as coisas dhela



Chegou Caetano à minha porta. Abracei-o como um irmão cujos pais não eram meus pais, cujo coração eu conhecera havia pouco, quatro anos somente, mas que ao longo desse tempo adquirira para mim uma importância que os corações de outros amigos mais antigos não possuíam. Larguei-o; e ele entrou, com todo o embaraço do mundo:

- Tua irmã te mandou pra pegar as coisas, né? - sorri.

Ele meneou, muito sério, os olhos vidrados no chão sujo.

- Vem. - e o levei à segunda sala, que eu fazia de escritório. - Pus tudo o que achei dhela em duas caixas. Você aguenta levar?

- Aguento. - murmurou.

Observamos as duas caixas pardas, da altura de Caetano. Ele nunca conseguiria transportar aquilo sozinho.

- Trouxe o carro?

Balançou a cabeça.

- Nesse caso, vamos no meu. - fiz menção de ir ao quarto vestir uma calça, mas ele me segurou.

- Disse que não quer te ver.

- Como?

- Ela disse que não quer que você vá lá. - disse, ainda mais envergonhado, selecionando as palavras para que não parecessem tão ríspidas. Mas eu o ouvira da primeira vez.

Parei. Os olhos de Caetano encontraram os meus por um instante, voltando logo à posição inicial.

- Ela está com medo de mim?

- Só disse.

- Nesse caso, - continuei para o quarto - vamos até lá no meu carro, mas você sobe sozinho. Nem a pau alguém consegue levar isso de ônibus.

E bati a porta.

*

- Por quê vocês terminaram?

Antes de sair e sem que Caetano visse, depositei numa das caixas um sutiã que ela havia esquecido em casa. Eu me recordava da primeira e última vez em que ela o tinha usado.

- Você gosta?

- Claro que gosto.

- Do sutiã, besta.

- Também.

- Custou caro.

- Imagino.

- Comprei pensando em você.

- É bonito.

- Projeta o peito bem pra frente, está vendo?

- Perfeitamente.

- Pega pra ver como fica durinho.

- Fica mesmo.

- Pega forte, assim.

- Tá bem duro.

- Pega no outro.

- Por quê vocês terminaram?

Olhei para Caetano, depois para a rua, depois para ele novamente.

- Não tem explicação, irmãozinho. Acabamos porque acabamos.

- Isso não é resposta.

- Eu sei. Mas é a única que tenho.

Ainda busco uma melhor, quase falei.

Passamos por ruas que eu atravessava apenas quando estava com ela. Pensei que dirigir por elas sem ela tornar-se-ia um exercício comum, corriqueiro, que eu poderia rever as árvores e as lojas na calçada e não me lembrar dhela. Mas sou um geógrafo e amo meu trabalho: envolvo-me afetivamente com os lugares que estudo e habito, constantemente associo a eles memórias, gestos e reflexões, amplio os espaços que me enternecem, por menores que sejam, e, aos sítios que não despertam meus desejos, dedico a irrelevância das coisas não-amadas, sejam eles canteiros ou cidades inteiras.

Descobri naquele momento, no trajeto do carro, que eu amava aquela cidade por causa dhela, e agora, que ela me deixara, necessitava escapar da armadilha em que Brasília havia se transformado.

*

- Quem terminou?

Virei repentinamente o volante, fazendo-o bater contra a porta. Segui pela tesourinha da 504 Sul e peguei o eixinho.

- Paro aqui e a gente toma uma breja.

Sentado debaixo do sol, interrompido aqui e ali pelo teto de folhas, observei as meses no gramado do Beirute. Estes lugares estão doentes, pensei. Infectos. Gangrenados. Retira-se a bandagem amarela de pus e sente-se a podridão, justamente por nossos dias terem sido tão felizes. Tratada antes, a infecção poderia cessar sua expansão, retrair, curar, sarar o corpo, estancar a podridão do espírito. Mas esperei demais. Esta propriedade está condenada. Deveriam fechá-la a chave, queimá-la, convocar técnicos da Anvisa vestidos de roupas de astronauta, como em "E.T.", que isolariam a área e ateariam fogo em tudo. Mas é tarde demais. Deveriam incendiar tudo, mas não o farão. É por isso que partirei. Para longe da infecção, para onde haja terreno são para erigir novas memórias, um território mítico. Irã, talvez.

- Sabe o quê tem dentro destas caixas, Caetano?

- As coisas dhela.

- Sim, mas você sabe o quê são?

- Roupas, discos...?

- E livros. Sim, tem isso, mas me refiro ao que elas representam. Sabe o que é, Caetano?

- Não. - ele olhava pra uma menina na outra mesa e não me dava muita atenção.

- Meu resgate. Deixei minha alma nas mãos da sua irmã. Quando terminamos, a alma ficou com ela. Quero de volta. Preciso dela pra sair daqui.

- A-ham.

- Senão, também vou ser infectado e nunca mais vou conseguir sair daqui. Que horas são?

- Duas e meia.

Tirei uma caneta do bolso e anotei a hora num guardanapo, que guardei no bolso da calça.

- Ótimo. Isso, ela não pode me tirar. Vamos?

(continua)


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