Certa vez eu lia um livro sentado num banco de praça quando um demônio apareceu ao meu lado. (Antes de continuar, é bom esclarecer que nem todos os demônios são maléficos. Às vezes eles só querem nos provocar. Coisas ruins são causadas por nossa própria natureza e não por diabinhos chifrudos batendo asas por aí, por mais que queiramos acreditar nisso.) Aquele era um desses diabos desafiadores, mais curioso do que qualquer outra coisa. Tentei ignorá-lo, concentrando-me na le itura. Mas ele queria atenção e arrancou o livro da minha mão, apalpando-o, cheirando a capa e segurando-o em uma de suas mãos ossudas e escamosas. - O que é issssso? – perguntou o demônio, sibilante. É um livro, respondi. - E pra quê sssssserve? Confesso que fiquei em dúvida sobre o que responder. Depois de pensar por um momento, eu disse, um tanto ingenuamente, que servia para muitas coisas. Para aprender, para matar o tempo... - Mat-tar? – respondeu, ligeiramente interessado. Ri quando ele procurou
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Mostrando postagens de março, 2019
1001 filmes: de 64 a 68
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64) “Grandes esperanças” (“Great expectations”, 1946) Dramalhão caro de época, o filme poderia ter resvalado no sentimentalismo monótono se não fosse o talento de David Lean, recém-saído do intimista “Desencanto” (“Brief encounter”, 1945). Desde a cena de abertura, com o jovem Pip correndo em contraluz no campo onde mora, até as cenas no interior de uma mansão decrépita, vê-se que a fotografia de Lean está à frente de seu tempo. A adaptação também está à altura, recontando a clássica história de Charles Dickens (refilmada em 1998 pelo oscarizado Alfonso Cuarón) do menino pobre que se apaixona pela menina rica e tem uma chance de mudar de vida. Lean conduz o enredo com elegância e paixão pelo material - não à toa, seu projeto seguinte seria adaptar outro clássico de Dickens, “Oliver Twist” (1948). 65) “A criada” (“Ah-ga-ssi”, 2016) Tal como “Império dos sentidos” (1976), o erotismo é a força motriz deste excelente título coreano, dirigido
1001 filmes: de 59 a 63
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59) “Vem dançar comigo” (“Strictly Ballroom”, 1992) Antes de estourar com a versão MTV de “Romeu + Julieta” (1996) e “Moulin Rouge!” (2001), o australiano Baz Luhrmann chamou atenção com este divertido musical. Muita breguice, personagens caricatos, muita pluma e paetê, muito luxo: é uma boa sessão da tarde, com direito a um triunfante número final ao som do clássico mela-cueca “Love is in the air”, mas não sei se deveria figurar numa lista de filmes para serem vistos antes de morrer. Folhetim exagerado por folhetim exagerado, fico com “Moulin Rouge!”. Vale pela montagem frenética, marca registrada de Luhrmann, e os números de dança bem coreografados. 60) “Quando fala o coração” (“Spellbound”, 1945) Ingrid Bergman e Gregory Peck interpretam uma psiquiatra e seu paciente, um homem que pode ou não ser um assassino. Ela, naturalmente, se apaixona por ele. “Spellbound” é uma tentativa precoce de fazer suspense psicológico, numa época em que a psiquiatria ainda era
clima
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Queria beijá-lo, tacar um soco na cara dele, torturá-lo, gritar em seu ouvido, empurrá-lo num precipício - Tá quente, né? , dar um abraço, ler um poema - É. O verão chegou mais cedo esse ano. , menos falar sobre o clima. É a morte - Mas hoje chove. Talvez. de tudo, o fim da conversa, do amor, do argumento, falar sobre o movimento das nuvens - Acho que não chove. , as correntes de ar, as marés. Ninguém sabe pra onde vai coisa nenhuma. O máximo que se pode fazer é chafurdar na - Talvez você tenha razão. condição humana, que é mais imprevisível que os furacões mas onde, pelo menos - Vi na previsão do tempo. temos alguma chance. O resto é garoa, estéril. - Eu te amo. - Oi? - Nada não. Tchau.
istambul
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Ontem me lembrei de Istambul, suas ruas fedendo a peixe e sonho. Tanta gente andando pela Taksim, o vazio preenchendo suas mesquitas. Barcos à distância, olhares lânguidos, Cheiro de comida, crianças jogando bola nas ladeiras. Velhas curiosas espiando nas janelas. Homens parrudos de bigode (Mehmets) jogando fardos em camionetas, homens bons. Mulheres sinceras (Ayşas) que riem com amigas, com e sem véu, a religião é um estado de espírito para um dia sem chuva. Antigos cemitérios de grama alta, grandes turbas estrangeiras diante de igrejas. Qual verdade procura o turista? Quanto chão atravessa para sentir a mesma coisa! Istambul, istambullu, gosto de crepúsculo na boca, gaivotas planam sobre os esquifes no cais e a cidade maciça, turca, grega, bizantina, nos observa do alto de sua antiguidade, serena como uma velha pérola.
O quê aconteceu com nossos sonhos de liberdade?
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O quê aconteceu com nossos sonhos de liberdade? Que fim levaram aquelas magníficas promessas que diziam que iríamos transcender, de forma magistral e jamais vista, esta forma decantada e derruída? O quê esperar de nossas esperanças? Quando morreram nossos projetos de infância? Aos oito anos, eu queria ser policial, detetive e astronauta, convencido de que era possível dedicar oito horas por dia a cada carreira. Eu dormiria na nave. Não pretendia libertar ninguém além de mim mesmo, eu estava disposto a abraçar o futuro para matar o medo. Aos trinta e oito anos, o medo se apodera de mim. Distante está qualquer possibilidade de sonho. Sou mastigado pelo cinismo, degluto meias-verdades e vomito alguma imitação da vida. Um véu cai sobre meus olhos, tão pesado que nem a morte pode erguê-lo. Eu olho através de meus amores e me satisfaço simplesmente por continuar vivo. Eu cuspo e vomito, escrevo e respiro. E não há muito que esperar lá de fora.