anacronismos
- Tava pensando...
- Bem que senti a catinga.
- Bem que senti a catinga.
- Engraçadinha. Sério, tava pensando num troço.
- O quê?
- Deve fazer um ano que não pego numa caneta.
- Caneta?
- Pra escrever. Faz um tempão que não escrevo nada à mão. Sabe? Tudo o que eu tenho pra escrever, preencher, agora é por computador.
- Um ano? Que exagero. Certamente você já escreveu depois disso.
- Não, tenho certeza que não.
- Um bilhete? Uma carta?
- Não.
- Mas você teve que assinar alguma coisa. Um contrato, sei lá.
- Uso uma assinatura digital. Colo no arquivo do computador e pronto, é garantida por lei.
- Pagamento de conta, cheque?
- Faço tudo pela Internet.
- Nem assinar um recibo?
- Ninguém assina mais recibo. Tá, talvez eu tenha que ter botado uma rubrica em algum lugar. Mas é um rabisco. Palavras, mesmo, não escrevo faz tempo.
- Um bilhetinho de amor?
- Mando mensagem pelo Facebook, Whatsapp, SMS pelo celular. Nem e-mail uso mais.
- Hm. Pensando bem, também faz tempo que não escrevo nada.
- Não é meio angustiante? Quer dizer, a gente passa milhares de anos inventando um alfabeto, décadas pra aprender a escrever direito e, depois, acaba reduzido a apertar botões numa tábua de plástico. A tecla "A" é igual a "Z", um "2" é igual a uma vírgula. Não há mais caligrafia, erros ortográficos, rasuras, tudo é limpo, asséptico, todo mundo tem a mesma letra, não existe mais qualquer traço pessoal na escrita de ninguém.
- Talvez escrever seja uma coisa já ultrapassada. Como girar o botão da televisão pra mudar de canal.
- Pode ser.
Pausa.
- Não entendi.
- Não entendeu o quê?
- "Girar o botão".
- Virar o botão da TV pra mudar de canal, ora essa. Você não lembra?
- E o controle remoto?
- Isso antes do controle! Você nunca viu alguém girar o botão?
- Nunca.
- Rá! Daqui a pouco vai dizer que não sabe o que é "passar um fax", telefone de discar, quem foi Silvio Santos.
- Já ouvi falar.
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