Desafio "1001 Filmes" - no. 13 - "All That Jazz - O Show Deve Continuar" (1979)




A arte é vaidosa por natureza: adora falar de si própria. Há uma miríade de romances que falam do fazer literário (“Dom Quixote” deve ter sido um dos primeiros livros a fazer paródia da literatura), quadros que desnudam o próprio artista (“Las meninas” de Velázquez, por exemplo) e filmes cujos protagonistas são as pessoas atrás das câmeras (Fellini em “8 1/2”, Bergman em quase toda sua cinematografia, etc.). “All That Jazz” é uma dessas obras auto-referenciais, e uma das mais especiais. 

Mal-disfarçada autobiografia de Bob Fosse, lendário coreógrafo e diretor norte-americano, diretor de “Cabaret” (1972) e criador do musical “Chicago” (cuja versão cinematográfica, de 2002, venceu o Oscar de melhor filme), o filme é uma espécie de “8 1/2” ambientado no mundo dos musicais da Broadway, uma “tour de force” com formato de “roman à clef”, onde a verdade, a ficção e o sonho se chocam a todo momento com exuberância e tremenda força criativa.

Joe Gideon (Roy Scheider, que, apesar de ser mais conhecido por “Tubarão”, faz aqui seu melhor papel), alter ego de Fosse, é, como este, um coreógrafo “workaholic” e mulherengo. Quando não está torturando seus dançarinos, Gideon/Fosse pula de cama em cama com eles, fumando e tomando remédios, tentando equilibrar seu estilo de vida a mil com os papéis de pai e profissional. No meio da produção de uma peça, começa a ter sérios problemas de saúde e passa a reavaliar sua vida turbulenta, marcada pela paixão ao “show business”. 

Nas mãos de um diretor inexperiente, o filme poderia ter desaguado num dramalhão enlatado de TV. Fosse, no entanto, sabendo que este seria seu “canto do cisne” do mundo do entretenimento (morreria oito anos depois, de um ataque cardíaco), desvia desse caminho injetando piadas ácidas no roteiro e usando uma montagem ágil, não-linear, na qual números musicais se entremeiam com diálogos entre Gideon e uma “dama de branco” (Jessica Lange), cuja identidade se revela na última cena. Em outras sequências, que variam de números com vários dançarinos a “duos” mais intimistas, o coreógrafo é confrontado com seus sentimentos em relação ao amor de sua vida, Kate Jagger (Ann Reinking, namorada de Fosse à época) e sua ex-esposa e colaboradora, Audrey Paris (Leland Palmer, brilhante). Esta personagem, aliás, é baseada na ex-esposa e “musa” de Fosse, a dançarina Gwen Verdon. A forma brilhante como Fosse traduz esses relacionamentos em números musicais, de forma simbólica, nada fica a dever às viagens alucinantes de Marcello Mastroianni no “8 1/2” felliniano.

Um ou outro elemento (como a entrada no terceiro ato de um coreógrafo rival, numa ponta de John Lithgow) parece forçado, mas não prejudica o filme. Mistura de acerto de contas com a vida, filme-testamento e monumento ao ego de Bob Fosse, “All That Jazz” é um exemplo marcante de musical cinematográfico, que explora os limites do gênero.

(nota no IMDb: 7,8)

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