Desafio 1001 Filmes: 43 - "A Caverna Dos Sonhos Esquecidos" (Cave of Forgotten Dreams, 2010)


Há cinquenta anos, Werner Herzog assombra o mundo com seu estilo peculiar de cinema. Agindo parte como antropólogo obcecado, parte como profeta ensandecido, seus filmes exploram a fronteira entre a humanidade e a natureza. Quando pensamos que somos seres perfeitos, mestres do mundo e da racionalidade, Herzog está ali para  puxar o tapete e expor as fissuras de nosso sistema de pensamento. 

Seus filmes nos sussurram que nada na natureza faz muito sentido. Em "Aguirre, a cólera dos deuses" (1973), o sonho de um império europeu na Amazônia termina com uma invasão de macacos numa jangada destruída. "Fitzcarraldo" (1982) nos brinda com a imagem de um navio a vapor subindo um monte na selva. Já "O homem urso" (2005) tem seu protagonista devorado por ursos, os mesmos animais que jurou proteger. Herzog parece repetir que não passamos de macacos pelados arranhando a superfície da lógica, criando fantasias sobre nossa suposta superioridade sobre os animais e o meio ambiente. Vem daí a constante evocação, em sua obra, do sonho como forma superior de percepção. A racionalidade científica, apesar de útil, pode enganar: a verdade, se é que existe, reside em algum lugar entre o sonho e a loucura, e não há arte mais eficiente para conjurar um sonho do que o cinema. 

"A caverna dos sonhos esquecidos" é um excelente exemplo, ainda que tardio, da cosmogonia de Herzog. A equipe do cineasta recebeu permissão especial para filmar o interior da caverna de Chauvet, no sul da França, onde estão as mais antigas pinturas rupestres já encontradas no mundo, com mais de 30.000 anos de idade.

O que poderia ser um simples documentário esquemático do History Channel se torna uma oportunidade para Herzog tecer reflexões sobre a criatividade humana e o papel do homem diante da natureza e da história. Diante das belas pinturas de Chauvet, parece que estamos contemplando obras de outro mundo, separado do nosso por um fosso temporal profundo demais para ser compreendido inteiramente. Um mundo quase alienígena, coberto por geleiras da última Era Glacial, uma época em que neandertais e mamutes ainda perambulavam pela Terra. Como fazer sentido de toda essa história? Como conciliar a grande beleza e apuro técnico das pinturas na caverna com nossa imagem dos homens pré-históricos como primitivos? E, o mais importante, qual a semelhança entre os "sonhos esquecidos" dos homens de Chauvet com nossos próprios sonhos de habitantes do século XXI, testemunhas do mundo através da tela do cinema e da televisão? O que as pinturas encontradas na caverna dizem sobre nossa própria humanidade?

O documentário foi exibido em 3D nos cinemas, o que certamente realça as texturas das pinturas, mas sua beleza também se reproduz em 2D. Seu ritmo é adequado, com 1h30, e as explicações dos pesquisadores de Chauvet são sucintas sem serem demasiadamente técnicas. De fato, apesar do apreço que o diretor tem pela poesia, a importância da ciência como reveladora dos segredos da caverna também fica clara.

Aliás, frequentemente o filme parece defender uma união entre o pensamento científico e o poético. Um dos arqueólogos envolvidos na pesquisa se declara um ex-malabarista de circo, que descreve sonhos que teve com os leões pintados nas paredes. Em outro momento, Herzog mostra um inventor de perfumes que, nas horas vagas, caminha nas proximidades de Chauvet tentando encontrar outras cavernas pelo faro. A cena seguinte, em que o perfumeiro caminha no interior da caverna assombrado com o que vê, soa para mim como um amálgama perfeito entre a lógica e o sonho: somos crianças, tateando no escuro, mas temos uma lanterna nas mãos. Seja a da ciência ou a luz de um projetor de cinema.



Ω

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