despachos da guerra


(alef)

Um cruzado e um mouro duelam ferozmente às portas de Jerusalém. Por fim, um deles aproveita uma breve interrupção na luta e grita, usando seu último fôlego:

- E se o seu e o meu Deus forem o mesmo Deus?!

Mais não ouve, pois o outro, sem compreender a pergunta, desfere um golpe preciso que lhe decepa a cabeça.


* * *


(baa)

Ahmed lembra da maré calma do porto de Áden, onde nasceu, e de suas águas verde-turquesas. Recorda-se do prazer de saltar do alto de uma rocha com os amigos, despencando de uns dez metros nas ondas suaves do Golfo. Ao longe, os navios deslizam gentilmente para o cais. Uns poucos ingleses sorriem e tiram fotografias.

O mar é o sustento da família. Trata-se de uma mãe gorda e generosa, com seus grandes braços aquáticos a oferecer coisas boas, pois é do mar que vêm os peixes que terminam em pratos deliciosos servidos no tapete da sala da casa de Ahmed, e também de onde vêm as pérolas que seus primos mergulham para colher e que já haviam enriquecido dois tios que moravam em Sanaa.

Já a água doce é sinônimo de limpeza e purificação. A sensação refrescante de limpar o sal da boca após uma das incursões no cais com os amigos; o fim da sede que lhe corrói a garganta após uma longa tarde recitando suras na madrassa; as abluções diárias de seu pai, irmãos e ele próprio, esfregando rostos, mãos e braços antes de orar com o corpo apontado para o norte; os gritos da mãe, que o ordena a não desperdiçar uma gota sequer enquanto ele arrasta o balde para dentro de casa a fim de tomar um banho.

Um menino à beira do cais, Ahmed conclui que não há nada que goste mais que a água, doce ou salgada.

Anos passam. Ahmed cresce e viaja a Sanaa para trabalhar na loja de um dos tios. Começa a guerra civil, e, apesar de contar apenas dezesseis anos, é logo despachado para o front. Termina o conflito quase como o começou: ainda é um soldado raso, mas agora condecorado com um ferimento na perna que o impossibilita de continuar a carregar as caixas na loja do tio. De pena, um dos primos o deixa permanecer no negócio fazendo pequenos serviços de escritório.

Um dia, um jovem conhecido por suas pregações inflamadas na praça de uma das mesquitas de Sanaa chama o velho com a perna ferida para conversar. Os dois mascam qat. O jovem islamita pede um favor. Em frente à loja onde Ahmed há um hotel de luxo, onde carros caros e vans transportando empresários e turistas param diariamente. Tudo o que o velho deve fazer é anotar as placas dos carros estrangeiros e entregar a lista a um dos amigos do jovem, que passaria regularmente pela loja. 

Ahmed, sem esposa, sem filhos, sem que nada que lhe mude a rotina além dos vapores do qat, acena afirmativamente com a cabeça. O velho passa algum tempo a fazer este e outros pequenos favores para o jovem e seu grupo.

Uma noite, homens vestidos de preto arrombam a porta dos fundos da loja e arrastam Ahmed da esteira onde dorme. Metem um saco preto na sua cabeça e o jogam no interior de um veículo, que arranca em seguida.

Meses depois de trancafiado com outros compatriotas, além de sírios, afegãos e iraquianos, Ahmed é transportado de avião ao que parece ser uma espécie de complexo, cercado de grades e arame farpado por todos os lados. Pensa que está numa ilha; pensa mesmo que voltou a Áden, tão parecidas são as águas verde-turquesas ao redor com as de sua cidade natal.

O velho tenta se recordar da maré calma do porto.

As torrentes d´água que lhe são despejadas na cabeça envolta por um pano, porém, afogam-no lentamente e o fazem desejar mil vezes a morte, que nunca vem.


***


(taa)

Saída da estação de metrô da Consolação:

- Sério que você é árabe?
- Meu avô é libanês, sim.
- Que legal! Gosto muito de quibe.
- Hã... eu também.
- E esfiha.
- Hm-hm.
- Você fala árabe?
- Só quando estou usando meu turbante.
- Falassério?! Você usa turbante?
- Óbvio. Todos nós, árabes, usamos.
- Legal. E vem cá, por quê vocês tratam tão mal as mulheres?
- Por que elas são todas inferiores e impuras, naturalmente.
- Que interessante...
- Agora você vai me dar licença, mas eu tenho que pegar meu camelo no estacionamento.
- Tá brincando que você anda de camelo!
- Na verdade eu ando de tapete voador, mas o meu tá lavando.
- Massa! Olha, vamos nos encontrar essa semana. No Habib´s. Ha ha.
- Claro. Otário.
- Hã?
- Nada.


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