Desafio "1001 Filmes": 30 a 34
30) “A deusa” (“Shen nu”, 1934)
O
cinema chinês é uma grande esfinge esperando ser decifrada. Para mim, ao menos.
Zhang Yimou, Chen Kaige, Wong Kar-Wai, Jackie Chan, Jiang Ke... só o conheço a
partir dos anos 90, assistindo a fitas de videocassete. E apenas os filmes
realizados por homens. Ver um filme chinês mudo, dos anos 30, portanto, é uma
revelação cinéfila, ainda mais forte porque a grande razão de ser desse filme é
a persona de Lingyu Ruan (1910-1935), grande diva chinesa que cometeu suicídio
aos inacreditáveis 24 anos.
A
“deusa” do título é Ruan, interpretando o papel corajoso de uma prostituta de
Xangai que, desafiando a moral de sua época (e da nossa, aliás), cria, sozinha,
seu filho pequeno. Ela o matricula numa escola primária, onde o menino sofre o
estigma de ser filho de uma meretriz. Trata-se de um melodrama bem filmado e de
roteiro inteligente, ainda que com tom moralista e moralizante. Mas é difícil
falar de outra coisa além da grande atuação da protagonista. Lingyu Ruan domina
a câmera do primeiro instante ao último. Consegue
exibir, apesar da pouca idade, um amplo espectro de emoções, de indignação a
afeto maternal, de ódio a resignação. Trata-se de uma das grandes atuações do
cinema, e, tragicamente, uma das últimas de Ruan.
Em sua curta vida, a atriz alcançou a eternidade em
29 longas mudos, dos quais oito sobrevivem. De tão icônica para seu país, a
atriz foi retratada na cinebiografia “Lingyu Ruan” (1991), sendo interpretada pela
não menos magnífica Maggie Cheung. Este filme, aliás, também consta na lista dos “1001
filmes”. A ver.
31) “Manila nas garras da luz” (“Maynila sa mga kuko ng
liwanag”, 1975)
O cinema “ativista”, de “preocupação social”, pode ser uma
faca de dois legumes. Por um lado, já legou grandes filmes humanistas, que
informam os espectadores das vicissitudes do mundo ao mesmo tempo em que os
inspiram a combatê-las. Hector Babenco e Ken Loach são dois diretores que se
filiam a esse cinema. Por outro lado, a urgência do assunto não raro resulta em
obras feitas às pressas, sem cuidado técnico. E um bom filme não é feito apenas
de boas intenções: sem preocupações de ordem estética e narrativa, como um bom
roteiro, uma fotografia depurada, etc., a mensagem, por mais nobre que possa
ser, acaba perdida num amontoado de cenas aleatórias, que mais inspiram tédio
que desejo de mudança.
Felizmente, “Manila...” é uma obra da primeira (e da mais alta)
categoria. Dirigido por Lino Brocka (1939-1991), diretor filipino até então
conhecido por suas comédias leves e popularescas, este é um grande filme de
engajamento popular, preocupado em mostrar, sem rodeios, a vida infernal dos
habitantes da periferia de Manila nos anos 70. Naquela década, as Filipinas
sofriam grande convulsão social, que chegou ao limite durante a ditadura de
Ferdinando Marcos (1972-1981). Quem pagou o maior preço por isso foi a
população pobre das ilhas, sujeita aos desmandos das forças de
segurança e entregues à mercê de um capitalismo selvagem estimulado pelo governo
Marcos e pelos países que o apoiaram (os EUA entre eles).
Em estilo fortemente documental (que lembra o “Pixote” do já
citado Babenco), Brocka narra a história de Julio, rapaz de uma província
afastada que viaja à capital em busca de sua namorada. Chegando em Manila, porém,
Julio se depara com uma cidade degradada e desumana, não diferente das
metrópoles brasileiras. A corrupção e a exploração da mão-de-obra braçal são
frequentes; as oportunidades são poucas, especialmente para quem vive nas
palafitas dos bairros mais miseráveis; e a pouca luz que se vê nos becos de Manila
provem da generosidade dos vizinhos, que dividem o pouco que tem. Quando Julio
encontra sua noiva, transformada pela situação de cárcere privado e
prostituição forçada a que foi submetida, restam-lhe poucas ilusões.
Brocka conseguiu aliar seu talento como diretor já tarimbado
(já contava com onze longas no currículo) com a paixão de um novato. A direção de
fotografia, puxando para o naturalismo com alguns planos mais estilizados, como
se emulassem a intranquilidade de Julio, é primorosa, assim como a atuação do
elenco, que mistura profissionais e amadores. Destaque para o protagonista
Bembol Roco (Julio), no segundo trabalho de uma profícua carreira que se
estende até o presente.
32) “A sorridente Madame Beudet” (“La souriante Madame
Beudet”, 1923)
Uma das
maiores lacunas da lista dos “1001 Filmes...”, a exemplo de outras listas, é o diminuto número de filmes dirigidos por mulheres. Isso não é surpresa quando se recorda que
grande parte da história do cinema mundial foi (e é) escrita por homens. Quer
ver? Compare o número de diretores que você conhece com o de diretoras. Talvez
chegue a um punhado de nomes mais conhecidos (Kathryn Bigelow, Agnès Varda e
Claire Denis, por exemplo), mas dificilmente chegará a sequer metade do número
de homens detrás das câmeras - apesar de mulheres estarem presentes na indústria cinematográfica desde seus primórdios.
Felizmente,
a lista dos "1001 Filmes" apresenta algumas poucas pérolas que ajudam a desvendar o desconhecido cinema feminino. “A sorridente Madame Beudet” é um
bom início. Realizado pela francesa Germaine Dulac (1882-1942), artista da vanguarda filiada ao surrealismo, o média-metragem mudo conta a história de uma dona de casa presa num casamento sem amor. Seu marido, um
pequeno-burguês ridículo, deixa-a sozinha certa noite e ela sofre variadas
alucinações (vê um tenista na sala de estar e cenas de uma ópera), brincando com
a ideia de ver seu marido morto e a libertação que isto lhe traria. O
desfecho da história é surpreendente, deixando no ar a sensação de que o
cárcere psicológico de Beudet continua em impasse.
Apesar
de curto, o filme é bem interessante e traz um ponto de vista feminino sobre o
matrimônio e a vida cotidiana, perspectiva raramente vista no cinema. O filme
está disponível com legendas em inglês no Youtube.
33) “As aventuras do príncipe Achmed” (“Die Abenteuer des
Prinzen Achmed”, 1926)
Continuando
no tema de cinema feito por mulheres, esta é o primeiro longa-metragem de
animação ainda existente, realizado ao longo de três anos pela pioneira alemã
Lotte Reiniger. Há notícia de uma animação ainda mais antiga, “El apóstol”,
produzido pelo argentino Quirino Cristiani em 1917, mas esta desapareceu num
incêndio no mesmo ano de lançamento do filme de Reiniger.
“As
aventuras do príncipe Achmed”, tal qual grandes obras da animação como
“Fantasia” (1940) e “O estranho mundo de Jack” (1993), surpreende
pela criatividade e pelo uso arrojado de sua técnica, no caso, bonecos de sombra.
Cada “frame” do filme foi recortado em papel e animado contra a luz, rendendo um efeito simples mas eficiente. A história
trata de aventuras rocambolescas ambientadas no mundo das Mil e Uma Noites, onde o príncipe Achmed encontra feiticeiros, bruxas, monstros, princesas e até o Aladim da
lâmpada mágica. Tudo é deliciosamente exagerado, fantasioso, irrealista.
Se a influência orientalista é forte no filme, os
cenários lembram fantasias em “art nouveau”, ainda em voga na época. Os
episódios são bem movimentados e a animação, bastante expressiva. É possível
ver, inclusive, influência do cinema expressionista alemão, muito popular no
meio cinematográfico de Reiniger.
34) “Na
natureza selvagem” (“Into the wild”, 2007)
Christopher McCandless, jovem norte-americano de família de classe média, saiu de casa no início dos anos 90 para viver como andarilho pelas paisagens selvagens dos Estados Unidos. Leitor de autores que louvavam a vida campestre, como Jack London, Henry Thoreau e Leo Tolstói, McCandless decidiu morar isolado no Alasca. Acabou morrendo lá em 1992, com meros 24 anos (mesma idade, aliás, que morreu Lingyu Ruan, atriz chinesa mencionada acima). Sua história rendeu um livro de Jon Krakauer, adaptado para o cinema em 2007 por Sean Penn.
Penn,
além de ator experiente, já havia demonstrado talento incomum atrás das câmeras
com “Acerto final” (1995) e “A promessa” (2001), ambos com interpretações
atormentadas de Jack Nicholson. A semelhança destes filmes com a história de
McCandless está na fé de Penn no trabalho do ator. A câmera parece presa ao
corpo de Emile Hirsch, que interpreta o jovem andarilho, e no corpo das pessoas
que ele encontra pela estrada. Em tempos nos quais os atores parecem meros
acessórios para pirotecnias da câmera ou do roteiro (as peças de “gado” de que
Hitchcock falava), é revigorante ver um diretor americano que acredita tanto na
força do elemento humano, na força expressiva do ator.
“Na
natureza selvagem” lembra alguns filmes independentes dos anos 70, como “Five
easy pieces” (1970) e “Easy rider” (1970) – dois filmes que, talvez não por
coincidência, também contam com Jack Nicholson no elenco -, hinos de almas perdidas
que encontram um meio de vida na estrada. Em sua narrativa um tanto “solta”, a
obra de Penn deixa espaço para a poesia, para a contemplação do mundo ao redor
do personagem. É um filme que respira, portanto, que não martela idéias na
cabeça do espectador, um filme que não tem pressa em desenrolar sua história,
na qual a plateia descobre o mundo juntamente com o personagem.
A duração mais extensa que a média (2h30) certamente ajuda a
criar esse efeito, assim como a montagem primorosa de Jay Cassidy (veterano que
também montou os dois filmes anteriores de Penn, tidos como lentos e introspectivos) e as belas paisagens
silvestres da América do Norte. Mas a maior fonte do filme é mesmo o trabalho
do ator. Ele está presente em arroubos como o do pai repressor de McCandless
(interpretado por William Hurt), que, atormentado pela fuga do filho, desaba no
meio da rua. Está presente na narrativa suave em “off” da irmã de McCandless
(Jena Malone), que transmite a incompreensão da família diante do abandono,
expressando o quanto de egoísta e contraditório existe no desejo de liberdade
absoluta do irmão. Finalmente, ele está na interpretação inspiradíssima de
Hirsch, que cria um McCandless multifacetado, complexo, transformando o que
poderia ser um jovem mimado numa força da natureza, tão indomável quanto os
rios que atravessa em sua jornada. De um excelente ator e diretor como Penn,
não se pode esperar menos.
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