a noite eterna

Aqui, sob efeito das persianas e do olhar soturno dos clientes, Noite parece eterna. São 13h de um sábado ensolarado, mas o sol não foi convidado. As paredes estão pintadas de preto, e a pouca cor provém do púrpura das lamparinas e dos sofás que ladeiam as mesas, mais lúgubres ainda.

Algumas pessoas pensam melhor no escuro. Outras só funcionam quando nele imerso.

O jazz foi inventado em Noite. Ele quase não exerce efeito à luz do dia. O mesmo ocorre com o sexo, o roubo, o cigarro e o uísque. Seus efeitos são comprovadamente mais fracos no período entre a aurora e o crepúsculo.

Naturalmente, a redução da visão em Noite aguça outros sentidos, transformando-nos em criaturas de rapina. De dia, todos são forçados a serem bons, ou fingirem sê-lo.

Em Noite, os bons são devorados. Devem se esconder de animais noturnos, ou, mais comum, metamorfosearem-se em criaturas de rapina, para sobreviver.

Vícios são abençoados pela escuridão.

A lei e a ordem pertencem ao dia. Em Noite, são acidentes de percurso, batalhas perdidas, com efeitos tão eficazes quanto os de bandagens de gaze sobre um câncer.

*

Na noite eterna, a cor-sem-cor se confunde com o púrpura do vinho e o amarelo carnudo das lâmpadas incandescentes. Aves de olhos grandes voam e insinuações se tornam ainda mais ambíguas, certezas adquirem consistência vaporosa.

Olhos de gata encompridam-se, agateam-se ainda mais.

Neste mundo me encontro. Mas a noite eterna é falsa. Assim como a luz artificial empalidece diante da grandeza de Noite, a escuridão deve ser fabricada num café às 13h. As paredes necessitam de muita tinta preta e vários metros cúbicos de concreto devem separar o salão da superfície, a fim de que o sol não se infiltre, para que a lei e a ordem e a rotina não invadam este santuário invertido. Daí que a noite eternal é impura, como um solo de saxofone no meio de um parque ensolarado.

Mas quando o sol se põe... Noite, que não é eterna, parece o fim do mundo.

Sim, Noite precisa de Dia para se saber noite. Toda existência não passa da negação do seu contrário. Ou disso não sabia?




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