um isqueiro






Um isqueiro. Alguém tem um isqueiro.
Aqui o tens. Aqui está o meu isqueiro.
Obrigada. É um belo isqueiro.
Carrega uma história interessante, esse isqueiro.
Gostaria de ouvi-la.
Talvez em outra ocasião. É uma história triste. Nesse momento, tenho vontade de conversar apenas sobre assuntos alegres com a senhorita.
Imagino que assuntos seriam. Não há nada de alegre lá fora, só se fala de guerra, doença e talões de racionamento.
Falemos de música, então. Saturno poderá devorar seus filhos novamente, mas sempre haverá a música.
Contanto que não seja a música dos canhões.
Já ouviste "Night and Day".
Temo que não.
É um novo compacto do Cole Porter. É absolutamente fenomenal.
Gosto muito do Cole Porter.
Tenho a coleção completa em minha casa, ao lado de meu sistema fonográfico novo. Portátil, último tipo. Tenho certeza de que gostaria de ouvi-lo.
Talvez em outra ocasião.
Se gostas do Cole Porter, provavelmente já ouviu Nat King Cole, Louis Armstrong, o George Gershwin.
Já ouvi e aprecio muito esses todos. E também a Billie Holliday, tenho todas as revistas ilustradas em que aparece, considero-a verdadeiramente fascinante.
Possuo todos os discos.
Ao lado de seu sistema fonográfico portátil, último tipo.
Exatamente.
... onde moras?


E o Vargas, hein.
Não falemos de política.
Nada de política, portanto.
Conversemos mais sobre música. Não vi, entre os seus, nenhum disco nacional.
Não fazem meu gênero. Acho insuportáveis as lamúrias do Vicente Celestino ou os trinados daquela portuguesa vestida de baiana.
Gostas de samba.
Ora, por favor. Só ouço música de qualidade.
Tens absolutamente que ouvir o Noel Rosa. Ouvi o disco quando visitei uma amiga em Petrópolis.
Canções de moda... Maxixes. Não têm futuro.
E o cinema, então. Viste o King Kong.
O gorila com a mocinha no topo do prédio. Brincadeiras de criança. Tens que ver os filmes do Marcel Carné, Jean Renoir, Fritz Lang. Esses sim, têm "élan", são verdadeiros mestres.
Gosto muito das fitas do Carlitos.
Bom para gestantes. Sabes, para quem gosta do Gershwin, até que tens umas preferências esquisitas.
Dá-me outra bitoca no peitinho.
Xuac. Daqui a pouco, diz-me que gostas de ler esses folhetins de moça.
Isso não. Um tio me deu bons livros. Leste o novo do Hemingway.
Hm, moderninha, a "melindrosa".
Não diga bobagens. Esse tio voltou da América absolutamente maravilhado. Diz que lá é que é civilização: a Estátua da Liberdade, o concreto. Foi vender borracha e não vê a hora de voltar para lá, sem a borracha.
Sagaz, seu tio. A América civiliza o mundo. Veja nossa força expedicionária, indo tomar sol na Itália: não têm onde cair morto. Ou os decadentes ingleses. Sem os americanos, já estaríamos todos a falar alemão e andar em passo-de-ganso.
Não falemos de guerra, já disse. Dá-me um cigarro.
E o isqueiro. Ah, ainda não me contaste a história do isqueiro.
Tem uma história muito interessante, esse isqueiro.
Sim, sim, já o disse, e agora a quero ouvir.
Seu pedido é uma ordem.





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