sandoval é um cara criativo




- Ô ô meu querido, você pirou? Enlouqueceu, é isso? Tomou remédio vencido, brigou com a namorada, comeu cocô?! Que que te deu, rapaz! Vem cá, você trabalha pra mim há quantos anos?

- Seu Luís, eu só tava tentando tornar o passeio mais interess…

- Responde, Sandoval! Há quanto tempo tu trabalha aqui?

- Sete anos.

- E nesses sete anos, você não aprendeu como é que um guia faz?

- Aprendi, seu Luís.

- Então fala pra mim, o que é que eu sempre digo que um guia tem que ser?

- Pontual, cordial, jovial e tchau.

- Pontual, cordial, jovial e tchau, issaí. Chega lá, faz o teu e bai, não acrescenta, não inventa, senão a coisa esquenta. O que é que deu em você pra ficar tirando onda, Sandoval?

Quando o ônibus finalmente entrou em movimento, Sandoval se ergueu da cadeira ao lado do motorista, agarrou o microfone e se posicionou no meio do corredor do veículo, analisando por alguns segundos os rostos dos velhinhos. Via neste grupo as mesmas faces vermelhas do grupo do dia anterior, e do dia antes desse, se não os mesmos rostos ao menos as mesmas expressões de curiosidade, sono, satisfação e mau-humor dos senhores da terceiridade. Pensou se todos os idosos americanos teriam o mesmo cheiro ou se o ônibus já estaria impregnado dele. Sentia novamente no ar o cheiro de pele antiga, o mesmo perfume adocicado da alfazema delas e da loção pós-barba deles; a ocasional fragrância de ovo cozido que alguém teria derrubado na camisa no café da manhã do hotel e, sem paciência para voltar ao quarto e trocá-la, decidiu vir ao passeio assim mesmo. Ouvia as reclamações em relação a tudo, ao calor do dia e ao frio da noite, os resmungos, as risadas gorgolejantes, as expressões de espanto ao se depararem, elas, as boas senhoras de Massachusetts, Califórnia e Flórida, com os “selvagens” morenos e quase despidos a andarem nas avenidas do centro da cidade. Seu contato mais estreito com os nativos, pensou o guia, se resumiria a um “bom dia” ou um “obrigado” envergonhado num restaurante à beira da praia enquanto pagavam preços extorsivos por um filé com fritas. Talvez - e queira Deus que não! -, um furto rápido da câmera digital numa das vias internas de Copacabana.

Sandoval sabia que, no tipo de turismo controlado e protegido que praticavam, ele seria um dos raríssimos locais com quem fariam contato. Decidira, portanto, oferecer-lhes algo diferente e divertido naquela manhã do que o discurso de praxe de todos os outros passeios.

- Bom dia! - exclamou em seu inglês com leve sotaque mineiro, fruto de três anos lavando pratos em Nova York - Sejam bem-vindos ao Rio! Meu nome é Sandoval e será o meu prazer ser o guia de vocês hoje. Vamos dar um passeio por esta bela cidade e ver alguns de seus monumentos e edifícios históricos. Daremos uma pausa na hora do almoço, quando as senhoras - desviou a vista de uma das velhinhas, que o devorava com os olhos - poderão vestir seus biquínis e mergulhar na praia de Ipanema. Quanto aos homens - dirigiu-se a um senhor de óculos e cara amarradíssima, sentado no lado esquerdo - poderão beber uma caipirinha enquanto esperam… ou duas… ou três.

Risos. Sandoval odiava o discurso ensaiado, sentia-se um robozinho de brinquedo a repetir as mesmas palavras. Tinha que admitir, porém, que elas cumpriam o objetivo de conquistar a simpatia da audiência logo nos primeiros minutos.

- Caso tenham alguma pergunta, não hesitem em fazê-la.

- O senhor pode falar mais alto? - guinchou uma mulher do fundo do ônibus. Sandoval apoiou o pé num assento vazio e ergueu o corpo até encostar a cabeça no teto.

- Está bom assim?

Mais risos. Desceu, os músculos da mandíbula contraídos num sorriso forçado.

O ônibus deu mais uma guinada pelo Aterro do Flamengo e se preparou para entrar na Rio Branco. Sandoval pediu ao motorista para aumentar o ar-condicionado, pois já via algumas senhoras se abanarem furiosamente com os folhetos turísticos.

Enquanto aguardavam o sinal abrir, o guia usou mais de uma de suas “iscas de empatia”, como chamava os truquezinhos para captar a atenção do grupo. Ofereceu um largo sorriso ao casal da terceira fileira e lhes perguntou de qual Estado americano vinham.

- Ohio. - exclamou contente a senhora. O velho permaneceu como estava, tossindo.

- Vejam só, nunca tivemos turistas de Ohio antes! - Ele não tinha a menor idéia se era verdade, mas isso não impediu que os dois velhinhos sorrissem para ele.

O veículo cruzou a esquina e principiou a descer a avenida. Está na hora, pensou, antes de erguer o microfone diante de si.

- Os senhores podem ver à minha esquerda a praça da Cinelândia, chamada assim por ter abrigado vários estúdios de cinema nos anos 40, quando o exército dos Estados Unidos ocupou a cidade do Rio de Janeiro.

Os velhinhos observaram a praça com atenção, mas Sandoval ouviu alguns murmúrios intrigados.

- Ali, no início da praça, ainda podem ver o cinema Odeon, muito popular durante a presença americana na cidade.

- Com licença - interrompeu o velhinho de Ohio -, mas disse que nossas tropas ocuparam o Rio?

- Exatamente, senhor. Entre 1944 e 1953, o Rio de Janeiro esteve sob ocupação dos EUA, que queriam impedir que os nazistas e, depois, os comunistas, espalhassem sua influência sobre o Brasil.

Sandoval podia sentir o rosto esquentar, mas a firmeza em sua voz parecia ter surtido efeito: o idoso pronunciou um tímido agradecimento e se aquietou.

- Do outro lado da praça, por favor, prestem atenção neste belo prédio, meus amigos, pois se trata do Teatro Municipal, uma das construções mais bonitas do País. Foi comissionada pelo próprio Imperador Pedro III, que infelizmente desapareceu em 1879 no Pacífico enquanto explorava novos locais para a pesca do camarão. Pedro III, o penúltimo Imperador do Brasil, era fanático por camarões e todo tipo de frutos do mar, razão que o fez travar um curto conflito com a França entre 1905 e 1906 pela proteção dos locais de pesca, chamada a “Guerra da Lagosta”.

- Eu adoro coquetel de camarão! - exclamou uma velhinha.

- O Imperador Pedro III também, minha senhora. - respondeu, e todos riram. O guia relaxou um pouco. O plano estava dando certo.

- Agora podem ver à direita o Museu Nacional de Belas Artes. Reparem no estilo arquitetônico predominantemente turco: isto se deve à Missão Turca de 1810, que chegou ao Rio, então capital do Império Sul-Americano do Brasil, para promover a cultura e a arte do Império Turco-Otomano.

Ele disse turcos?, sussurrou um senhor.

Enquanto isso, o motorista tentava a todo custo navegar entre os veículos do rush da manhã de sábado, que era pior que o da tarde e só superado pelo congestionamento da noite e da madrugada. A interrupção dava a Sandoval tempo para continuar repetindo o texto que decorara na noite anterior.

- O Paço Imperial, que os senhores podem ver à direita, foi construído durante a Idade Média por povos desconhecidos. Há quem diga que foram marcianos, mas a hipótese mais aceita é a de que teriam sido os astecas, que ocuparam a região do Rio de Janeiro durante a dinastia Zanj, no século oito antes de Cristo.

Suspiros de assombro. Uma senhora apontou dois rapazes andando no Paço e murmurou à amiga:

- Veja, Agnes. Astecas.

Um senhor de camisa abotoada até o pescoço e calado até então animou-se:

- Mas os brasileiros falam português, não é verdade?

- Nem sempre, amigo, nem sempre…

- E que casa é aquela? - apontou uma velhinha.

- Aquele belo sobrado, senhora, pertenceu ao rei da nação africana de Daomé, que ocupou o Rio de Janeiro durante o século doze.

- Onde acontece o Carnaval? - perguntou outro, mais assanhado, levando um muxoxo de reprovação da esposa.

Sandoval explicou que, na verdade, o célebre desfile das escolas de samba do Rio fora transferido há anos para a cidade argentina de Rosário, onde um sambódromo fora construído especialmente para o evento. Até Nílson, o motorista, virou a cabeça de espanto.

- Ocupação americana, marcianos… tudo bobagem! Você está nos fazendo de trouxas! - um homem bronzeado levantou na última fileira. - Eu li este livro inteiro. - exclamou, brandindo um guia turístico na mão - Não há nada sobre as afirmações tresloucadas que o senhor tem feito.

Como um raio, todas as cabeças tornaram a fitar Sandoval, que simplesmente respondeu:

- Não é porque não está no livro que as coisas não aconteceram como aconteceram, senhor. A história do Brasil é muito vasta.

Aproximou-se nervoso do fim do ônibus e estendeu a mão:

- Posso ver o livro?

Ele o pegou, folheou-o por um momento e devolveu ao velhinho:

- É uma versão desatualizada. - alguns riram. Emburrado, o senhor calou-se e voltou a se sentar.

Após atravessar a Candelária, o ônibus tomou a Presidente Vargas.

- Continuemos de qualquer maneira…

*

No dia seguinte, Sandoval era chamado ao minúsculo escritório do dono da empresa, que fumegava.

- Seu Luís, - gaguejou o rapaz, os olhos grudados no chão, as mãos crispadas, imbuído da tristeza injustiçada dos incompreendidos -, eu só pensei que seria bom oferecer um produto diferente pros clientes…

- Você falou que o Carnaval era na Argentina, Sandoval?!

- Os turistas não querem ler um livro de História quando chegam aqui, seu Luís. Eles querem fantasia, comer bem, fugir da realidade um pouquinho. Se a gente dá isso a eles, qual é o problema? Qual é a diferença se digo que o Cristo Redentor foi inaugurado em 1931 ou 1941? Ou que o Carlos Drummond de Andrade nasceu aqui, e não em Minas? A própria História oficial é uma mentira, seu Luís. Por exemplo, se o senhor pegar a invasão do Rio pelos franceses…

- Parou! - gritou o chefe, espalmando a mesa - Se quiser inventar, vai ser artista. Isto aqui é trabalho!

Sandoval foi demitido por justa causa. Deixou a empresa com o salário parcial do mês, ele e toda a história da magnífica dinastia asteca de Zanj.



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