Resenha: "Guerra e Paz"

 
Acho que foi Edmund Hillary, o primeiro ocidental a escalar o Everest, que proferiu aquela frase fantástica ao responder a um jornalista que lhe perguntou qual a razão que o impelira a galgar o teto do mundo: "por que está lá"(*). Além de ingenuidade, há muita sabedoria nessa resposta. Por vezes, abraçamos o desafio à nossa frente pelo único motivo de que ele existe, sem que haja alguma causa transcendental que guie nossas ações.

Reduzindo em muitos metros o meu Everest, resolvi ler a obra-prima de Leon Tolstói, o colossal "Guerra e Paz". Por quê? Por que ele estava lá, ora essa.

 Iniciar a tarefa exigiu uma boa dose de ingenuidade. Trata-se de um daqueles livros sobre o qual muitos falam mas poucos lêem, um dos bastiões do romance russo - quiçá do Ocidente - no século dezenove. Como outros romances russos - "Crime e Castigo" e "Doutor Jivago" vêm à mente -, "Guerra e Paz" é acusado de apresentar uma infinidade de personagens e um enredo confuso. Por outro lado, é louvado por muitos pelo escopo monumental da narrativa, transcorrida durante as Guerras Napoleônicas - com ênfase na invasão da Rússia por Napoleão em 1812 - e pelo esmero na descrição psicológica das personagens. Alguns chegam a imputar-lhe o rótulo (ou o estigma) de "melhor romance de todos os tempos". É muito peso para ser carregado por um único livro, não?

 Ouvida a lição de Sir Hillary, dispus-me a tirar a prova dos nove. Não me arrependi: a obra de Tolstói transcende qualquer rótulo de difícil ou antiquado. Trata-se daqueles livros que combinam, quase à perfeição, o drama individual com os grandes eventos coletivos. Como um cineasta a justapôr magistralmente o "close-up" com o plano geral, Tolstói urdiu uma narrativa sofisticada tanto na dimensão mais íntima das personagens, desvelando seus conflitos internos e suas contradições, quanto no plano da "macro-história" das batalhas e intrigas políticas da época.

 Tendo como eixo a trajetória de quatro protagonistas, todos aristocratas - o cínico Príncipe Andrei Bolkonsky, o mercurial Conde Pierre Bezukhov e os irmão Natasha e Nikolai Rostov -, o autor acompanha suas vidas e as de centenas de coadjuvantes, nobres e camponeses, em meio aos vinte primeiros anos do século XIX na Rússia. São primorosos os retratos traçados de cada uma das personagens. O autor as preenche de contradições e fraquezas, expõe-os a provações e força-os a buscar a redenção, alcançada apenas por poucos. De todos os "arcos" da narrativa, provavelmente o mais interessante - e, não por coincidência, o mais próximo de Tólstoi, ele próprio dono de uma personalidade controversa - seja o de Bezukhov, fiho ilegítimo de um conde subitamente alçado à riqueza. Ao longo do romance, o conde passa por grandes transformações - de jovem arruaceiro, torna-se um maçom dedicado ao misticismo e, daí, filantropo -, antes de mergulhar no horror da guerra e emergir dele como um homem maduro, tendo encontrado um sentido para a vida. A personagem é das mais bem construídas que já vi na literatura, repleto de nuanças, sempre no limiar da redenção.

 Ao mesmo tempo, o livro também traz uma inovadora reflexão sobre o estudo da História. Em determinadas passagens, Tolstói critica a "grande história", que privilegia as ações dos grandes vultos políticos e militares e, por outro lado, menospreza o papel de outros agentes históricos, como os milhões de integrantes de outros estratos sociais envolvidos naquele turbulento período da história européia, como soldados, camponeses, etc. Escrevendo meio século após a morte de Napoleão, o autor reduz o imperador francês de seu costumeiro lugar no panteão dos gênios militares a um mero peão a serviço das forças obscuras que movem a história, um homem cuja arrogância e incapacidade de compreender as engrenagens do destino o levou da glória à ruína.

Trata-se de um ponto de vista radicalmente distinto da "grande história" em voga à época do autor e que ainda encontra espaço nos dias de hoje. Quantas vezes não escutamos que certas conquistas sociais ocorreram por obra da "vontade" ou do "gênio" dos grandes vultos de nossa história? Quem nunca aprendeu certa História, ensinada nos bancos escolares, que apontam um punhado de "grandes homens", dentre políticos e estrategistas - Alexandre Magno, Júlio César, Adolf Hitler, Winston Churchill, Getúlio Vargas - como os principais catalisadores de acontecimentos que influenciaram a vida de milhões? Nesse sentido, Tolstói pode ser visto como um precursor da Nova História, formulada após a Segunda Guerra Mundial, que enfatiza o papel dos movimentos sociais e amplia o foco dos estudos históricos para além de aspectos meramente políticos, econômicos e militares da história. O debate é interessante e representa uma "quebra" muito bem-vinda no livro, intercalando a narrativa "micro" e "macro" do enredo com reflexões de teor acadêmico.

 Naturalmente, nenhum autor consegue manter a mesma qualidade da escrita ao longo de 1.300 páginas de romance. Nem mesmo Deus, escrevendo por procuração, conseguiu evitar que a Bíblia tivesse suas partes chatas. Dito isso, achei superficial a caracterização da maioria das personagens femininas, cujas personalidades oscilam entre matronas mexeriqueiras e moças de cabeça oca que só pensam em casar (um fato no mínimo curioso para o criador de Anna Karenina, uma das mais complexas personagens femininas da literatura ocidental). A persona de Natasha Rostov, por exemplo, adquire complexidade apenas no terço final do livro, após passar por uma série de tribulações. Faço uma exceção a Maria Bolkonsky, irmã de Andrei, cuja luta interna entre o dever de cuidar do pai cruel e senil e o desejo de se libertar do lar opressor a torna uma personagem instigante. Ademais, comente-se que o epílogo do romance, um ensaio que desenvolve as idéias de Tolstoy sobre a escrita da História, talvez seja deslocado e um tanto repetitivo.

 Mas essas são falhas ligeiras perto do triunfo de Tolstói de erigir, mais que uma narrativa de desventuras amorosas e militares, um vasto panorama da condição humana. É um romance que transpira verdade e sensibilidade, e bem merece os muitos elogios que recebeu desde seu lançamento, em 1869. Aos futuros alpinistas, asseguro que é um Everest que vale a pena.
 


(Lido em inglês entre abril e agosto de 2015, edição Penguin Books, tradução de Anthony Briggs, 2005).

(*) Uma rápida consulta à Internet esclarece que foi o alpinista Georges Mallory, e não Edmund Hillary, o autor da frase. Em homenagem a um tempo anterior ao Google e à Wikipedia, mantenho o erro.


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