(sem título)



Não faz muito tempo, passei por uma época negra em minha vida. Foi quando meti na cabeça a tolice de querer ser escritor. Desse ponto em diante, tudo o que compunha minha vida, meus conhecidos, os lugares que visitava, voltou-se para esse único objetivo fugaz, essa obsessão inconsequente de que eu poderia me sustentar com o que escrevia. Acreditei nessa quimera o suficiente para deixar a casa de meus pais e alugar um apartamento barato na periferia, e devo ter sido bastante convincente, pois minha namorada resolveu fazer o mesmo e fomos morar juntos em nosso novo cafofo do amor. 

Infelizmente, minha convicção não se revelou veemente o bastante a ponto de vencer minha lendária preguiça, de modo que, passados seis meses, o saldo de minha aventura literária se resumia a quatro contos em séria necessidade de revisão e dois meses de aluguel atrasado. Comíamos duas refeições por dia com os restos que minha namorada trazia do restaurante fast-food onde trabalhava, e eu, um Balzac tijucano à espera da fama, nada podia oferecer ao lar exceto a ocasional faxina, aguardando sentado diante do computador, o olho pregado no horizonte gris além da janela, que a inspiração passasse em casa para tomar um café. 

Gosto de pensar que fiz a minha parte: inscrevi os contos em todos os concursos que encontrei, enviei-os a quem pensei que pudesse me ajudar - blogueiros, editores de revistas universitárias, jornalistas, professores -, contactei publicações literárias, et coetera ad infinitum. Uma pequena editora chegou a demonstrar interesse em publicar um de meus textos numa coletânea de jovens autores, mas eu devia ter suspeitado quando me pediram quinhentos reais a título de “contribuição” para a publicação. Em meu desespero, quase aceitei. Quando tentei entrar novamente em contato com o editor, porém, descobri que a empresa fechara, seu antigo dono já atarefado com uma nova firma no ramo de fabricação de salsichas. 

Uma noite, eu e minha namorada assistíamos na TV uma matéria sobre o ciclo de reprodução das baleias do Japão. Minha namorada demonstrava um interesse incomum nos cetáceos nipônicos, e desviei a atenção da tela para ela. Senti pena. Passava horas sem fim no emprego, já surgiam novas olheiras sob as olheiras antigas e seu cabelo recendia eternamente a fritura e mostarda. Em nenhum momento, porém, recriminara-se por ter tomado a decisão de morar comigo, ao contrário, apoiava o sonho de eu me tornar um novo Guimarães Rosa. Buscava me encorajar, lendo meus textos em voz alta. Se eu a amava? Melhor não dizê-lo. Mas a respeitava profundamente e me alegrava com sua presença, sem a qual eu seria, sem dúvida alguma, incapaz de deixar o ninho e dar qualquer passo rumo à minha independência. Pensei nas tardes vadias em que eu jogava sudoku quando deveria estar escrevendo e senti vergonha. 

Não sei se por acaso ou pura coincidência (acaso, provavelmente), a imagem das baleias japonesas foram substituídas pelo rosto do apresentador do programa, que anunciou uma entrevista ao vivo com um renomado autor brasileiro. Minha atenção passou imediatamente da namorada para a televisão. Não, não se tratava de ninguém por quem eu nutrisse qualquer admiração intelectual, ao contrário, escrevia livros horrorosos e sempre parecia mais preocupado em cultivar sua imagem pública, opinando sobre qualquer assunto na televisão ou nos jornais, do que em melhorar sua técnica literária. Mas a aparição do homem ali, na minha frente, naquele momento de angústia e indecisão em minha malfadada carreira, soava para mim como um presságio de Delfos. Pedi para minha companheira interromper algum comentário seu sobre as baleias e sorvi cada palavra da entrevista. 

Novamente, o escritor falava superficialmente de algum assunto, a Síria ou o baixo crescimento econômico brasileiro, mas com tanta convicção que, por um segundo, senti-me impelido a concordar com ele. Quando a conversa passou para seu novo lançamento, porém, senti minha cabeça irromper em chamas. Um livro! Publicado por uma grande editora! Naturalmente, o enredo revolvia em torno de uma daquelas grandes porcarias classificadas de “romance histórico”, com personagens inverossímeis e um fiapo de enredo a disfarçar um vomitório de referências históricas coletadas após duas horas de pesquisa na Internet. Mas o que mais me interessava era que aquele senhor lograra manipular as forças do mercado editorial, hipnotizando-o, convencendo-o a lançar seu calhamaço a um público que estava sedento em chegar às livrarias para comprar a primeira edição, não para lê-lo, obviamente, mas para deixá-lo na mesa de centro da sala, para falar com os amigos e familiares sobre ele, para participar dessa ciranda deliciosa do consumo de bens culturais, que fala mais de “consumo” que de cultura. E o escritor era um protagonista tão vivaz desse jogo que eu mesmo quase sucumbi à tentação de comprar seu último romance. 

Como um aspirante a escritor, meus pensamentos eram de outra natureza. Meu desespero em ser bem-sucedido naquela profissão fazia-me cogitar, com mais força a cada minuto, em contactar aquele autor, extrair de si algum instrumento que pudesse me empurrar na direção certa. Pouco importava que, apenas seis meses antes, eu execrara sua prosa horrível e seu falso ativismo político. Naquele momento, diante de sua imagem na televisão, eu o ouvia como Guy de Maupassant algum dia terá ouvido Flaubert, como um jovem talentoso que precisava apenas de um pouco da sombra de um artista mais experiente a fim de despontar para o mundo. Do mesmo modo - a idéia tomava impulso próprio, crescia em espasmos, desordenamente, sem influência de minha vontade -, eu pensava que ele não se oporia a um diálogo franco e estimulante com a nova geração, sequioso como deveria estar um veterano, afinal, de demonstrar sua superioridade ante seus aprendizes. Pois todo Freud terá seu Jung, a cada Warhol, seu Basquiat, eu concluía em minha sandice, já pensando, enquanto a entrevista encerrava, no que faria para contactá-lo. 

Naturalmente, tentei os canais mais ortodoxos. Enviei mensagens eletrônicas à sua editora, ao diário onde ele escrevia sua coluna, ao e-mail que constava em sua página pessoal. Nada recebi de volta além de garantias de terceiros que o autor em breve responderia minha mensagem, instando-me, nesse ínterim, a adquirir os últimos produtos ligados a ele, incluindo um DVD com a adaptação cinematográfica de seu último livro e uma agenda autografada pessoalmente. Insisti e mais uma vez fui brindado com as mesmas respostas impessoais e falsamente amistosas. Na terceira vez, até estas cessaram. 

Dei início ao embate telefônico. Liguei à responsável pelas relações públicas da editora. Esta, surpreendida por minha insistência, garantiu-me que minhas missivas haviam sido encaminhadas ao escritor, mas o grande número de cartas recebidas de outros fãs indicava que uma resposta pessoal demoraria “um tempo considerável”. Ou seja, nunca. Argumentei que precisava falar com ele urgentemente. Conversei, debati, ameacei, até que ela me bateu o telefone na cara. Obtive reação semelhante no jornal. Não pude deixar de notar que, para uma personalidade tão pública, era difícil chegar até ele. 

A partir daí, eu já havia abandonado todos os meus contos e meu romance natimorto. Dedicava-me exclusivamente a escrever longas cartas - agora em papel; pensei que uma carta manuscrita, tão rara nos tempos de hoje, causaria boa impressão - aos editores. Pelo menos três por semana. Também passei a estudar as pessoas em torno do escritor: o tradutor de seus livros para o inglês, seu personal trainer e todos quem eu pude descobrir que tinham com ele alguma relação. Quando eu descobria que ele daria uma sessão de autógrafos em alguma livraria ou uma entrevista na televisão, lá eu ia em busca de um minuto de conversa. Mas normalmente eu era impedido pela segurança, e percebi que a editora buscava impedir qualquer contato meu com o escritor. 

Minha companheira percebeu a mudança de meu trabalho quando encontrou numa gaveta uma pasta minha cheia de recortes sobre o autor. Estourou comigo. A tensão do trabalho, acumulada com a frustração de me ver de pernas pro ar enquanto ela se esforçava para construir um lar comigo cobrou seu preço, e ela terminou saindo de casa. 

Pode parece estranho, mas o fato não me aborreceu muito. Consolei-me pensando que não havia lugar para ela, nem ninguém, nesta nova fase. Minha obsessão fora transferida para encontrar o tal autor, na esperança de que, com um simples toque seu de Midas, eu me tornaria um grande sucesso. Seria mais fácil que osmose. Nem me preocupava em escrever nada. Não era necessário. 

Após muito tempo, finalmente recebi uma resposta sua. Dizia: 



“Caro D______, 

Quer ser um bom escritor? Sente o rabo na cadeira e escreva. 

Não me procure novamente.” 



Segui seu conselho. Voltei para a casa de meus pais, formei-me em Contabilidade e, hoje, sou feliz.



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