Leila

(obs: contém palavras impróprias para menores. E ainda bem.)




Na fila do banco, ainda tento mais três vezes o número de Leila. Amor, atende o telefone. Por favor. Atende. Atende o celular. Me ouve.
É sexta-feira. Estou cheio de coisa pra fazer. Pequenas tarefas como pagar as contas no banco, comprar o que falta da feira da semana, pegar o ferro de passar de Mami na assistência técnica. Normalmente, eu faria estas e outras coisas no sábado de manhã pra não atrapalhar o trabalho. Mas resolvi esse problema: fui demitido na semana passada. Mário-sou-chefe-mas-sou-amigo disse que eu nunca conseguia chegar no trabalho antes das nove, e era importante que eu chegasse antes das nove. Porra Mário, ninguém entra na loja antes das nove e meia. É importante que os clientes vejam o vendedor lá, fresquinho, e não com cara de quem acordou sem tomar banho e correu pro trabalho. Você está dizendo que eu faço isso. Não estou dizendo nada, só estou pedindo que você chegue mais cedo. Não posso, moro com meus pais e eles moram longe. Então more mais perto. Por aqui é caro. Então acorde mais cedo. Eu já acordo às seis e meia. Então arranje outro emprego. Então faz o seguinte, pega esse empreguinho de merda e enfia no teu cú amigo, Mário-otário, que é assim que todo mundo te chama nas tuas costas, pilantra de merda, chama um vendedor pra ficar fresquinho na frente da loja, chupando gostoso teu saco todos os dias. Não desconte em mim só porque você tem 32 anos e ainda mora com a mãe. Pelo menos eu tenho mãe, Mário-otário. Você está inventando, ninguém me chama assim. Então pergunta pra qualquer um daqui, Mário-otário. Vânia, chame a segurança. Chama você. Tá vendo, Mário-otário, ninguém te ama. Leila, atende essa merda.
Fila do banco. Deixa eu pagar isso na Internet, Mami. Não dá, meu filho, venceu, agora só na boca do caixa. Lá na agência. Na boca do caixa. A boca. A boca de Leila. Vou te guardar numa caixa, Leila. Ha ha, bobinho. É sério. Você é um querido. Eu sei que a gente se conhece há pouco tempo mas tô falando sério, não sou de ficar meloso no primeiro encontro. Você é legal. E você é linda. Fala mais. Nunca pensei que uma mulher linda como você fosse dar bola pra mim. Você é interessante. Peraí, “interessante” é foda. Ué? Interessante é quem tem dois narizes, eu sou é feio mesmo. Ha ha, bobinho. Deixa eu beijar a tua boca. A boca, não, aqui. Beijo. Agora aqui. Beijo, beijo. Agora eu quero que você faça tudo o que quiser, menos beijo na boca. Isso parece outra coisa. Tá achando ruim. Tou achando ótimo. Enfia no próximo. O próximo quê? O próximo, por favor. Desculpa. Quero pagar uma conta. O senhor agora pode pagar na Internet. Atende, Leila.
Seção de conservas no hipermercado. Corredores intermináveis de vidros e enlatados, de tamanhos, cores, marcas, países. Estendo a mão ao acaso e agarro uma lata em promoção. Sardinhas. Filandesas. Penso por um momento se são tão gostosas quanto as brasileiras. Talvez sejam mais difíceis de comer. Mais amargas. Vindas da Finlândia, devem ser frias. Mas são diferentes, não é? Eu gosto do que é diferente, nem que seja simplesmente por ser diferente. Sou assim, meio fetichista. Não sou apenas um ex-vendedor de eletromésticos de 32 anos que mora longe com os pais. Eu tenho personalidade. Leio, ouço um bocado de mp3. Não podem me rotular. O número de Leila só cai na caixa postal, mas não deixo mensagem. Talvez seja hora de deixar recado. De dar um recado. Que não sou um desses menininhos românticos que tentam prolongar a adolescência fingindo que têm 17 anos. Eu tenho 32. Se gosto, se amo, é fato já testado e aprovado, muito decidido. Não sou de correr atrás. Resolvo deixar mensagem. Será a primeira de seis que deixarei no telefone dela ao longo do dia. Mentalizo aquelas sardinhas manipuladas por mãos finlandesas, loiras dos olhos azuis com os dedos lambuzados de óleo vegetal, delicadamente apalpando os pequenos peixes, gordos e compridos, acariciando-os, enfiando-os em latinhas de alumínio. Gaguejo umas palavras e desligo o celular. Por um segundo, vejo a capa do telefone e as letras pequenas impressas em branco: “Nokia”. Lembro que alguém me disse que a Nokia era finlandesa. Por que você não atende, Leila? E o que é que Mami tinha pedido pra comprar, mesmo?
Oficina autorizada. Autorizada por quem? Não tem lugar pra estacionar. Não faz mal, não tenho carro. Carreguei no ônibus as duas sacolas cheias do hipermercado. O ônibus está cheio. O saco de plástico é fininho. Uma senhora gorda atrás de mim fala pra amiga sobre a úlcera cancerosa do marido. Com detalhes. Descreve a endoscopia, que assistiu em DVD. Não sei se comprei tudo o que Mami pediu. Tentei ligar pra confirmar, mas ela não atendeu o telefone. Como Leila. Um cara suado com pinta de surfista discute no celular. Todo mundo atende o telefone, Leila. Só você e minha mãe é que não. Por quê? Sinto nos dedos o momento exato em que as alças da sacola se rasgam. Latas e vidros de conserva caem no chão do ônibus, desabam em dezenas de pés. Alguns gritam de susto, outros de raiva, reclamam, quase esfregam o dedo na minha cara. Os vidros rolam pelo chão de acordo com as freadas que o ônibus dá. Uma velhinha se abaixa para pegar uma lata. Agradeço enquanto me jogo no meio da multidão pra colher as restantes. Quando volto, já não há mais velhinha. Nem lata. Por acaso você botou no vibracall, Leila?
Vim pegar o ferro de passar que minha mãe deixou na terça.
Cadê o canhoto?
Eu sou destro.
Não, o papel da entrega. Sem ele, nada feito.
Minha mãe pediu pra pegar o ferro, não me deu papel nenhum. Não posso entregar o aparelho sem canhoto. Ela deve ter esquecido, já está velhinha, outro dia esqueceu meu nome, coitada, ficou me chamando pelo nome do gato, sabe como é. Eu sei. Pago o conserto, não tem problema. Sem o canhoto não posso. É um ferro Arno, bem velho. Preciso do canhoto. Mas você acha que eu ia vir aqui roubar um ferro de passar velho, meu amigo? Eu não disse nada. Estou dizendo que pago o serviço. Sua sacola está rasgando, senhor. Por favor, só quero levar esse ferro. Desculpe. Não dá. É só essa vez. Desculpe. Me dá o ferro. Não. Por favor. O canhoto. Por favor. Desculpe. O ferro. Desculpe. Leila, esse número não é o teu, não é possível. É a última vez. Não dá. O ferro. Desculpe. Por favor. O canhoto. O ferro. Desculpe. O ferro. Não dá. Por favor.
Suspiro. O senhor tem pelo menos o número do protocolo?
Que número?
O que está no canhoto.
Sei lá o número.
Outro suspiro. Vou quebrar esse galho pro senhor. É um ferro de passar Arno, né?
Isso! Tem uma chapa de metal embaixo.
Minutinho.
Sou louco por você. Eu sei. Não é só tesão, não, apesar da gente se dar muito bem na cama. Também acho. Eu gosto de pegar em você. Eu também gosto quando você pega em mim, cachorrão. Tô falando sério… fico gelado quando ouço sua voz, me arrepiam até os pêlos do cú. Ha ha, bobinho. A verdade é que fico numa ânsia desgraçada de te ver, Leila. Todo dia? Todo dia. Isso é paixão, gato, isso passa. Não é paixão, é amor, e do brabo. Homem nunca sabe separar amor de paixão. Eu sei. Então você não é um homem. Já te mostro! Ha ha, bobinho.
Desculpe, senhor, mas o conserto ainda não ficou pronto.
E se eu mandar sms, ela responde?
Restaurante chinês lotado, gritos e conversa, gordura nas paredes. Já fiz o que Mami tinha pedido, menos pegar a porcaria do ferro. Mereço comer. Vou comer logo na hora do rush, os comerciários correndo pra almoçar. Me sinto meio culpado de estar de calça jeans e camiseta num dia útil, à tarde. Mami não diz nada, mas fala com os olhos que eu deveria estar procurando outro emprego. Fico com preguiça. Penso por um segundo em voltar à loja e falar com Mário-otário. Mas só por um segundo. Encontro uma mesa vazia do lado da cozinha, a cada trinta segundos alguém chuta a porta e bate na mesa. Afasto a cadeira. Será que ela gosta de comida chinesa? Acho que não, é magrinha. Aliás, do quê ela gosta de comer? Agito a mão para um dos dois únicos garçons do restaurante, um chinesinho que anda atarantado de um lado para o outro com os braços estendidos, tentando anotar os pedidos. Só me lembro de ter comido uma vez com ela, no motel. O café-da-manhã. Não tinha muita variedade, mas ela não reclamou de nada. Tenho que ter uma idéia do que ela gosta, se quero chamá-la pra jantar. É o melhor convite que se pode fazer a uma mulher, por motivos óbvios. “Uma hora ou outra você vai ter que comer.” É o mesmo argumento usado para que os assaltantes soltem os reféns e saiam do banco com as mãos para cima.
Pensando bem, não sei do que ela gosta de comer. Nem beber. Não sei se gosta de sair ou de ficar em casa. Cadê a porra do garçom?
Bo táde.
Cardápio, por favor?
Hoje tem xop suí, flango xadlez, iáquisoba e cáne especial.
Tem iáquisoba de quê?
Flango.
E de quê mais?
De flango.
Já ouvi, tem de mais alguma coisa?
Só flango.
Frango.
Quer de flango?
Frango é frango, fala português, porra!!
Ele me observa por um instante, como se calculasse se eu valia a briga. Vira as costas e vai atender outra mesa. Checo novamente o telefone pra ver se deixei no silencioso.
Casa. Já é quase noite. Demora uma data pra chegar. O bom é que aqui não é muito caro. Nem muito seguro. Mas todo mundo me conhece. E conhece meus pais. Mami está na cozinha fazendo sopa. Deixa a sopa no fogão e vem me dar um beijo. Papi não se move do computador. Vou até ele e dou um beijo na testa. Ele grunhe algo. Espero que seja uma saudação. Papi não sai da Internet. Mami diz que ele sempre tem que estar com a cara enfiada em alguma coisa. Antigamente era o jornal, depois foi a televisão. Agora passa o dia navegando em saite de esportes. Quando Mami dorme, fica vendo mulher pelada. A tecnologia realmente mudou a vida das pessoas. Já acordei no meio da noite e vi ele mandando brasa na frente do computador. Foi horrível. A conexão é roubada do filho do vizinho. O vizinho sabe e deixa. Vem jantar, meu filho. Trouxe as coisas, Mami. Obrigada. Menos o ferro. Esqueci de dar o papel pra você. Alguém ligou pra mim. Ninguém, meu filho. Tô esperando uma menina, se eu não estiver aqui quando ela ligar diz pra tentar meu celular, ok. Namorada nova, filho. Talvez. Essa cabeça em namorada, e o trabalho. Tô procurando. Tá mesmo. Tô. Hm. A situação tá difícil. Por que você não volta pra escola técnica, abriu um curso de engenharia elétrica. Deve ser de eletricista, mãe. É de engenharia elétrica, vou pegar o folheto pra você ver. Pega não, fica aqui. Você podia ser engenheiro, filho. Eu podia ser tanta coisa, mãe.
A benção, pai. Hm. Tá vendo o quê. Fórmula um. É ao vivo. Não, é gravado. Esse saite deixa ver corrida de graça. Eu baixei. Onde é. Jepê do Bareine. Quem tá na frente. O Mica Ráquinen. Quem. Ráquinen. Nunca ouvi falar dele. É um finlandês. Licença. Hm.
Me tranco no banheiro e arrio as calças. Eu tinha tantas esperanças, Leila. Cadê minhas esperanças. Meus sonhos. A Cuca comeu. Sentado no trono, levo o celular para diante dos olhos. A tela brilha. É verde. Os números também brilham. As barrinhas da esquerda mostram a força do sinal. As da direita, a força da bateria. Só não sei onde está a minha força. Não sei se tento de novo. Enquanto penso, já estou apertando o botão de rediscagem.
Antes de pressionar o sendi, o telefone pisca. Toca o sino. Por Quem os Sinos Dobram. Por mim! O nome dela aparece no visor!
LEILA, diz em maiúsculas!
L-E-I-L-A, o sino toca!
L-E-E-E-E-E-E-I-I-I-I-I-L-L-L-L-L-A-A-A-A-A, repito!
As calças arriadas!
Frio!
Atendo!
PárapárademeligarfilhodaputavocêémalucodoidomalucoanormalpárapáraouviumeuhomemacabacontigoentendeufilhodaputapárapárademeligardemandarmensagemdeixarmensagemchegarpertodemimeumatoouviutenhomedodehomemnãotecaporetardadopáraouviuchamoapolíciavouatrásdevocêmalucoretardadoPRUMPPRPRMPRMPRMRMPRMMPRMT-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH-TUH
Motel. É dia. Depois do café-da-manhã, saímos os dois a pé.
Não dava pra chamar um táxi.
Gastei tudo na conta. Desculpa.
Sair andando de motel é foda.
Eu sei. Desculpa.
Onde tem ônibus?
O ponto é ali.
Bom, tchau então. Beijinho.
Te acompanho.
Não precisa. É melhor você ir.
Posso ficar com seu telefone?
Melhor não.
Por favor.
Por favor.
Tá bom. Anota.





Comentários

  1. Esta história daria uma curta, pelo menos foi assim que a li. Gostei, acima de tudo porque na minha cabeça é todo um filme! AhahAh

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