antônio & francisco


- Boa noite, Francisco.
- Antônio! Que surpresa.
- Não vai me convidar pra entrar?
- Hã? Sim, claro, entra. O que vai querer? Red Label, não é? On the rocks?
- Sem gelo. Copo baixo.
- Claro. Senta. Que noite, hein? Veio de táxi?
- Vim andando.
- Com essa chuva?! Que coragem, rapaz. Se você tivesse ligado, a gente tinha combinado um drinque.
- Eu não esperava vir.
- Ah. Foi uma surpresa, mesmo. Uma boa surpresa. Toma, copo baixo, sem gelo. E o Geisel, hein?
- Não vim falar de política, Francisco.
- Hm. A que d-devo a v-visita, então?
Por um segundo, Antônio admira o fluido dourado e viscoso no interior do copo. Seu rosto está pálido e úmido, tão úmido quanto a capa pingando que deixou pendurada numa cadeira da sala de Francisco. Não sabe se da chuva ou das lágrimas.
- Beber. É isso que homens fazem, não é, Francisco.
- Verdade.
- Homens de verdade sentam, bebem e conversam. Vão a bares ou às casas dos amigos, mas, no final, eles sentam um diante do outro, bebem uísque e falam. Nós fazemos isso porque isso são coisas que homens fazem há séculos. Nossos pais e avôs já faziam, e tenho certeza que nossos filhos farão o mesmo.
- Não tenho filhos, Antônio.
- Você entendeu - pausa - Nós somos amigos, Francisco, não somos?
- Claro.
- Há muito tempo.
- Muito.
- Por quê?
- Ahn... sei lá. Acho que porque temos afinidades em comum.
Antônio dá uma risada seca. Um brilho ilumina o céu e os dois aguardam o trovão, que nunca vem.
- Sim, temos afinidades comuns. Mas creio que somos amigos também porque, de certa forma, admiramos um ao outro. Concorda?
- Naturalmente.
- Poderia dizer algo que admira em mim, Francisco?
- Bom - olhou para o tapete -, acho você uma pessoa inteligente. Tem uma conversa interessante. E escreve muito bem.
- Essas características tornam minha amizade mais fácil? Mais desejável?
Outro relâmpago, desta vez seguido diligentemente por seu trovão. O bairro todo fica às escuras. Antônio e Francisco mergulham nas trevas com a resignação de guerreiros.
- Droga da Light. - murmura o anfitrião.
- Responda, por favor.
- Ah, sei lá, Antônio. Acho que sim. Mas qual a razão desse papo deprê, hein?
- E minha mulher, ela torna nossa amizade mais fácil?
Mais um trovão. Francisco ouve ondas de chuva a chicotear a janela, alguns pingos entram pelas frestas. Não percebe que sua testa está gelada e coberta de suor, ou que os cubos de gelo começam a tilintar sem cessar contra o vidro de seu copo. Tenta manter a calma. Mira os olhos onde pensa se situarem os olhos de Antônio, e engrossa a voz:
- O que a Lucinha tem a ver com isto?
- Por favor, responda a pergunta.
- Não! Não respondo! Que brincadeira é esta, Antônio? Você entra na minha casa no meio da noite pra ficar aí no escuro a fazer insinuações?
- Não insinuei nada. Só perguntei se o fato de eu ser casado com uma bela mulher estimula você, de alguma maneira, a ser meu amigo.
- Óbvio que não! Mulher de amigo pra mim é igual a homem.
- Então estou começando a achar que você mudou de time, Francisco.
Pousou o caubói na mesinha de centro.
- Eu sou seu amigo por te admirar. E também porque tenho medo de ficar sozinho. Sempre tive. Mas encontrei você e a Lúcia. E isso me bastou. Eu sou uma pessoa muito reservada, Francisco.
- Eu sei.
- Tenho medo de deixar as pessoas se aproximarem. Se elas tentam, afasto-as de imediato. Torno-me ríspido, um boçal. Acho o mundo medíocre, sabe. Deprimente. As coisas que acontecem à minha volta não me interessam, tenho nojo de ler o jornal. Só consigo trabalhar no escritório porque lá não preciso falar com quase ninguém e só vejo o chefe uma vez por mês. Fujo de gente. É um pouco estranho confessar isso, não? É como dizer que não gosto de respirar. Mas é isso, sou um misantropo, é tudo.
Agarra o copo e dá um longo gole. Francisco ouve a garganta do outro se contrair.
- Duas pessoas me transformaram: você e ela. Quando me casei com a Lúcia e estreitei minha amizade com você, senti que poderia fazer parte do mundo, que ele não era tão injusto, afinal. Lembra daquele fim-de-semana em Icaraí no ano passado, em que fomos eu, você, ela e aquela menina com quem você estava saindo na época? A que teve lábio leporino?
- Armanda. Claro que lembro.
- Você vai rir, mas aquele foi um dos melhores fins-de-semana da minha vida, e justamente por nada de extraordinário ter acontecido. Jogamos vôlei na praia, almoçamos na casa do Aristarco, transamos com nossas respectivas no hotel. Foi tudo ótimo. Quando voltei pra casa, assustei-me ao pensar que, durante 48 horas, não odiei o mundo. E eu devia isso a vocês dois, pois comecei a achar que a vida, sim, era possível, viável até.
- Que bonito, Antônio.
- Isso até a Lúcia me falar hoje que vocês se encontram num motel todas as quintas-feiras.
Trovão. A luz retorna. Francisco olha para todos os lados em busca de saída, mas encontra apenas o olho frio e rígido do outro.
- I-isso é m-mentira. Não s-sei de onde a Lucinha tirou i-isso, mas ela t-tá louca.
- Por favor, Francisco, não falemos mal dos mortos.
Seu copo cai, os cubos de gelo rolam pelo tapete de Arraiolos, presente da mãe.
- O quê...? V-você não p-pode estar falando s-s-sério.
- Eu nunca brincaria com uma coisa dessas. - descansa a cabeça contra o punho fechado, como se explicasse o desaparecimento dos dinossauros. - Ela vestia uma camisola pra dormir mas uma alça arrebentou, irritou-se e, num impulso, contou tudo sobre vocês. Quando terminou, eu coloquei o livro que estava lendo no criado-mudo e a estrangulei com minhas próprias mãos.
Francisco observa Antônio, que, antes nervoso, agora fala com uma calma impecável. Desesperado, afunda seu rosto nas mãos, gemendo:
- Lucinha... Lucinha!
- Vê? Ninguém pensa no pobre do Antônio. - traz o copo aos lábios e sorve a última gota, que desce pela garganta como magma - Ninguém pensa no coitado do Antônio, que, numa única noite, perdeu a mulher, o melhor amigo e o gosto de viver. E tudo porque nos recusamos a cumprir os papéis que nos haviam sido destinados: eu, o de marido; tu, o de amigo; e ela, o de esposa.
- Antônio, você não pode matar, é errado... 
- Pare de choramingar, homem. Ela está num lugar melhor. Eu é que fui parar no inferno.
- Lucinha... Lucinha!
- Quanto a você, não se preocupe. Daqui a pouco irá encontrá-la.
Francisco interrompe os lamúrios quando vê o outro retirando um par de luvas pretas do bolso, calçando-as nas mãos.
- Antônio, não... é errado.
Antônio se levanta e, por um momento, seu corpanzil paira diante da silhueta tímida e aterrorizada de Francisco.
- "Certo" e "errado" só existem pra quem vive no mundo, Francisco.
Outro trovão. A energia cai novamente.
- Eu gostava muito de si, Francisco. Mas você cortou meu coração.



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