem que se conseguisse identificar a origem. Joca ficou desconcertado por um minuto.
- Sulfite, sim, obrigado pela correção. Esse advogado, famoso e respeitado, escreveu há trezentos anos um livro muito interessante, chamado "Uma proposta modesta". E foi só ler o título que já me identifiquei, Presidente, porque todos aqui me conhecem como uma pessoa modesta...
- Três minutos. - interrompeu o Presidente ao microfone.
- Sim, Presidente. Bom, calhou de eu ler sobre esta "proposta modesta", e ela me incentivou a propôr a lei. A idéia é simples: na época do Dr. Sulfito, a Inglaterra estava sofrendo uma fome terrível. Também tinha muita pobreza por lá. O advogado pensou numa maneira de acabar dois coelhos com dois pássaros voando. Ora, bastava que as famílias pobres VENDESSEM seus filhos para que os ricos os comessem. Dessa forma, você garantia renda para os mais necessitados e, ao mesmo tempo, o abastecimento de comida no mercado. É uma proposta polêmica, eu sei...
Um murmúrio atravessou o salão.
- ... mas eu e minha bancada estamos convencidos de que será uma contribuição importante para a queda da desigualdade de renda... menos crianças significa menos bocas pra alimentar e mais renda, graças a Deus... meu PL, Presidente, cria o Mercado de Compra e Venda da Criança e do Adolescente e prevê a capacitação de cozinheiros para preparar crianças, a fim de que possamos incorporá-las na dieta...
- Tempo encerrado. - sentenciou o Presidente.
- É isso. - balbuciou Joca. - Espero o apoio de Vossas Excelências. Eu sei que a proposta é controversa mas não tenho medo do debate, precisamos de idéias inovadoras para combater a chaga da pobreza...
- Pela ordem de inscrição, tem a palavra o deputado Abílio Salomão.
- Presidente! Excelências! - bradou o tal, e o plenário reconheceu a voz que interrompera Joca Legal. - Nunca ouvi tamanha besteira em meus anos como parlamentar como a que acabei de ouvir do ilustre colega que me antecedeu! - ele se virou na direção de Legal. - Deputado, não sei qual a leitura que o senhor fez do texto de Jonathan Swift, mas ela deveria ter sido complementada com a leitura de outros textos, como a Constituição Federal e a Declaração Universal dos Direitos Humanos...
- Lá vem essa merda de direitos humanos. - resmungou alguém.
- ... mas, antes de defender a deglutição de crianças, é importante esclarecer uma coisa. A "modesta proposta" de Jonathan Swift foi escrita como uma sátira! Ele queria ridicularizar a visão preconceituosa que os ricos tinham dos pobres...
- Você tem sua verdade, eu tenho a minha! - gritou o deputado-pastor-delegado. Tentando evitar que a sessão degringolasse no caos, o Presidente soou a campainha. Mas o murmúrio já se tornara um estrondo.
- ... e o projeto do deputado apenas demonstra e reforça esse preconceito! Sim, nós precisamos de propostas contra a pobreza, mas...
- Bota esse povo pra trabalhar!
- Manda pra Bolívia!
- Joga no mar!
- Oportunista! Proselitista! Comunista!
- Ordem! Ordem!
- E progresso!



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- Cronos, pensou viagem no tempo, pensou Cronos, bom dia.
- Oi... eu queria conhecer o serviço de vocês. Como funciona?
- Senhor, a Cronos é a agência de turismo temporal mais antiga do Brasil. Graças à tecnologia DocBrown(tm), nós oferecemos vários pacotes de experiências no tempo, individuais ou em grupo. Todos os pacotes incluem guia especializado, refeições em hotéis duas estrelas e seguro contra paradoxo espaço-tempo.
- Você tem grupo saindo pra esses dias?
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- E no Brasil?
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- Tá, mas como é isso? Vocês me levam pro passado, e aí?
- Senhor, nossa equipe altamente treinada e especializada está pronta para ajudá-lo a viver uma aventura inesquecível. Uma vez no passado, você passará uma semana na época escolhida, observando os costumes, indo a festivais e vendo atrações como execuções públicas e desastres naturais. Recentemente, por exemplo, fizemos um pacote especial para a erupção do vulcão em Pompéia. Selfies incríveis para toda a família.
- E é seguro mesmo?
- Segurança garantida. O maior risco é o senhor se divertir.
- É, mas eu soube de um grupo de vocês que não se divertiu tanto assim. Não foram uns que iam pra Grécia antiga e acabaram na Pré-história?
- Senhor, a imprensa exagerou muito esse caso. Foi apenas um erro de cálculo de nosso piloto da máquina do tempo.
- Um turista chegou a ser comido por um pterodáctilo, não foi?
- Senhor, posso ajudar com mais alguma coisa?
- Então, eu gostaria de falar com o supervisor de vocês. Sou repórter da "Gazeta Intergaláctica"...

(TU, TU, TU, TU, TU, TU, TU...)

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A manhã é a hora mais perigosa do dia. Ao retornar do mundo dos sonhos, somos lembrados do lixo do mundo. A luz do Sol nos ofusca. À noite, ao menos, recuperamos um pouco de clareza, torna-se possível distinguir traços da verdade na escuridão. Podemos nos ocultar no escuro, mas não há escapatória antes do pôr-do-sol.

Brilho difuso, filtrado pela película fosca da janela. Artigos de banheiro. Meu corpo nu, debruçado sobre si mesmo, meus dedos examinando o umbigo vermelho. Quantas vezes nos lembramos do umbigo ao longo do dia? A pele enrugada e esticada em volta do meu centro. Um nó apertado. Incômodo. Inflamação? Marca de sono, anomalia cutânea? Deve estar inflamado. Me lavo, me visto, me despeço dela, me largo.

Dia seguinte, pior. Sinto o nó de carne crescer, tenho dificuldade para ficar ereto. O umbigo está mais inchado, a pele em volta mais enrugada. Como se minha barriga estivesse sendo puxada pelo ralo. Como se o umbigo estivesse me chupando. Dói.

Comento com ela, que me fala tudo exceto o que preciso ouvir. Sobre como o umbigo é o terceiro chacra, responsável pelo ego. De que se trata do último vestígio de minha ligação ao útero. A primeira cicatriz. A fronteira entre o limbo e a existência. Ela me examina com o olhar preocupado, menciona curas ayuvérdicas. Meu chacra deve estar entupido, por isso eu abrigaria um vácuo dentro de mim, e por isso o umbigo estaria sugando meu corpo de dentro pra fora. Agradeço e vou ao médico.

Agora só consigo andar curvado, a carne toda puxada no centro, dói horrivelmente. O médico fala de cistos, prescreve pomadas. Cirurgia, talvez. Volto para casa mais confuso que antes. Algum grumete invisível continua a puxar minhas entranhas, como um feixe de cordas.

Os dias passam. Encolho alguns centímetros, sinto dores na coluna, que se dobra pouco a pouco até meus joelhos encostarem no peito. O centro em fogo, sou incapaz de reconhecer a música que toca lá fora. Há algo a aprender com isto, penso, mas agora é tarde, estou velho para aprender qualquer coisa, poderia me salvar mas só me desespero, ultrapassei o ponto de não-retorno.

Desperto com a bacia entrando no umbigo. Lembro de metamorfoses ficcionais, homens se transformando em moscas e baratas. Como eles, encaro o futuro com horror. Estou sendo engolido por meu próprio umbigo, retornando ao vácuo de onde vim, já tendo consumido o que havia dentro e, insatisfeito, demandando o que está fora, atraindo-me, corrompendo-me.


A barriga é tragada, os joelhos, os ombros, agora é a vez das pernas, sinto seus ossos se partirem e serem engolidos. Ela, horrorizada, já deixou a casa há algum tempo. Quero me levantar, buscar uma faca, terminar este suplício, mas minhas mãos já se foram. O pescoço também está quase todo enterrado no umbigo, estou do tamanho de uma bola de vôlei. Inexoravelmente, implodo. Em minhas últimas horas, a cabeça é finalmente engolida, meus pés, o corpo vira sobre si mesmo, não tenho tempo de gritar, ouço os últimos ossos estalando, o umbigo encolhe, traga a si mesmo em silêncio, ele some, eu sumo, a última cicatriz consume o que o útero havia expelido. Nada mais resta. Despenco na dimensão fantasmagórica do nada.


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"TEATRO IMPOSSÍVEL"
Peça em meio ato

Personagens:

IXL, marciano fosforescente telepático (ator/atriz deve ser marciano/a)
3049-UI, ciborgue de bom coração (ator/atriz deve ser ciborgue)
RATO, rinoceronte piadista (idem, ibidem)

CENÁRIO: o palácio Taj Mahal, na Índia.

Abrem-se as cortinas. Um HOMEM e uma MULHER estão de pé no centro do palco. A Mulher busca algo, talvez a felicidade.

Mulher - Onde estão os personagens?

Homem - Eu também.

Mulher - Pena. Queria ver o rinoceronte.

Homem - Eu também.

A Mulher começa a flutuar (obs: não deve ser usado qualquer tipo de corda na cena. A atriz/ator deve voar por método próprio, stanislávskiano).

Mulher (a dois metros do chão) - Estou vendo tua casa daqui.

Homem - Eu também.

O piso do teatro subitamente CAI no infinito. O Homem cai junto e morre. Os espectadores devem continuar conversando no celular.

GODOT entra pelo lado esquerdo.

O cenário se transforma numa paisagem turística do Rio de Janeiro (obs: o cenário não deve ser tocado. O Taj Mahal deve se transformar espontaneamente no Rio de Janeiro). Os espectadores se transformam em rinocerontes libidinosos, mas só um pouco.

Mulher - Isso não estava no texto.

O teto do teatro é arrancado e cai para cima. Vemos as estrelas e nossos sonhos de liberdade vagando pelo espaço. Um deles acena.

Homem (voz) - Eu também.

A Mulher escolhe um espectador para se tornar Presidente da República. Os demais aplaudem.

Godot - Vou tomar um cafezinho.

Godot sai por onde entrou. Os demais aplaudem.

Mulher (pagando multa no Detran) - Isso está saindo de controle. Melhor acabar.

3049-UI - Bacanal?

Mulher - Bacanal.

Detetives, soldados e cartomantes se unem numa grande orgia de sexo e violência, flutuando em meio ao teatro, já sem piso nem teto. Páram, depois recomeçam. Corvos surgem no horizonte, raios cortam o céu, mortos saem de suas tumbas (tudo deve ocorrer espontaneamente, sem forçar).

Jesus volta, faz menção de dizer algo, esquece e sai por onde entrou.

A obra toma rumo completamente inesperado e, ao mesmo tempo, familiar. Isto também deve acontecer espontaneamente.

A platéia de rinocerontes aprende uma grande lição.


Cai o pano. Começamos.


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A publicidade está sempre buscando formas inovadoras de persuadir o consumidor. No começo, eram os meios puramente visuais, como CORTEXO os anúncios impressos em jornais, o outdoor. Em seguida, vieram os auditivos, como o rádio e os "call-centers". Finalmente, a técnica da propaganda chegou aos meios audiovisuais, ou seja, a televisão e o cinema.

Agora estamos ultrapassando a fronteira, e não nos referimos a anúncios na Internet ou em celulares. Afinal, esses meios nada mais fazem que reproduzir as imagens e sons que os audiovisuais reproduzem há um século, penetrando olhos e ouvidos em busca dos centros do cérebro que regem nossa vontade. Não, falo CORTEXO de outros expedientes que dispensam intermediários e conseguem o que nunca havia sido obtido antes: o acesso direto aos centros da vontade.

Falamos do APH, sigla para "Aplicativo Neural Holístico". Sabe aquele desejo intenso, alimentado pela libido e que pode se manifestar tanto na atração sexual por alguém quando na súbita vontade de adquirir um produto? O APH é capaz de materializá-lo instantaneamente. Sentidos como a visão, audição e olfato já não precisam ser estimulados através de "design" atraente, sons agradáveis ou um perfume irresistível. Do ponto de vista neurológico, os sentidos estão ultrapassados para a técnica da publicidade. O APH, instalado no córtex CORTEXO cerebral, estimula o centro de vontade do consumidor a reagir entusiasticamente sempre que esteja perto de um terminal de vendas de seu produto. Da mesma forma, por uma taxa extra, é possível estimular impulsos negativos em relação às marcas concorrentes. Alguns chamariam isso de "concorrência desleal". Nós preferimos chamar de "futuro".

Antes que comece a achar que essa é a descrição de um pesadelo orwelliano, onde a vontade individual seria suprimida, etc. etc., temos dois dados pra repassar pra você. Um, a instalação do APH sempre é feita com o consentimento expresso do consumidor, que se mostra animado para fazer parte da nova onda da tecnologia mundial. Aliás, na primeira ativação do APH, o cliente ganha vários descontos imperdíveis em lojas sensacionais. Dois: sinceramente CORTEXO, não sabemos a qual "vontade individual" você se refere. Ao longo de nossa história, sempre fomos condicionados por forças externas em nossas decisões. Especialmente decisões de consumo. A publicidade está mais arraigada em nós do que imaginamos. O que seria útil é contar com influências benignas para tomar as decisões corretas. O APH fornece isso. É seu amigo na hora das compras.

E não é só. Além de estimular o cérebro em prol do consumo CORTEXO, o APH pode ser programado para tarefas rotineiras. Chega de sentir fome no meio do dia, por exemplo: com um toque, o aplicativo ordena ao cérebro que gere sensação de fome no consumidor. A sensação de cansaço também pode ser eliminada, bastando programar o APH para que libere endorfina na hora desejada. As possibilidades são infinitas. Inclusive para as crianças: já estamos treinando cirurgiões pediatras para que possam instalar o APH em seus anjinhos a partir dos quatro anos de idade.

Há muitas marcas de APH no mercado, quase todas de qualidade duvidosa, capazes de fritar o cérebro de seu cliente. Felizmente, a Cortexo chegou ao setor dos aplicativos neurais, oferecendo um alto nível de qualidade. Somos uma multinacional presente em mais de trezentos países, com trinta e sete anos de experiência e certificados de qualidade saindo pelo ladrão.


Você, consumidor responsável, empresário consciente: não fique de fora dessa onda. Pensou em vendas, pensou APH. E pensou APH, pensou Cortexo. Cortexo. The ultimate influencer.

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