uma noite com rumi



Muhammad Jalaladdin "Mevlana" Rumi, ou simplesmente Rumi, foi um dos maiores místicos e filósofos religiosos que o mundo já conheceu. Nascido em Balkh (hoje Afeganistão) em 1207, filho de um sábio islâmico, Rumi emigrou ainda jovem com sua família para a cidade de Konya (na atual Turquia), capital do então império turco seldjúcida, fugindo das invasões mongóis que na época devastavam a Ásia. À época, uma das principais influências culturais no continente vinha do Irã (Pérsia), e foi em persa que Rumi escreveu a esmagadora maioria de seus poemas, cartas e sermões.

Afeganistão, Turquia, Irã... na verdade, Rumi representa um importante patrimônio cultural, que transcende séculos e civilizações. Como afirmou Mevlana em seus escritos,


"Diga tudo em persa, mesmo se o árabe é melhor para fazê-lo - o Amor encontrará seu caminho através de todas as línguas por sua própria conta" (tradução livre)



Sua mensagem, além de se originar de um profundo conhecimento do Islã, está imbuída de uma grande dose de tolerância religiosa, amor a Deus e auto-conhecimento por meio da arte, poesia, música e dança. Segundo uma de suas citações mais célebres,

"Venha, venha, seja quem for,
Errante, idólatra, adorador do fogo,
Venha mesmo que tenha mil vezes rompido seus votos,
Venha, e venha novamente,
Nossa caravana não é de angústia"


Desde o princípio, Rumi - ou "Mevlana" ("Nosso Guia", como preferem chamá-lo os turcos) -, desafia os preconceitos que cultivamos sobre o Islã. Sua obra constitui um dos principais mananciais do "sufismo", corrente que se define, grosso modo, como a doutrina mística islâmica que escapa da ortodoxia - por vezes sufocante - do sunismo e do xiismo para apresentar uma via mais pessoal e esotérica para o contato com o Divino. No sufismo, por exemplo, coexistem várias escolas de pensamento, frequentemente divergentes entre si. A maior parte de suas tradições liga-se ao ascetismo e à busca pelo auto-conhecimento, não por meio da internalização de verdades pré-concebidas, mas sim por um processo mais orgânico de questionamento da realidade palpável. Por meio desse processo, e sob a orientação de um mestre, o aspirante deve galgar os passos necessários para atingir o supremo conhecimento de Deus (o Nirvana, a Epifania, ou seja lá como queiram chamar esse momento).

O dia 17 de dezembro é a data mais especial para a ordem de Rumi. Trata-se do "Cheb-i Ruz", ou a "Noite de Núpcias", quando, em 1273, o mestre faleceu, "consumando" sua união com Deus. Nesse dia, há 740 anos, é realizada uma celebração especial na cidade de Konya, onde Rumi fundou sua ordem sufi, a "Mevlevi", que ainda persiste e cultiva as tradições legadas pelo mestre.

Tive a felicidade de presenciar a cerimônia mais recente em Konya, juntamente com várias centenas de pessoas. Atualmente, a celebração, uma mistura de dança, concerto e ritual, é bem conhecida pelos ocidentais e muito presente em imagens turísticas da Turquia. Os seguidores de Rumi se vestem de branco, símbolo da pureza espiritual, usando uma saia que cobre os pés e um chapéu cônico de feltro na cabeça. Em meio à dança, embalados por música tradicional sufi - onde a flauta "ney", feita de bambu, exerce papel fundamental -, os "dervixes" começam a rodopiar, em ritmo constante, por vários minutos, com os olhos fechados, como num transe. Os braços estendidos, a palma de uma mão virada para cima - simbolizando seu desejo último de atingir a comunhão divina, tornando-se um com o Todo-Poderoso - e a outra palma para baixo - indicando, dessa forma, a Terra e sua condição humana, demasiada humana - completam o cenário.

Cerca de 40 dervixes - dos mais velhos aos noviços - tomam parte na cerimônia, realizada num tablado circular, a "semahane", com a audiência ao redor. Um a um, curvam-se diante de uma pele de carneiro estendida na periferia do círculo, símbolo da presença do Profeta Maomé. Também cumprimentam o líder da congregação, o único que porta um turbante verde enrolado no chapéu. Lentamente, despem-se de uma manta negra que utilizam sobre as vestes brancas - mais uma recordação de sua condição humana - e, após alguns movimentos, iniciam os rodopios.

O resultado é hipnotizante. Todos os olhos se fixam nos dançarinos, que parecem abandonar sua individualidade para tornarem-se apenas um, em comunhão perfeita com a música. Dançam com maestria: apesar de manterem os olhos fechados, não esbarram uns nos outros, não ficam tontos, mantendo perfeitamente constante o ritmo das evoluções, a saia graciosamente erguendo-se pela ação centrífuga enquanto, pé ante pé, deslizam pela circunferência do tablado. No rosto, uma paz absoluta, indiferente ao brilho dos "flashes" dos celulares que pipocam a todo instante, enquanto nós, os espectadores, buscamos capturar um instante dessa glória para a posteridade de nossos facebooks e instagrams. Humanos, demasiado humanos.

Lembro-me de uma da míriade de 
interessantes histórias que se conta sobre Rumi. Um dia, o mestre estaria caminhando pelo mercado de Konya, quando ouviu o tinir ritmado do martelo de um ourives contra uma folha de ouro. O som penetrou a mente de Mevlana de tal forma que, despindo-se de todos os seus preconceitos terrenos, o mestre sufi começou a dançar, girando no meio do mercado no compasso daquele som, em breve atingindo o transe e sua tão-sonhada comunhão com Deus. 

Desnecessário dizer que a cerimônia foi uma das mais belas que já presenciei, uma que permanecerá em minha memória por muitos e muitos anos. Por alguns minutos, em meio à música e à visão dos dervixes rodopiantes, senti que era parte, ainda que por um segundo, da revelação de Rumi diante da luz de Xams ("Sol") de Tabriz, ou do que aquele sentiu ao escrever suas maiores obras, o "Divan" e o "Masnavi", obras-primas da exegese corânica. Mas mais sobre isso, depois.





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