dois textos


(1)

Uma das muitas habilidades humanas que admiro é a de antropomorfizar paisagens, transfigurá-las de modo a que ganhem rosto e nome, preenchendo de reflexão onde, antes, havia só pó e rocha.

Como traduzir em saudade um mar calmo? Transformar montanhas em solidão? O tempo todo, damos nomes ao que, de outra forma, jamais será nomeado. Comparamos nuvens a rostos conhecidos e animais, sabendo no fundo que tal se trata de um fútil exercício de luta contra nossa mortalidade. Se este mar me lembra algum amor, ele será eternizado nas águas, enquanto eu desaparecerei como se jamais tivesse existido.

Tomamos emprestada a perenidade da natureza em nome de nossos desejos fugidios.

Os céus, porém, estão se lixando para suas memórias. Os mares e oceanos não se importam com suas saudades. E as florestas, os campos e lagos não sabem nem querem saber de seus amores, pois o que aprenderam a fazer são apenas coisas de campo, do tipo, parecer verde na primavera e marrom no outono, fazer com que as árvores apontem para o alto e as raízes para baixo, coisas assim. Seu roteiro não inclui sensibilizar-se com nossas tolas projeções.

Mas acho que isso é muito humano: ver deuses onde só há matéria, projetar transcendência diante da mera realidade.

E este é um belo ofício, um belo pedido, ainda que a natureza nada fará para concretizá-lo. Ao final, são sortudas as montanhas, pois não apenas se formam e desmoronam ao longo de milhões de anos. São mais, ainda que não saibam disso.


* * * 

(2)

Na praia, ele a observa antes de dizer:
- Onde é que você tava?
- Oi?
- Esse tempo todo.
Os dois riem. Beijam-se.

Na sala, ele a observa entrando no apartamento às quatro horas da manhã antes de dizer:
- Onde é que você tava?
- Oi?
- Esse tempo todo.
Não riem. Ela vai dormir.


Comentários

  1. quantas saudades...
    imagem alguma me vem à mente. mas me sinto mesmo assim, mesmo assim.
    =)

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