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Mostrando postagens de maio, 2014

anacronismos

- Tava pensando... - Bem que senti a catinga. - Engraçadinha. Sério, tava pensando num troço. - O quê? - Deve fazer um ano que não pego numa caneta. - Caneta? - Pra escrever. Faz um tempão que não escrevo nada à mão. Sabe? Tudo o que eu tenho pra escrever, preencher, agora é por computador. - Um ano? Que exagero. Certamente você já escreveu depois disso. - Não, tenho certeza que não. - Um bilhete? Uma carta? - Não. - Mas você teve que assinar alguma coisa. Um contrato, sei lá. - Uso uma assinatura digital. Colo no arquivo do computador e pronto, é garantida por lei. - Pagamento de conta, cheque? - Faço tudo pela Internet. - Nem assinar um recibo? - Ninguém assina mais recibo. Tá, talvez eu tenha que ter botado uma rubrica em algum lugar. Mas é um rabisco. Palavras, mesmo, não escrevo faz tempo. - Um bilhetinho de amor? - Mando mensagem pelo Facebook, Whatsapp, SMS pelo celular. Nem e-mail uso mais. - Hm. Pensando bem, também faz tempo qu

papo de gordo

Adotei uma lasanha. Seu nome é Dorothy. Tinha que ver Dorothy comigo, reluzente, a capinha de queijo brilhando contra o sol enquanto a gente pedalava no parque - ela na cesta e eu pedalando, naturalmente -, a cara de assustada dela quando eu fingia que ia comê-la, que lasanha linda de meu Deus, sapeca, fofinha! Depois de uns quatro dias, começou a apodrecer, então botei ela num tupperware e enfiei no freezer. Isso ajudou, mas, depois de um mês, ela voltou a apresentar sinais de mofo em sua pele enrugadinha. Não resisti e abri o tupperware, estava toda verdinha, coitada. Jurei comigo mesmo que iria ajudá-la a melhorar. Mas como? Pensei o dia todo até encontrar a solução: comê-la. Dorothy viveria em mim. Destampei o tupperware e estava pronto para devorá-la, mas o cheiro nauseabundo que emanava dela quase me fez desmaiar. Tapando o nariz, forcei-me a engolir os bocados de Dorothy, enquanto lutava contra violentas convulsões que repentinamente tomaram conta do meu corpo

alvorada

Alvorada, sei que estás de invejinhas com Crepúsculo... Continuas a dar corda ao teu irmão, que se supera, noite após dia, em fornecer grandiosos espetáculos para nossos olhos mortais, que já não sabem apreciá-los... por isso, conspiras com Lua e Sol, para que adequem o compasso, para que possas surgir, fulgurante, por entre as nuvens e as montanhas. Em seguida, anseias para que, ao final da jornada do deus Hélio pelo céu, a lembrança da tua prodigiosa aparição não seja ofuscada por mais um genial feito de Crepúsculo. É compreensível. Caracteriza-se a natureza dos irmãos pela mútua disputa rumo à glória, como competem gêmeos por espaço no ventre materno. Suplico, porém, que vocês dois não repitam o ocorrido certo dia, milênios atrás, quando brigaram pela ascendência no firmamento. Certamente V. Senhoria se recorda das grandes tribulações que nos fizeram passar. O Sol nasceu por três vezes; a Lua, coitada, por quatro. Não sabes a crise que provocaram no andamento do ciclo

jujuba

Estêvão ocupava um alto cargo administrativo na Coelho & Coelho Associados. Ganhava bem e tinha direito a um escritório com banheiro. Um dia, porém, um amigo deu o alerta: sua posição estava a perigo. Seu departamento não estaria produzindo tanto quanto a diretoria gostaria, e já se pensava em botar Estêvão no olho da rua. A profecia do colega parecia se concretizar nos dias seguintes. De uma hora para outra, os outros diretores pararam de responder às ligações de Estêvão. Também nunca conseguia marcar uma reunião sequer, sempre ouvindo desculpas, um chefe estava doente, o outro tinha uma viagem marcada para aquele mesmo dia. Apavorado,  Estêvão percebeu que seu processo de fritura começara. Pediu conselhos ao amigo que o alertara da desgraça. Muito solícito, este tinha engendrado um plano. - É uma chance em um milhão, mas pode dar certo. - Desembucha! - Você tem um cachorro, não? Estêvão achou engraçada a pergunta, mas confirmou, sim, possuía uma cock

cinema

Foi num cinema. Eu assistia a uma fita de guerra - não lembro o nome, não importa - quando, no meio de uma cena, um homem se levantou da platéia e começou a gritar, temos que ajudá-los, temos que ajudá-los. Os outros espectadores vaiaram, mandaram que se sentasse, mas eu fiquei apreensivo, pensei que alguém estivesse passando mal, e ele continuava gritando, como vocês podem ficar aí parados? É desumano! Logo, porém, compreendi tudo. Ele se referia aos atores do filme, aos soldados que caíam mortos na batalha. Ele acreditava piamente que o que ocorria na tela estava acontecendo de verdade. Quando os seguranças finalmente chegaram e o imobilizaram, tive pena, pensei, a última coisa de que ele precisa é brutalidade. Podem chamar  de loucura  a enfermidade do homem, mas não. O nome daquilo é paixão. 

o bode

Tinha chamado Ari para conversar sobre nossa relação, botar os pingos nos is. Fazia tempo que eu queria isso, então estava feliz. Preparei uma lasanha e arrumei a casa. O que eu não esperava era que ele trouxesse um bode consigo. - Porra, Ari. - Desculpa. Não tinha com quem deixar. Tão logo os dois entraram, o bode se soltou da coleira e foi comer a planta que eu tinha comprado não fazia uma semana. O danado continuou devorando, mesmo depois que gritei para que se afastasse. - Mas não é possível, Ari, eu já disse quantas vezes pra você não aprontar mais uma dessa? - Achei necessário. - Fiz uma comida gostosa pra gente, tinha se organizado toda pra nós resolvermos a situação de uma vez por todas… e olha o tamanho do bode que você traz pro meio da sala. Papelão, hein? - Também não precisa gritar, Liliana. - Olha, ó ele lá, comendo minhas revistas. Sai! Se ele chegar perto do meu sofá, juro que mato ele, estou avisando. - Deixa ele. Que tal a gente sentar

osvaldo

- Tragam-no aqui! - ordenou o Presidente. Quase de imediato, seis mãos arrastaram, para dentro do gabinete, um homem franzino, vestindo bermudas e com um boné enterrado na cabeça, a pele escura, os olhos castanhos e assustados. Puseram-no de pé diante da mesa de mogno, detrás da qual pairava a silhueta imensa, arqueada, suprema, do Presidente. - É este?! - vociferou o Chefe de Estado. - Sim, senhor. - sussurrou, com malícia, o Ministro da Justiça. O recém-chegado, tremendo como vara verde, nem sabia onde pousar os olhos, tão atarantado estava. O Presidente, modulando seu vozeirão, tentou soar magnânimo: - Calma, rapaz. Não há motivo para ficar nervoso. Somos todos iguais aqui. - S-s-sim S-S-Senhor, o-o-obrig-gado, Senhor. O Presidente perguntou qual era o nome da criatura. - Osvaldo Povo, Excelência - sussurrou o Ministro -, também conhecido como O. Povo. - O. Povo, hein. Já ouvi falar muito de você. - disse o mandatário, sorrindo, a

anon

A montanha pariu um rato. Aliás, um não, dois. Bebeto e Lilica. Bebeto rapidamente resignou-se ao fato de ser feito de granito e passou seus dias como um rato ordinário de fazenda, alimentando-se da lavoura alheia e vivendo numa toca que cavou à beira de um córrego, antes de acabar no estômago de uma coruja-do-mato. Lilica, por outro lado, revoltou-se contra sua condição de cria de montanha. Fugiu do conto e foi para São Francisco estudar moda e literatura inglesa. Infelizmente, sofreu o mesmo fim de Bebeto. Agora temos uma montanha, dois ratos mortos e uma coruja feliz.