Desafio "1001 Filmes" - no. 9 - “A Sala de Música” (“Jalsanghar”, 1958)




Acho que nossas lacunas falam mais de nós do que nossos feitos. Mea culpa, mea maxima culpa. Eu jamais havia assistido a um filme de Satyajit Ray (1921-1992). Não vi a trilogia de Apu. Ao que me lembre, aliás, nunca vi um filme indiano que não fosse um musical Bollywoodiano, e mesmo assim, foram poucos desses.

Que bom! Ao menos, chego a essa cinematografia com o olhar inocente, sem vícios. “A sala de música” foi uma excelente introdução. Uma obra lírica, do início da carreira de Ray, produzido apenas três anos após “Pather Panchali” (1955), o primeiro da trilogia que o tornaria um diretor mundialmente famoso.

É magistral a capacidade de Ray de transmitir, em meros noventa minutos e com apenas dois ou três atores em cena, sentimentos complexos como a perda de tradições numa ordem social em extinção. No roteiro, adaptado de um conto de Tarashankar Banerjee, um “zemindar” (chefe político local) de Bengala, Biswambhar Roy (Chhabi Biswas, em excelente atuação) vive em seu palácio, gastando a fortuna da família em recitais de música, sua grande paixão. Biswambhar se entrega aos prazeres da arte e não percebe a gradual decadência que se instala em seus domínios, algo que o diretor expressa em belas metáforas visuais: aos poucos, as águas do rio local inundam suas plantações; um vizinho agiota começa a se tornar a nova força política local; e a música, que o nobre tanto ama, vai sendo substituída por sons ouvidos ao longe (marchas militares, a buzina de um automóvel), como se prenunciassem o início do fim. Até que uma tragédia familiar força Biswambhar a fechar sua amada sala de música e se isolar do mundo.

Como se vê, a música tem grande importância na trama (fator recorrente, aliás, no cinema indiano) e serve para ilustrar a mudança da ordem política e social na Índia. Por meio de deixas musicais, Ray transmite a perda dos valores tradicionais em seu país, acentuada quando da independência daquele grande país, em 1947 (menos de dez anos antes das filmagens, portanto). A saída dos ingleses, que haviam governado o país por mais de um século, decretou o fim de “zemindars” como Biswambhar, em favor do governo centralizado de Délhi. As imagens do chefete no teto de seu palácio, assistindo à desolação à sua volta enquanto fuma calmamente um narguilé, é a ilustração perfeita dessa troca de guarda. Da mesma forma, na cena em que o nobre arruinado homenageia os retratos de seus antepassados, fundadores de sua dinastia. Quando chega ao seu, assusta-se ao ver que uma aranha percorre a tela. É o sinal de que seu poder, como sua vida, chegou ao ocaso.




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