nunca


- Dá licença, seu Diretor.
- Felipe! Senta, senta. Obrigado por ter vindo tão rápido.
- O Sepúlveda disse que o senhor queria me ver.
- Sim, rapaz. Olha, é coisa meio chata. Fiquei sabendo pelo pessoal que você não quer cooperar com o esquema.
- Que esquema?
- Tsc, você sabe. O das licenças.
- Ah. Pois é, seu Diretor, não quero mesmo.
- Mas por quê, meu filho? Qual o problema? É a sua parte, é isso? Achou pouco?
- Não, senhor. Só não acho certo.
- E o que é que não está certo, meu querido? A sua participação é a mais simples que tem. É só assinar o protocolo de autorização da licença e pronto. Não tem que fazer mais nada.
- Mas é um protocolo falso, Diretor.
- Falso? Quem disse que é falso? Tem minha assinatura lá, meu carimbo! Isso é falso, por acaso? Minha assinatura é falsa?
- Não, senhor. Mas o protocolo não foi registrado pelo sistema. Aí, a licença não existe. Tá errado.
- Tsc... você se preocupa demais, meu filho. Estou dizendo que está tudo certo.
- Não dá, Diretor. Comigo não dá. Não posso. Não quero.
- Bem, agora você me deixa com um problema, Felipe. Sem a sua assinatura, a licença não vai pra frente. Aí, não posso vendê-la. Daí, não recebo nada, nem seus colegas. E todo mundo com escola dos filhos, aluguel, prestação do carro pra pagar, Natal chegando aí e as contas não fecham. E aí, o que eu faço?
- Não sei.
- Sabe o que o Sepúlveda falou pra mim?
- Não.
- Que eu devia demitir você. Contratar alguém que soubesse como fazer as coisas, que não fosse tão borra-botas. Sabe o que eu respondi? Eu disse, calma, Sepúlveda, deixa eu falar com o rapaz, vai ver ele não entendeu o esquema, afinal, não posso jogá-lo no olho da rua sem ao menos dar uma chance pra ele. Afinal, ele também deve ter mulher e filho, escola, aluguel, prestação pra pagar, etc., vai que ele acorda e entende que isto aqui é bom pra todos nós...
- Dois.
- Dois o quê?
- Eu tenho dois filhos.
- Então! Dois, ainda! Imagino o quanto você deve pagar por mês! Eu tenho duas filhas. Lindas de morrer. Olha, essa é a Rebeca e essa, a Érica. Minhas paixões.
- Eu tenho dois filhos e não sei com que cara eu olharia pra eles se aceitasse fazer parte desse esquema, Diretor.
- Como assim, que cara? Com a tua mesma! Eu ando de cara limpa. Sabe há quanto tempo faço isto? Quinze, vinte anos. Sabe quando me pegaram? Nunca! Nunquinha.
- Nunca pegaram o senhor vendendo licença?
- Nunca! Nem quando eu era office-boy! E olha só: cheguei a diretor! Vinte anos!
- E ninguém nunca falou do esquema pra polícia?
- Nunca! Tenho plena confiança nos meus subordinados! Não são meus empregados, são meus amigos!
- E nenhum empregado jamais entrou na sala do senhor com um gravador escondido e gravou tudo o que senhor disse?
Pausa.
- N-não entendi.
- Nunca ninguém gravou o senhor falando do esquema e mandou depois pro Jornal Nacional?
- Não. Isso nunca aconteceu.
- Ah, bom.
Outra pausa.
- Mas poderia acontecer, né, seu Diretor?
- Poderia. Poderia. Mas ninguém se atreveria a fazer isso. Né, Felipe?
- Não sei. Quem sabe o dia de amanhã. O futuro, a Deus pertence. Claro, se... não, deixa pra lá.
- Diga.
- Bem, o senhor mesmo falou de aluguel, prestação de carro. Caso algum dia alguém gravasse algo do tipo, eu acharia muito difícil que esse alguém mandasse a fita pra imprensa se recebesse um... incentivo do senhor.
- Incentivo?
- Mil reais, algo assim. Vá lá, oitocentos. Todo mês, por exemplo.
- É. Acho difícil.
- Aí o senhor, Sepúlveda e o resto do pessoal encontravam outra maneira de continuar com o esquema e todo mundo ficava feliz. Não acha, diretor?
- Acho.
- Tá. Bom, acho que já lhe tomei muito tempo. Qualquer coisa que o senhor queira, estou na minha sala.
- Certo.
- Até mais. Ah... diretor?
- ... sim?
- Notas não-sequenciais, por favor.

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