todo mundo sabe que não se dorme depois de levar uma pancada na cabeça



- Alô?
- Mãe...?
- Oi, filha! Que surpresa.
- Tudo bem com a senhora?
- Tudo. Mas eu é que pergunto, filha. Nunca mais ligou.
- Trabalho, né, mãe. A maior correria. E essa peste do Francisco, também, não me dá paz um minuto.
- Não fala assim. Tudo bem com ele?
- Não.
- Não? Quê que ele tem?
- Nem sei, mãe. Nem sei se ele tá com alguma coisa.
- Como assim, filha? Fala direito.
- Tô com medo.
- Maria de Fátima! Pára que você está me deixando assustada. Respira fundo e me conta isso direito. O que é que o Chico tem?
- Começou quando ele voltou da escola. Chegou reclamando da cabeça, que tinha batido a cabeça na hora do recreio, que tava doendo, que tava se sentindo todo mole. Fui procurar galo, ferida, né, mas nada. Botei gelo, mas não inchou. Ele, só reclamando que tava mole, com sono, e eu com medo, lógico.
- Valha-me. E você foi direto pro pronto-socorro, né, Maria de Fátima.
- Levei ele pro pronto-socorro. Fiquei três horas na espera, comigo segurando o saco cheio de gelo na cabeça dele, a água pingando, ele reclamando de dor. Mas não apareceu nada, galo nenhum. A gente entrou, o médico examinou, bateu um raio-X e não viu nada. Disse pra ficar de observação por um dia e mandou a gente embora.
- E o Chico?
- Jurando de pé junto que ainda tava doendo.
- E sem galo.
- Nenhum. Chegamos em casa, ele foi pro quarto. Agarrei no braço dele, falei logo que era pra ele ficar botando o gelo na cabeça e não tirar de jeito nenhum. 

“Presta atenção. Você não vai nem pensar em deitar.  Ouviu? Se deitar, vai dormir e morrer.”

- Ai, filha.
- Ah, falei. E ainda disse:


“Se você deitar, eu juro por Deus que você vai morrer porque é isso o que acontece com quem dorme depois de levar uma pancada na cabeça.”



- É só assim que ele entende, mãe. Esse menino é muito atrevido. Tem que assustar porque é só assim que ele ouve.
- E aí?
- Ficou acordado, né. Já era umas oito da noite. Botei ele pra ver televisão com o saco de gelo trepado em cima da cabeça, ele reclamando que tava se molhando. Trouxe um nescau, botei uma toalha no ombro dele, ele olhou pra mim com aquela cara de raiva dele. Aí, pensei numa coisa.
- O quê?
- Saí da sala e fiquei matutando.




“Esse moleque tá de gozação comigo. Não bateu a cabeça porra nenhuma. Tá mentindo pra me fazer de boba.”



- Pensei um bocado, mãe. Ele sempre me desafiou, a senhora sabe. Vive inventando história, pregando peça nos outros...
- Mas você acha mesmo que ele inventou isso, Maria de Fátima?
- Tô achando, sim.
- Eu sei que ele é meio agitado...
- Agitado nada. É um capeta. É o Capeta.
- Pára com isso, minha filha, Deus me livre, bata na boca antes de falar uma coisa dessas!
- É um mentiroso. A senhora sabe.
- Enfim. O que eu quero dizer é que não é possível que ele tenha inventado uma coisa séria dessas, e, mesmo que tivesse, não ia continuar depois de você ter levado ele no médico...
- É possível sim, mãe. Até parece que a senhora não sabe do quê esse menino é capaz. Lembra o que ele fez ano passado com o cachorro da vizinha? Tiveram que amputar a perna do bichinho.
- Eu lembro e foi horrível. Mas não tem nada a ver com essa pancada. Ele não pode ter chegado a esse nível.
- Pois eu acho que sim. Quando pus ele na frente da televisão, fiquei olhando a cara dele, sem que ele notasse. Pra ver se soltava um sorrisinho, um riso, qualquer coisa que mostrasse que tava mentindo. Ele relaxou, ficou lá, vendo desenho e tomando nescau. Tava escuro, mas eu vi... juro que vi... um risinho no canto da boca. A água do gelo pingando. Tanta preocupação à toa! E eu, tão puta! Só pensava:


“Esse tempo todo e ele aí, fingindo. Mas como posso provar que ele tá mentindo? O médico não viu nada. Ah, que ódio. Daqui a pouco vai dizer que não pode ir pra escola amanhã. Mas vai, sim! Ou não vai? E vai ficar aqui, assistindo TV, me azucrinando?!”


- Eu não podia deixar ele me enganar, mãe!
- O galo apareceu?
- Nada! Fiquei até triste, porque, se aparecesse, era verdade e eu ia poder dormir tranquila. Mas nada. Aí, disse pra mim mesma, “se ele quer sacanear comigo, vou sacanear também”. E o resultado taí.
- Hã?
- Que sono...
- Que resultado, filha? Que é que você fez?
- Não estou nem ouvindo você direito... Já bebi tanto café.
- Cadê o meu neto?
- Tá lá no quarto dele. O capeta.
- Melhorou? Passou a dor?
- Ele diz que sim.
- Ele chegou a dormir de ontem pra hoje, pelo menos?
- Qual o quê, mãe. Ele não dorme faz três dias.
- TRÊS DIAS?!
- Foi difícil, viu. Primeiro, botei os pés dele numa bacia de água gelada, mas, quando vi que ele ainda conseguia tirar uns cochilos, fiz ele ficar em pé com a cara virada pra parede. E com aqueles troço enfiado no ouvido, escutando música no máximo, aquelas porcaria de rock que ele adora.
- M-m-mas M-Maria de Fátima...
- Depois eu tive a idéia de botar ele em cima de uma pilha de revista. Toda vez que ele tenta dormir, perde o equilíbrio e acorda.
- Minha filha...
- Nem reclame, mãe. Você acha que é fácil? Eu também estou aqui, acordada depois desse tempo todo. Brincadeira. Filho é fogo, viu.
- Estou indo praí agora.
- Não, não precisa. Ele tá quase confessando.
- Confessando?
- Pensou que ia me fazer de pateta. Mas tá fácil. Se ele pode fingir que bateu a cabeça, eu também posso fingir que acred... MOLEQUE! QUE É QUE VOCÊ TÁ FAZENDO AQUI, MOLEQUE?! VOLTA JÁ PRO QUARTO!! NÃO FALEI QUE ERA PRA FICAR NO QUARTO?? VOCÊ QUER QUE EU VENHA COM O ALICATE DE NOVO?? QUER??
- ... aria, mãe de Deus, rogai...
- ... DE VOCÊ SE EU CHEGAR AÍ E VOCÊ TIVER DORMINDO!! Ai, desculpa, mãe. Que é que eu tava falando? Ah, então. Resolvi jogar o jogo dele. Não quer inventar história, vir cheio de manha? Então vai ficar aí, até dizer a verdade. Não se inventa uma história dessa pra mãe, mamãe. Pelo amor de Deus.





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