o mundo é plano





Em Nova York, representantes de todos os países se reúnem no prédio da Organização das Nações Unidas para discutir assunto crítico à segurança mundial.

Uma ameaça paira sobre o mundo que, caso não seja enfrentada, aniquilará a raça humana.

- Senhores Embaixadores - principia a falar o Secretário-Geral da ONU, com a voz embargada, enquanto a audiência o escuta atentamente -: como sabem, convoquei este encontro buscando uma solução para a atual crise. Neste momento, devemos pôr de lado nossos conflitos para dar cabo de um mal que há 30 anos assola o planeta, e que, nos últimos tempos, adquiriu proporções catastróficas.

O Secretário-Geral pausa por um momento para controlar a emoção em sua voz. Bilhões de olhos o seguem silenciosamente através da televisão, de telas de computador, estações de rádio, das cadeiras do próprio auditório da Assembléia. Ninguém ousa pronunciar uma palavra ou esboçar um movimento, numa paralisia planetária.

- Há décadas, procuramos juntos meios de combater os males que atingem a humanidade: a pobreza, as guerras, as mudanças climáticas, as violações de direitos humanos. Sofremos muitas derrotas, mas tivemos alguns avanços. Todas as nossas decisões e ações foram balizadas por um princípio: o de que é fundamental, acima de tudo, que a humanidade sobreviva a todas as dificuldades. Hoje, no entanto, temo que esse princípio fundamental esteja ameaçado.

Baixa do teto uma tela de projeção. As luzes se reduzem. São exibidas fotografias em sequência, mostrando cidades arrasadas por o que parecem ser imensos discos coloridos. Os discos, de superfície lisa e reluzente, exibem cores variadas à medida que são mostrados em diferentes cidades. Alguns são pretos, outros amarelos, até mesmo brancos e vermelhos. Duas características saltam aos olhos: a aparente perfeição da camada externa dos discos, sem falhas, e seu tamanho descomunal, de dezenas de quilômetros de altura e centenas de diâmetro. Abaixo e ao redor deles, vêem-se restos de prédios e fábricas esmagados.

- Estas imagens já são familiares a vocês. Há cerca de 30 anos, os estranhos objetos começaram a cair do céu sobre campos e cidades, provocando grande número de mortes e danos materiais. Nunca conseguimos descobrir o porquê do fenômeno. Os discos simplesmente despencavam sem aviso. Nenhum país foi poupado dessa tragédia.

Nesse momento, vários olhos se voltam para o representante de Omsk. O velho homem soluça ao se lembrar dos danos irreparáveis que os discos haviam acarretado a seu país. É consolado pelo embaixador de Labrador.

- De início, pensava-se que os discos eram de origem alienígena. Seria uma maneira de nos contactar, uma maneira desastrosa, é certo, talvez até uma forma de ataque. Mas não encontramos nenhuma prova de atividade extraterrena. Uma vez caídos, os discos lá permaneciam, sem que ocorresse mais nada. Tentamos analisá-los de todas as formas, mas jamais havíamos conseguido extrair deles um pequeno fragmento que fosse para que pudéssemos descobrir de que material são feitos. Até agora.

Os bilhões de espectadores soltam, simultaneamente, um soluço de susto. Esta é, de fato, uma grande novidade. As fotografias são substituídas por lâminas de esquemas e equações químicas.

- Após a recente queda de um dos discos em Dudinka, cientistas recuperaram um fragmento que se soltara do artefato. Analisando-o em laboratório, descobriram que a composição dos discos é 99% semelhante à do plástico industrial, coberto com tinta simples.

Nesse momento, a embaixadora de Espanha/Portugal/França/Itália ergue-se de seu assento:

- Então os discos são de origem humana!

- Sim, minha senhora. - respondeu o Secretário-Geral, e todos uivaram de espanto - Deixem-me terminar, por favor, e depois poderão fazer as perguntas que quiserem.

Dito isto, projetam-se outras fotografias mais recentes. Ao contrário das anteriores, estas exibem mais de um disco por foto. Numa imagem, dois discos vermelhos permanecem lado a lado, acima de uma floresta destruída; em outra, três azuis despencam sobre as estepes siberianas.

- Nos últimos meses, como todos nós pudemos testemunhar pela mídia, o número de discos aumentou, às vezes caindo do céu mais de um por vez. Curiosamente, os discos de mesma cor tendem a atingir países próximos entre si, de modo que os vermelhos e os amarelos costumam se agrupar em continentes como a Oceania e a África, por exemplo, e os azuis na Europa e na Ásia. Além de tudo, nossos telescópios detectaram que três meteoritos em forma de cubo, de coloração vermelha, estão se precipitando neste exato momento rumo à Terra.

Mais uivos. Alguns embaixadores e funcionários começam a se levantar e a discutir entre si. Instala-se a balbúrdia. O Secretário, a muito custo, consegue que todos retomem seus lugares.

- Senhores, por favor! Deixem-me concluir. Nossos melhores cientistas se debruçaram sobre o problema dia e noite e, com as últimas descobertas, chegaram a uma teoria. Chamo à tribuna o Doutor Eduardo Grow, chefe da equipe.

Dos bastidores surge um homenzinho de jaleco branco, que caminha para o pódio. Com seus óculos, barbichinha e a cabeça muito grande, lembra muito Rui Barbosa.

- Antes de dar a palavra ao Dr. Grow - disse o Secretário-Geral -, peço que dêem sua máxima atenção a ele e que ouçam sua teoria, por mais incrível que seja.

Grow agradece ao dirigente e reduz a altura do microfone, a fim de que possa falar sem ficar na ponta dos pés. Olha a audiência de cima abaixo: todos o observam atentamente. Chegou o momento:

- Senhoras e senhores. Pensem em quanto o conhecimento humano avançou nos últimos dois mil anos, um período de tempo bastante curto para este velho planeta mas, para nós, quase a eternidade. Fenômenos meteorológicos eram atribuídos ao humor dos deuses, quando, descobriu-se, resultam de interações físicoquímicas ocorridas na atmosfera. A habilidade de voar era exclusividade dos pássaros até conquistarmos o domínio dos ares com o avião. E, finalmente, quando se asseverava com a mais absoluta certeza que o Homem era a cópia de carne e sangue do Criador, eis que uma revolucionária teoria científica apresentou o símio como seu ancestral direto, ainda que eu coloque a galinha no mesmo patamar, mas prefiro falar disso em outra ocasião.

- Os discos! Fale dos discos!! - bradou o embaixador de Madagascar, acompanhado pelos colegas.

- Muito bem. - prossegue Grow, visivelmente ofendido - O que quero expressar, senhores, é que, da mesma forma que o mundo nos parecia tão virgem e perigoso nos tempos d´antanho, ele ainda nos é nesta época acelerada e globalizada. Tudo o que nos parece claro e científico representa, em verdade, um novo mistério, que no futuro dará lugar não a uma solução, mas a outro mistério, e assim sucessivamente. Os discos, senhores, podem ser explicados de forma simples, ainda que extraordinária para a maioria dos ouvintes aqui presentes.

O doutor ergue o dedo indicador. Sobre ele, equilibra-se uma minúscula réplica de um dos discos, um pequeno objeto azul feito de plástico.

- O sistema solar não gira em torno da Terra. Não nos situamos no centro do Universo. Aliás, estamos muito distante dele. O mundo não é esférico, mas plano, como um tabuleiro. E estes discos, a que chamo de "fichas", não caem ao acaso, mas foram depositadas por seres gigantescos, muito parecidos conosco, com uma razão muito definida.

Ele pousa a ficha sobre a tribuna.

- Estes seres jogam conosco. Trata-se de um jogo, percebem. E estamos no início da partida. Estas "fichas", que podemos chamar "exércitos" na falta de melhor nome, são seus instrumentos de ataque. Nós, que pensamos que tudo o que ocorre no Universo serve a nosso deleite, não participamos deste jogo, nem espectadores somos: meramente estamos no caminho. Estes seres não estão cientes nem mesmo de nossa existência.

Os embaixadores franzem a testa. Não compreendem agora, pensa Grow, mas compreenderão no momento preciso. Daqui a muitos anos, caso haja tempo para tanto.

- Ainda não sabemos quais as regras que regem este jogo. Penso que a disposição dos meteoritos em forma de cubo, ao caírem, determinarão o movimento das fichas de um país para o outro. Talvez até mesmo caiam outros discos. O que temos certeza, porém, é que, quando o jogo começar verdadeiramente, estaremos no caminho de seus jogadores. E, aí, seremos varridos para fora do tabuleiro. E ninguém tomará conhecimento de que já existimos. Ninguém, senhores.

- Temos que destruir os discos! - berra repentinamente o enviado de Sumatra - Usar bombas atômicas! Não temos tempo!!

A balbúrdia começa a tomar conta dos impacientes diplomatas. O cientista sabe que tem pouco tempo, e tenta utilizá-lo da melhor maneira possível.

- Não entendo o vosso desespero. Desde sempre vocês viveram com um pé no acaso, jogando jogos no escuro. Fingiram que a vida fazia sentido, enquanto ignoravam o caos à sua volta: o horror, a tragédia, a miséria. Agora que se vêem vítimas de um jogo, por quê se exasperam?

Subitamente, as centenas de embaixadores, funcionários da ONU, jornalistas e demais presentes abandonam a compostura e passam a gritar de pavor, correndo de um lado para o outro em busca da saída do prédio mas também de algum consolo, que obviamente não poderiam esperar de Grow. Este, em seu papel de profeta do caos, erguia a voz cada vez mais, gesticulando as mãos como um novo Antônio Conselheiro:

- Não esperai alívio de quem tem apenas aflição para vos dar! Os discos se moverão, conquistando territórios coloridos! E quando já estivermos extintos da face da Terra, quando o silêncio se impôr e os discos voltarem a suas caixas, uma noite de papelão cobrirá para sempre os campos e os mares, até que ela se levante e o Universo se refaça novamente!!

- Grow, veja! - grita o Secretário-Geral, enquanto se segurava num dos assentos para impedir de ser arrastado pelo frenesi da multidão. O cientista vira sua cabeçorra em direção a um janelão que o Secretário apontava e vê um brilho vermelho fulgurante rasgar o céu.

- Está começando... - murmurou, com a ficha na mão.

É a última coisa que se ouve antes de um tremor altíssimo chacoalhar violentamente aquele e todos os outros prédios de Nova York, e o rastro vermelho, envolto em fogo, incinerar a cidade. O cubo vermelho, ao cair, exibe dois círculos pretos no topo. Imediatamente após o choque, um disco vermelho no Sudão, no outro lado do mundo, treme e se lança ao mar, impulsionado por alguma força invisível, destruindo tudo o que encontra pela frente, singrando terra e mar até chegar à ilha de Madagascar, onde se bate com outro disco, este amarelo, que caíra perto de Antananarivo.


O jogador dos exércitos vermelhos sorri, pois deu mais um passo rumo à sua missão de conquistar 24 territórios.



Comentários

  1. :)
    apesar de ser uma informaçao confidencial, vou partilhar: eu tb sou soldado dos exércitos vermelhos.
    P.S.Lembrei-me de The World is Flat de T.Friedman.

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