Desafio "1001 Filmes" - nos. 10 e 11 - “Sombras” (“Shadows”, 1958) e “Faces” (1968)

"Sombras" ("Shadows", 1958)
"Faces" (1968)



Frequentemente, artistas declaram que suas obras representam uma “busca pela verdade”. Que verdade seria essa? Certamente, não é a mesma procurada pela religião ou pela ciência, por exemplo. A teologia crê num imperativo categórico, ou seja, o conceito da divindade e a transmissão deste por meio da revelação divina. A ciência, por sua vez, defende a verdade provada por argumentos racionais, conforme leis objetivas e replicáveis. A verdade da arte, ao contrários destas duas, é altamente subjetiva: possui tantos significados quanto há pontos de vista. Assim como existem infinitos pontos de vista sobre um mesmo assunto, a verdade artística seria, por assim dizer, inatingível. Para o artista, resta apenas a jornada em busca de sua verdade, que não passaria de um ponto perdido no horizonte onde duas linhas paralelas se cruzam.

Para John Cassavetes (1929-1989) a verdade da arte cinematográfica residia no trabalho do ator. Essa era sua matéria-prima. Já em seu primeiro filme, “Sombras”, é possível ver o estilo inovador que o tornaria conhecido décadas depois, um estilo que valoriza a improvisação dos atores, o naturalismo dos diálogos e a frugalidade da produção. Tratavam-se de novidades na segunda metade dos anos 50, época em que o cinema norte-americano estava saturado de produções caras de estúdio, musicais coloridos e histórias maniqueístas de mocinho e bandido. 

A chegada da televisão havia desafiado os estúdios a buscar caminhos novos de dramaturgia, sem sucesso, até que a influência da “nova onda” do cinema europeu (o neo-realismo italiano, a “nouvelle vague” francesa, o cinema psicológico de Bergman, etc.) começou a mudar a forma com que roteiristas e diretores americanos passassem a encarar o fazer cinematográfico. Roteiros passaram, gradualmente, a tratar de questões como racismo, machismo e repressão sexual, até então tabus no cinema americano. Ao mesmo tempo, a adoção de câmeras e gravadores portáteis, assim como da película de 16mm, mais barata que o padrão industrial de 35mm, possibilitou que uma nova geração de diretores independentes competisse com o cinemão de estúdio pelos corações e mentes do público.

Cassavetes foi figura de proa dessa primeira revolução do cinema independente americano. No final da década de 50, ele era um jovem ator conhecido por papéis em novelas televisivas. Ao mesmo tempo, dava oficinas de atuação numa sala em Nova York. Durante as oficinas, ele e os alunos improvisavam, criando diálogos e personagens, baseados em suas histórias pessoais e interações uns com os outros. Tratava-se de uma inovação radical do que significava ser um ator, inspirada nos ensinamentos ora em voga no “Actor´s Studio”, que revelou atores como Marlon Brando e James Dean. Para o Studio, o ator não deveria ser um mero “recitador de linhas num papel”, como no teatro clássico, mas um veículo para a intuição e emoções genuínas (o chamado “method acting”). 

Com alguns de seus alunos, Cassavetes rodou, contando com orçamento mínimo, equipamento barato e um roteiro repleto de improvisações, o filme-ensaio “Sombras”, que captura bem a atmosfera dos bares de jazz e da “geração beat” da Nova York dos anos cinquenta. Uma família de dois irmãos e uma irmã, todos ligados ao mundo da arte, convivem com amigos, vão a festas, conhecem o amor e sofrem com o racismo, em episódios que parecem surgir espontaneamente, como num documentário. Mais importante do que trama ou desenvolvimento de personagens, porém, a chave de “Sombras” está na busca pela “verdadeira” arte para Cassavetes: a verdade dramática que se esconde por trás de gestos e reações de cada um dos atores, e não em palavras pré-concebidas por um escritor e sua máquina de escrever. O diretor consegue expressá-las num processo orgânico de criação coletiva, e não apenas por meio de marcações cênicas num roteiro ou instruções gritadas por um diretor. Dessa forma, o filme consegue transmitir uma atmosfera de grande intimidade entre seus personagens. O resultado é arrojado e inovador, um filme pioneiro em seu “naturalismo”.

  Dez anos e três filmes depois, Cassavetes dirigiu “Faces”, considerado sua primeira grande obra, indicada ao Oscar em três categorias (atriz coadjuvante, ator coadjuvante e roteiro original). O estilo ainda é o mesmo de “Sombras”, ainda que mais maduro e decantado. Os personagens são melhor delineados e o filme é menos “solto” e improvisado, mas permanece a sensação de grande intimidade entre os protagonistas e a platéia. 

Da mesma forma que em “Sombras”, tabus como sexo extraconjugal e a subserviência da mulher em famílias de classe média são expostos de forma corajosa. Um executivo de meia-idade (John Marley) se apaixona por uma prostituta (Gena Rowlands, uma das maiores atrizes do pós-guerra e parceira de longa data do diretor) e deixa sua esposa (Lynn Carlin). Esta, por sua vez, se envolve com um homem mais jovem (Seymour Cassel). A dinâmica de casais se tornou uma marca registrada do cinema de Cassavetes, influenciando diretores que se revelaram anos depois, como Woody Allen e Robert Altman. 

Apesar de trechos um pouco forçados - por exemplo, todos riem muito durante o filme, e o espectador acaba não entendendo a piada -, a maior parte de “Faces” é de grande força dramática, obtida, em parte, pelo uso generalizado de “close-ups” com câmera na mão. Talvez não haja outro filme que faça melhor uso do recurso. Como um entomologista estudando a condição humana com uma lupa, o diretor nos oferece close após close de rostos humanos, com toda a sua riqueza expressiva, como mapas do que um ator possui de mais precioso.

 Triunfos da criação coletiva, tanto “Sombras” quanto “Faces” resultam da união de excelentes atores, roteiros criados de forma orgânica e a visão um diretor apaixonado por sua “busca pela verdade”. John Cassavetes tinha um projeto, executado brilhantemente nestes dois filmes e em outros realizados posteriormente.

(Nota no IMDb ("Faces"): 7,7
Nota no IMDb ("Sombras"): 7,4)
 


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