salões de embarque e estações de trem


Parte. Toda vez que parte, busco gramática de partida, algum material quimérico de leitura que me organize os fatos, confira a eles cronologia e me ajude a suportar a próxima inevitável despedida.

Você tem tantos rostos.

Introdução:

Estamos os dois, salão de embarque de aeroporto, estação de trem, parada de ônibus, ponto de táxi, portaria de prédio, porta de entrada - e de saída - de apartamento, enfim, qualquer local que prenuncie chegadas e partidas. O local há de ser anódino o suficiente, descaracterizado o bastante para que sirva às partidas de qualquer um, consultório de médico. Não preenchamos os lugares com cores, apenas nossas dores. Também há de ser funcional, funcionar como portal, para que quem o atravesse se sinta transportado, irremediável, de um cenário a outro. A partida fatal deve ser definitiva, e qualquer reencontro posterior deverá ser sucedido por outra partida.

Capítulo Um: do(a) que parte.

Veste cores sóbrias, que o adeus é coisa triste. Se o adeus se trata de ocasião secretamente alegre para o que parte, porém, convém que a alegria permaneça secreta. Sempre mais doce a partida ao ido que ao ficado. Ao menos, desfilarão diante de seus olhos novas paragens, caminho de reflexão, outros rostos e descobrimentos; ao ficado, porém, mantém-se a mesma rotina cinza dos dias, ainda mais gris sem o ido.

Aos que partem, pouca bagagem, para dar a impressão que é curta a viagem.

Gestos curtos. Frases secas e resignadas. Promessas de reencontro ainda incertas, convicções etéreas. Conjugação do verbo partir no indicativo: eu volto; tu me escreves; ele me manda notícias suas; vós não necessitais de me esperar; eles perguntam por si.

Glossário: partida, despedida, saída, ida.

Nota: viajo porque preciso, volto porque te amo.

Claro que volto.

Capítulo Dois: do(a) que fica.

Veste-se elegante, banho tomado, sapato social, que adeus é ocasião vetusta. Nada de família ou amigo junto, mas, caso venha, que fique distante: separação é assunto privado. Cabisbaixo. Não quer saber da felicidade futura do que parte, não quer saber de nada. Docemente egoísta. Partida é momento do ido.

Ajuda a carregar as malas, checa mentalmente se trouxeram tudo, torce para que o ido tenha esquecido o passaporte em casa.

Guia rápido de frases úteis:

"Lembrou de tudo?"

"Escrevo, sim."

"Daqui a pouco chego lá." "Me liga quando chegar?" "Não importa o fuso."

Índice onomástico: aceno, monitor de vôos, estacionamento, abrir a porta, casa vazia, silêncio. Os cheiros. O branco. Cansaço. A garganta. A mesma rotina gris dos dias que passam, à espera do consolo ingrato de um telefonema ou de imagens esmaecidas no computador, voz metálica, piada distorcida do que poderia ser e não é.

Claro que volta.

Conclusão:

Estamos os dois, salão de embarque ou estação de trem. O que parte e o que fica. Uma partida ao contrário é um retorno.

"Olha, eu vou mas não te ligo, viu?"

"Vim te deixar porque não tinha mais ninguém, senão ficava em casa."

"Pode ir, eu continuo daqui."

"Posso ir junto?"

Pausa.

"Posso ir junto?"

"Não... er... como assim?"

Uma partida é um roteiro: improvisar é perigoso.

Compro a passagem.

Muda o dia.

Desiste.

Pausa.

Desiste de ir.

Desiste de ficar.

Tenho mais certeza de nada.

Rasga o roteiro.

Vai de vez.

Rasga a gramática.

Parte agora.

Silêncio.

Parte agora ou vem comigo.

Pausa. Outra pausa. Vem comigo.

Vem comigo. Vem comigo.

Parte agora ou vem comigo.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A educação pela pedra

. . .

o campeão