when the music is over
Quando a música parar, onde estarei? Quando acenderem as luzes e pedirem aos convidados para que se retirem pois já amanheceu, o anfitrião está cansado e os músicos precisam se arrumar para irem, para onde irei, com quem? Caminharei à casa, tentando apagar da cabeça os vestígios do sonho? Ou seguirei à casa de quem estiver comigo, forjando cumplicidade onde não há, falseando intimidade num sussurro sorridente, beijo lento?
Talvez, ainda antes do apagar das luzes e do início da festa, eu já esteja acompanhado. Talvez nós cheguemos e partamos do mesmo lugar, para o mesmo lugar. Se for este o caso, penso que iríamos a sítios desse tipo para evitarmos olhar um na cara do outro o tempo todo. Lá, seríamos forçados a fingir não-intimidade, um certo distanciamento, a fim de nos mostrarmos ao mundo como seres independentes, livres de parasitismos, pois nascemos sozinhos e morremos da mesma forma. Seríamos poderosos. Seríamos livres. Trocaríamos beijos de tempos em tempos, mas nos sentiríamos seguros o suficiente para beijar quem quiséssemos.
Ao acender das luzes, porém, suspeito que abandonaríamos tal ilusão e regressaríamos à casa, banhados por um falso pressentimento de vitória.
Ainda no país das possibilidades: e se, quando a canção cessar, eu estiver só, com um copo de uísque na mão a examinar as paredes? Com os vapores do éter a me perturbarem o estômago e o juízo, sem boca para os compartilhar, para os evaporar, sem línguas e pescoços a me distraírem de pensamentos soturnos, da memória de outras línguas e outros pescoços? Serei então taciturno. Antes que o anfitrião lance a ordem derradeira, antes de soltar os cachorros no quintal, já terei partido solitário, entre Lone Ranger e bêbado, a pensar se caminho de volta à casa fria, pego um táxi ou espero o primeiro ônibus da manhã. Apenas aí, então, você conhecerá meu verdadeiro nome.
Projeto-me chegando ao meu apartamento com aquela de quem mal sei o nome.
Eu sou um homem. Penso coisas de homem. Meus atos são os de um homem. E pertenço a um gênero simples. Não são necessárias noções de física quântica para saber como reagimos em determinadas circunstâncias. Ocasionalmente, é possível que ocorram alterações em nosso comportamento e a situação em questão termine de forma imprevista, mas acredite, estes casos são raros. Na grande maioria das vezes, os atos de um homem seguem estritamente o plano para o qual suas predisposição genéticas foram concebidas.
Projeto-me, portanto, à porta do meu apartamento, com a mulher de quem mal sei o nome nos braços. Esboço movimentos de homem. Ela responde com movimentos de mulher. Ela é de fato uma mulher, o que implica uma série de considerações muito mais complexa que não cabe por ora analisar.
Repito os movimentos, levemente alterando a sequência para que não pareçam mecânicos e para que eu não caia no tédio. Aprecia.
As horas gastas na festa cobram seu preço. Movemo-nos lentos e desajeitados. Nossas roupas e cabelos estão cobertos por uma pasta odorífera composta de suor, cigarro, perfume, álcool e saliva que fustiga o nariz e a boca.
Farrapos de sol atravessam a persiana e pousam no sofá sob nossos corpos, barras luminosas sem matéria.
Penso no dia, na fadiga muscular. Beijo-a, procurando afastar esses pensamentos. Repito os movimentos. Começo a trabalhar nas roupas. Aqui e ali, desvelo tatuagens, sinais, marcas de nascença e de vacina, leio-a aos poucos, e ela, cansada demais para fazer o mesmo comigo, apenas move as pernas e os braços para me auxiliar a despi-la, fitando-me ternamente como se declarasse eu o aceito, não te renego, não sei se te quero mas o tolero. Foi o pacto que fizemos quando partimos da festa, há tantos anos.
Ela me aceita. Meu coração é tão jovem que, quando bate mais feroz, nem o sinto. Nem sei se a quero.
Estou cansado.
*
Seus olhos. Injetados. As roupas jogadas displicentes no corpo, já removidas e reinseridas duas vezes, o pescoço com dois ou três vergões vermelhos, as linhas da testa, as falhas do rosto mais visíveis. As bolsas cinzas abaixo dos olhos, pupilas semicerradas, cabelo desalinhado. Os membros frouxos, as costas curvas e indecisas fatigadas pelo peso que eu mesmo depositei nos ombros.
Sinto intimidade com estes olhos velhos de guerra, ao contrário dos olhos da que dorme no quarto. Estes são meus; e este é o espelho do banheiro, a me fitar perplexo, inquirindo "por quê?! Por quê...?"
Da rua, Beethoven em teclado de churrascaria, som móvel a anunciar o gás. Olha o gás. O gás é invisível, não posso vê-lo. Prossegue o Beethoven. Quando acabar, onde estarei?
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