élcio



- O senhor vai se servir de novo?

Élcio tomou o cuidado de falar alto o suficiente para preservar o tom de autoridade, mas baixo o bastante para que os outros clientes não o ouvissem. Era importante preservar a discrição do restaurante do Dr. Figueira. O velho empresário é tudo pra mim, pensou o garçom.

- Hã?

- Eu perguntei se o senhor vai se servir do bufê de novo.

Longe dele causar um escândalo, se o gordinho resolvesse engrossar.

- Vou, ué. Não pode?

- Pela quarta vez não pode.

Se ele resolvesse engrossar, Élcio o puxaria pelo colarinho e o jogaria porta fora. Mediu a massa corporal do sujeito com os olhos e duvidou que conseguiria, mas iria tentar.

- Como assim? Onde é que tá escrito que não pode?!

- Normas da casa.

Provavelmente teria que pedir ajuda a um dos colegas.

- Meu amigo, isso não faz sentido, nunca vi qualquer restaurante botar limite de vezes quantos...

- Mas este não é “qualquer” restaurante, senhor. Aqui é o Figueira´s, um lugar tradicional, de bom gosto, de família. Nós não podemos ter homens como o senhor se servindo quantas vezes quiserem. Não é assim que funciona.

Ou até de dois colegas.

O homem estacou, olhando estupidamente para Élcio. Limpou as mãos suadas na camisa pólo e buscou com os olhos alguém que parecesse mais importante que Élcio. Mas eu sei bancar o mâitre, pensou o garçom. Ponho o queixo pra cima e comando que é uma beleza.

O truque parecia funcionar. Caso hesitasse, era possível que o gordinho lhe passasse uma descompostura, atraindo a atenção dos comensais. Mas o tom de Élcio fora tão perfeito que era o próprio glutão que gaguejava, indeciso sobre como proceder. A partida estava ganha antes de começar.

- "Homens como eu"? - perguntou timidamente - O que você quer dizer com...

- O que eu quero dizer é que talvez não seja uma boa idéia o senhor comer mais. Veja, eu tomei a liberdade de observá-lo enquanto o senhor comia. Fiquei olhando você ir e voltar do bufê várias vezes, sempre com o prato cheio, quase derramando, e me sinto obrigado a falar, foi meio asqueroso.

Aquilo não era piada, e sim a sobrevivência do Dr. Figueira. Pensou nas mãos calejadas e portuguesas do velhinho, viúvo, sem filhos, com o restaurante como único legado de sua existência medíocre. Se glutões como aquele frequentassem o restaurante diariamente, ele fecharia num piscar de olhos.

- Mas eu vou pagar, tenho direito...

- O senhor vai pagar e tem o direito de comer o quanto quiser. Mas não nessas porções indecentes.

- Mas...

- Desculpe, mas tenho que ser franco. O senhor é gordo. Muito. Mal cabe na cadeira. Se fosse magro, colocaria muito menos no prato. Ou até colocaria um pouquinho mais. Não teria problema. Tem gente que é magro de ruim. Minha prima, por exemplo, pode comer um prato inteiro de rabada e continuar um varapau. Nós botamos o apelido nela de “Aspiradora”. Ha, ha. Tem um metabolismo impressionante, a garota. Infelizmente, não é o seu caso. O senhor não tem a menor idéia de quanta comida o seu organismo precisa. Então, fica aspirando quilos e quilos, sem a menor necessidade. Isso ofende os clientes.

- Ninguém reclamou comi...

- O Brasil é um país pobre! - exclamou Élcio - O senhor não sabe? Tem muita gente por aí passando fome. Fome! E aí vem o senhor querendo engolir uma tonelada de comida só porque pode pagar? Puta troço nojento. Vai, fica em casa, comendo batata frita e jujuba. Não venha aqui promover os seus excessos.

- Eu tenho o dir...

O garçom esmurrou a mesa, fazendo saltarem os talheres. Atrás de si, clientes e funcionários observavam o sermão com cara muito séria. O cliente parecia prestes a irromper em lágrimas.

- O senhor não vai comer nem mais uma coxinha de galinha do bufê! Que diabo! Pense nas criancinhas com fome!

A menção das criancinhas, por algum motivo, finalmente enfureceu o gordo, que ergueu o corpanzil da cadeira, esbaforido, e arqueou os braços como um búfalo. Élcio pensou que talvez fosse uma boa hora para chamar a ajuda dos dois garçons. Ou de três.

- Isso é um absurdo! - bradou.

O garçom se preparava para recuar quando sentiu uma mão familiar pousando sobre seu braço.

- Eu peço imensas desculpas. - murmurou a voz antiga do Dr. Figueira, surgindo detrás de Élcio - Ele não está num dia bom... nós temos tido alguns problemas aqui no restaurante. Por favor, - e estendeu a mão ossuda em direção ao cliente -, o senhor não precisa pagar nada pelo almoço.

Élcio tremeu de desagrado. Sempre perdulário, o Dr. Figueira! O gordo desanuviou e desfez a posição de ataque, olhando estupidamente para a palma que o velho lhe oferecia. Encarou Élcio e novamente a mão. Finalmente, abraçou-a com os dedos balofos e a comprimiu.

Duas horas depois, quando o cliente cruzava a saída, satisfeito, Figueira sussurrou para o empregado:

- Porra, Élcio, já te disse que você não pode ficar fazendo essas merdas.

Élcio se aborreceu, mas não muito. Amava o velho, e todo amor tem que ser meio cego.



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