olhe para o gato



Qual? Aquele da vitrine. Não estou vendo. Aquele, menina, de brinquedo, dourado, com a pata subindo e descendo. Ah, sim. Que tem ele? Preste atenção. Pra quê? Apenas preste. Olhe fixamente para ele. Esqueça da rua, esqueça de mim, de mim e dos meus bigodes. Esqueça-se de si. Apenas olhe para o gato. Pense apenas nele. Deixe que se torne sua obsessão. Deixe que se torne sua desculpa para viver. Seu amor, suas roupas. Não medite sobre a bizarria da situação. Não pense que eu, um completo estranho, interpelei-a no meio da rua e pedi que você olhasse um gato de plástico, que o fitasse. Pode não parecer agora, mas ISTO é importante. Não passe por cima disto. Não o ultrapasse. Não o maldiga. O gato. Não maldiga o gato. Esqueça-se de seus compromissos. Esqueça-se do frio, da aspereza das mãos, da comichão nos lábios, da sua fome. Esqueça-se do momento. Esqueça-se de onde deveria estar agora, e porquê. Apenas observe. Fite. Fite. Encare. Examine. Olhe para ele. Algo de fundamental ocorrerá nos próximos minutos. Não o perca. Não tire os olhos dele. Senão, você perderá. Você desistirá dele. E o gato desistirá de você. É sua última chance. Este é seu momento, e também dele, você o observará senão ele irá embora quando você for embora. Você não o carrega dentro de si. Ninguém carrega nada dentro de si senão o que naquele momento se carrega. O corpo. As armas da mente. Pensa que brinco. Pensa que enlouqueço. Não há insensatez em minhas palavras. Talvez uma hipersensibilidade, um excesso de sentido que me acelera ao extremo, me paralisa. Movo-me muito mais que o possível. Por isso corro demais. Por isso olho, mas não enxergo. Olho com os dedos. Toco com os olhos, esmago com as retinas, enforco com as escleróticas. Por isso olho gatos em vitrines. Sei que não posso tocá-los. Nem quero. Já desisti. Já desisti de tocá-los há muito.

O-o g-g-gato.

Eu sei.

E-ele mex-xeu.

Já sabia.

V-você viu? Ele mexeu! ELE SE MEXEU!




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