de ovos e vibradores



 (imagem: http://www.sometimesraw.com/?p=1724)


   As mãos coçam. Repentinamente, um pequeno oco surge na cabeça, algo relacionado à necessidade de saciar algum vício misterioso. Quase instintivamente, como se desconectados do comando do corpo, os dedos penetram o bolso, retiram o celular e digitam, avidamente, a senha que destranca seu funcionamento. O oco se preenche. A sensação de liberação gerada pelo ato não é muito diferente daquela provocada pela primeira tragada de um cigarro por um fumante inveterado. 

    Já há alguns anos, o gesto mecânico de sacar o “smartphone” deixou de ser uma simples checagem de mensagens urgentes para passar a representar um dos atos fundacionais de nossa sociedade global. Qualquer um que ande em transporte público, caminhe pelas ruas ou apenas observe pessoas em momentos de ócio verá que o celular nunca está distante. À noite, a luz do aparelho ilumina nossos rostos apáticos, que perscrutam a tela em busca de informação. Durante o dia, o Sol é pequeno para revelar o mundo a esses rostos. Mal amanhece e já estamos debruçados sobre o celular enquanto tomamos o café, seguimos para o trabalho, almoçamos, enfim, ocupando todo intervalo de tempo disponível que temos dedilhando o aparelho, aninhado nas mãos como se fosse um ovo Fabergé.

    O que escrevemos, ansiosos, quando nossos polegares castigam a tela furiosamente? Checamos o Facebook, essa fogueira das vaidades, para ver quem “curtiu” o que “postamos” cinco minutos atrás? Enviamos mensagens pelo Whatsapp, cujo teor, talvez, pudesse ser relatado mais tarde com menos prolixidade e mais substância? Acessamos o Instagram a fim de contemplarmos o mundo que está ao alcance dos nossos olhos, caso tivéssemos a suprema audácia de erguê-los?

    Tudo isso e muitas outras coisas: tiramos fotos, lemos notícias, marcamos encontros, etc. Talvez algumas destas ações sejam realmente urgentes, mas arrisco dizer que a maior parte do que fazemos no celular poderia esperar momento mais propício ou até seja dispensável.

    Como tantas outras maravilhas da tecnologia, o “smartphone” surgiu para ajudar em nossa libertação do tempo, ao prometer a comunicação telefônica aliada à realização de um monte de outras ações, através de “apps”. Afinal, pra quê telefonar para alguém se basta enviar uma mensagem de texto ou áudio pelo Whatsapp, por uma fração do custo de uma chamada telefônica? Uma mensagem de “zap”, como o serviço foi batizado popularmente no Brasil, é um telefonema congelado no tempo, que pode ser acessado e respondido no momento de nossa escolha.

    Por sua vez, o acesso às redes sociais, outro grande atrativo dos “smartphones”, prometia nos conectar ainda mais a amigos e parentes, com a troca de fotos, comentários, partículas de afeto, enfim. Através dessas redes, teríamos a capacidade de nos expressar criativamente, fazer novos amigos e contatos de trabalho, estaríamos ainda mais conectados ao mundo do que quando da popularização da Internet, há vinte anos. 

   O que pode ter de errado nessa maravilha de aparelho, que conjuga tantas funções em tão pouco espaço?

    A mesma chave que abre a cela, porém, é a mesma que a tranca. O “smartphone” não só não nos libertou do tempo como nos encerrou numa prisão mais insidiosa, que age em nível quase neurológico. No lugar de facilitar a realização de tarefas, o aparelho nos incumbiu de... novas tarefas. Se antes podíamos retornar uma ligação após certo tempo, por exemplo, agora somos impelidos a responder imediatamente às mensagens que recebemos. Os dois sinais de “visto” do Whatsapp, quando se iluminam de azul, dão início a uma contagem regressiva em que temos que responder o que nos mandaram, sob pena de depois reclamarem de nossa suposta insensibilidade e falta de atenção. Da mesma forma, quando passamos dias - ou mesmo horas - sem “postar” no Facebook, nossos conhecidos estranham. “Puxa, você nem comentou o que eu escrevi” é uma frase comum em tempos de “smartphone”. Por carregarmos nossa coleira eletrônica para todo lugar que vamos, somos demandados a reagir no mesmo instante que alguém a puxa.

    Paralelamente, o surgimento do palco das redes sociais desnudou nossa crônica falta de algo relevante para dizer. Antes do “smartphone”, e por mais que já estivéssemos imersos no atoleiro digital da Internet, contávamos com um pouco mais de tempo para pensar antes de escrever, tempo para ler, conversar e refletir. Por mais etéreo que fosse um “e-mail”, por exemplo, ele ainda era um texto formado por sentenças e parágrafos, que levava certo tempo e esforço para ser escrito. 

    Hoje, o envio de meros agrupamentos de letras como “k”, “omg” ou “lmao” já constitui uma comunicação, embora com estreitíssima margem de significados. São “palavras” adequadas a estes tempos do imediato, do não-pensar, da reação automática às demandas recebidas a todo instante. Não raro, reagimos com desconcerto às demandas instantâneas dos “apps”, balbuciando a primeira bobagem que nos vêm à mente, como crianças que não pensam antes de abrir a boca. O conteúdo e as implicações da mensagem perdem cada vez mais importância diante da necessidade de manter o canal de comunicação aberto, de prender a atenção do receptor num mundo envolto por tanto ruído.

    A própria forma com que o “smartphone” chama nossa atenção é quase uma declaração de fracasso da civilização. Novas “notificações”, mensagens, etc., recebidas pelos “apps” são normalmente sinalizadas por um toque estridente. Quando alguém faz uma rara chamada telefônica - considerada, em tempos de Whatsapp, um ato hostil suficiente para causar o rompimento de amizades de longa data -, o aparelho explode numa sinfonia de toques infantis, ou, caso esteja no “vibracall”, passa a tremer descontroladamente dentro do bolso. Quem nunca passou por um ataque pornográfico de um celular tremendo como uma britadeira no bolso enquanto a “Cavalgada das Valquírias” ecoa pelo vagão do metrô, que atire a primeira pedra.
   
   Finalmente, numa fixação quase anal, agarramos o apêndice vibratório do bolso e o enfiamos no ouvido. Isso quando já não estamos munidos, tais como andróides Nexus 12, de “headphones” perenemente inseridos nas orelhas para falar ao telefone sem precisar cumprir a exaustiva tarefa de segurar o fone contra a têmpora. 

    É tudo muito rápido, muito tecnológico, muito superficial. Talvez tenhamos dado um passo maior do que a perna, e a solução seja retornar aos tijolões da Nokia, cujo maior atrativo fora das chamadas era o envio de mensagens de texto e o jogo da cobrinha.

    (enviado do meu Samsung Android, entre pausas para ver a previsão do tempo e checar a caixa de e-mails)



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