UMA PRO NELSON


Pinto sentou-se trêmulo na mesa do boteco. Apertava as mãos, olhando tenso para Gusmão, que apenas sorria.
- Algo pra te contar. Coisa pesada.
- Pode falar, meu querido. Em ti confio. - assegurou Gusmão - Meu irmão. Te faço sorrindo o que me pede chorando.
- Tua mulher costura pra fora.
- Filho da puta! - Gusmão espalmou a mesa, até o cozinheiro veio ver - Sabia, você sempre teve inveja minha com a Luci!
- Te juro que é verdade.
- Uma santa! Foi no Vaticano! Beijou até a mão do Papa!
- Te trai!
- Sento a mão na tua cara! - levantou-se, a palma branca flutuando ameaçadora em meio-voo - E bato de mão aberta, que é assim que se bate em puta!
- Bate! Pode bater. Mas a Luci te trai!
- Não!
Derrubou a cadeira e saiu atordoado pela avenida. Pinto, desconsolado, enfiou a cabeça nas mãos.

A DÚVIDA

Irmãos de sangue, ficaram sem se falar por um mês. A semente, no entanto, estava plantada. Gusmão passou a implicar com qualquer gesto ou palavra de Luci que lhe parecesse estranho. De marido dedicado, tornou-se paranóico. Reclamava de tudo:
- Perfume vulgar!
- Presente seu, meu amor. - respondia a pequena, com carinho.
- Mas não gosto! Posso não gostar?!
No almoço:
- Sem gosto esse bife!
- Esqueci o alecrim.
- Tá distraída. Distraída!
Passou a vigiar os passos da esposa.
- Vai sair à tarde? Moça casada não sai à tarde!
E Luci ficava em casa, temendo aborrecer o maridinho.
Finalmente, Gusmão procurou Pinto. Não se desculpou pela cena no boteco, mas não foi preciso: pela expressão em seu rosto, necessitava urgentemente do ombro amigo. Perguntou sobre a forma como o outro tomara ciência da infidelidade.
- Estava voltando um dia do escritório pela Rua do Ouvidor quando vi sua mulher saindo de um motel com o “cara”. Um lugarzinho de quinta! - arrematou Pinto, trincando os dentes, o olho meio desesperado. 
Gusmão ainda pensou: “Amigo é esse. Sofre a dor da gente como se fosse a sua.”. Suspirou:
- Não sei o que fazer.
- O importante é ter certeza. - atalhou Pinto, a voz embargada. - Não se joga fora casamento de anos por uma suspeita. Otelo, por muito menos, matou Desdêmona.
Gusmão, que nunca ouvira falar em Otelo, achou aquela frase muito profunda. Chegou a repetir “Desdêmona”, estalando os lábios.
- Vasculha o celular dela, a bolsa, procura uma pista. É bem possível que tenha uma cartinha de amor guardada na bolsa. Moça apaixonada é assim.
Achando excelente a idéia, Gusmão decidiu executá-la imediatamente. Agradeceu o conselho e já se levantava quando Pinto lhe agarrou o braço:
- Sabes que sou teu amigo, não sabes?
- Que pergunta! - vociferou Gusmão - És o maior dos amigos.
- Só desejo teu bem - emendou Pinto, e o largou.

A CERTEZA

Passaram-se duas noites. No meio da tarde sonolenta de uma segunda-feira, o telefone soou no escritório de Pinto. Atende a secretária:
- Amigo do senhor. Diz que é urgente.
Pinto agarrou o fone. A voz de Gusmão saía esganiçada, estrangulada pela tragédia - e, por que não, por um fiapo de triunfo - da certeza:
- Cartinha de amor na bolsa! Batatíssima!!
O texto, eivado por numerosos erros de concordância e uma terrível caligrafia, consubstanciava a traição de forma incontestável. O amante, que assinara apenas como “Teu”, comparava o corpo de Luci a frutas e legumes variados:
- “Lábio de pitanga”… “seio de manga-rosa”… “joelhinho de alcachofra”… - os dois amigos choravam juntos ao telefone - Chegou ao ponto de comparar os olhos a jabuticabas maduras!
Gusmão, atônito, inquiria o que fazer. Pinto enxugou as lágrimas e tomou fôlego:
- Cartinha de amor só se lava com sangue!
- Não tenho coragem! - ganiu Gusmão - Nunca matei nem mosca. Choro só de ver menino judiando de passarinho!
- É você ou ela! Te falo isso porque sou muito teu amigo!
Tanto discursou, apresentou argumentos e persuasões, que transformou a simples aflição do traído num azedo desejo de vingança. Pinto inclusive ofereceu a Colt antiga do avô, que lutara na Revolução de 32, para executar o serviço funesto. 
- Vais ao motelzinho na quarta-feira. Te passo o endereço!
- Não és um irmão, és uma mãe! - choramingou Gusmão, embevecido.

A VINGANÇA

A tardinha da quarta-feira encontrou Gusmão sentado no balcão de uma padaria defronte ao motel do Ouvidor. Sua mão acariciava inconsciente o vidro gorduroso da vitrine das empadas enquanto se dirigia à senhora do caixa, o olho rútilo, o lábio trêmulo:
- Uma média. E um pão na chapa!
Olhou a porta do decadente ninho de amor. “De quinta, realmente”, pensou, e se lembrou do Pinto. Gostaria que o amigo estivesse ali. “Amigo é aquele”. Apalpou a pistola que o próprio lhe emprestara, uma lâmina pesada e mortífera espremida entre a barriga branca e a barra da calça. 
Pensou também em Luci e fraquejou por um momento. Veio-lhe o hálito doce da pequena na nuca, a risada feminina, e sentiu um arrepio correr-lhe o braço. Lívido, refletiu sobre a loucura que estava prestes a cometer. A honra ferida, afinal, compensava duas vidas, mais a sua atrás das grades, a perda do emprego, a vergonha pública? Isso não… isso não…!
Apoiou o pé no chão para partir quando, sem aviso, um táxi parou na calçada oposta. Antes que Luci saísse já a pressentira. Esvoaçava o vestido leve e florido, que jamais vira no armário da esposa, as lindas omoplatas se projetando contra o tecido. Ao lado, um homem de terno marrom-escuro e cabelo engomado, que não virou o rosto uma única vez mas que Gusmão, mesmo sem o conhecer, já odiava há séculos.
A hesitação momentânea transformou-se em determinação. Sem sentir os pés, ergueu-se do banco da padaria e atravessou a rua a passos largos. O casal entrava no motel e caminhava para a recepção.
Gusmão nada ouviu além de um farfalhar de asas de pomba. Retirou a pistola da cintura, surdo e cego, percebendo que a pesada arma adquirira a consistência de pluma. Flutuou até a entrada do motel e, antes que alguém pudesse gritar um “ai”, descarregou o tambor nas costas do casal. Luci desapareceu em meio a um longo e úmido grito, desabando sem vida com quatro balas no dorso. O homem de terno, por sua vez, levou um de raspão na cabeça e outro certeiro na nuca. Morreu em silêncio, sem gestos fora do lugar.
O assassino se aproximou do corpo do algoz. Precisava vê-lo, apalpá-lo, farejá-lo como um leão após derrubar a presa. Virou com o pé o cadáver do sujeito. Subitamente, sentiu as pernas fraquejarem, e caiu de joelhos ao lado de Pinto. Refletiu por um segundo: e agarrou a mão já fria do amigo, beijando-lhe os dedos enquanto os populares se acercavam daquele encontro macabro, as lágrimas caindo indiscriminadas no chão do motelzinho do Ouvidor:
- És uma mãe… mais que uma mãe!


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